08 Mai 2011
No dia 7 de abril deste ano, um jovem de 23 anos entrou numa escola pública de Realengo, zona oeste do Rio de Janeiro, matou 12 alunos, feriu outros 12 e se suicidou. Isso você já sabe. Além de amplamente noticiado, o episódio foi ‘analisado` e ‘explicado` nas páginas dos jornais e nas telas da TV. Por dias seguidos, psiquiatras, psicanalistas, educadores e mesmo colunistas que falam em nome do senso comum arriscaram julgamentos e diagnósticos clínicos.
Médico psiquiatra, com mestrado em medicina social e doutorado em saúde coletiva, Benilton Bezerra alerta, nesta entrevista, para o perigo de se utilizar "o diagnóstico como explicação" numa situação como essa. Fugindo de explicações simples, ressalta a importância de não se fazer uma associação direta entre problemas psiquiátricos e comportamentos violentos e explica as relações que o campo da saúde mental hoje identifica entre o biológico e o social. Abordando as questões diretamente envolvidas no episódio, o professor e pesquisador do Instituto de Medicina Social da Universidade do Estado do Rio de Janeiro fala também sobre bullying e mudança de sociabilidade a partir do uso das novas tecnologias de comunicação.
A entrevista é publicada pelo sítio da Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio, 05-05-2011.
Eis a entrevista.
Quando ocorrem episódios como o da escola de Realengo, especialistas são procurados para ajudarem a compreender como aquilo pôde acontecer. Quase sempre são apresentados diagnósticos psiquiátricos para explicar a conduta do criminoso. Isso esclarece o que se passou?
Definitivamente, não. Episódios como esses desafiam, é claro, nosso entendimento. Produzem em todos nós perplexidade, assombro, e angústia - poderia ter acontecido aos filhos de qualquer um de nós. É natural que queiramos encontrar um sentido, uma explicação para o que aconteceu, porque só entendendo a sua gênese poderemos tentar evitar sua repetição. É preciso situar o que parece absurdo, irrupção sem sentido, no interior de uma narrativa, reconstruir a teia de elementos que tornou possível que aquilo acontecesse. É a única maneira de lidarmos com eventos traumáticos: envolvê-los com palavras, organizar os fatos com alguma lógica, localizá-los numa história, descrevê-los de modo que possamos dizer, "Agora que entendemos como o horror se tornou ou possível, podemos fazer algo para que ele não se repita".
Mas embora se possa compreender o impulso coletivo para encontrar um sentido para o que nos atordoa, há fatos que resistem a explicações simples. Este é o caso do ato de Wellington. É provável, dadas as informações até agora coletadas, que ele estivesse sob imensa pressão psicológica há um longo tempo, e que isto o tivesse levado a mobilizar padrões de funcionamento psíquico que consideramos patológico. Mas utilizar o diagnóstico como explicação, como tem sido feito, é temerário, por duas razões. A primeira é a fragilidade da operação.
Afirmar que Wellington agiu como fez porque era um "X", é como diagnosticar um personagem - criado a partir da leitura de seus escritos, dos testemunhos indiretos de quem o conheceu, do raciocínio dos especialistas, etc - e não uma pessoa real. Esta se foi para sempre sem ter compartilhado seus fantasmas com alguém. É impossível saber como era "ser Wellington", por isso jamais saberemos realmente o que o levou ao horror. Além disso, é preciso lembrar que tudo isso (escritos, lembranças dos conhecidos, da família, opinião dos professores, raciocínios dos especialistas) foi trazido à tona depois do acontecimento. Descrevemos o passado de Wellington, o modo com ele era, a partir do presente, a partir do seu ato tresloucado. A segunda razão para descrer do diagnóstico como explicação suficiente é o simples fato de que portadores de diagnósticos psiquiátricos graves exibem muito menos condutas violentas ou criminosas do que a população em geral. Ou seja, não se pode deduzir uma relação direta de causa e efeito entre um diagnóstico psiquiátrico e uma conduta como a de Wellington. A maior parte dos crimes violentos é cometida por pessoas comuns em situações e contextos especiais. De pouco adianta aludir isoladamente à sua condição de filho adotivo, à sua timidez com as mulheres, ao seu flerte com o imaginário islâmico, ao uso de drogas, ao bullying, etc para elucidar o que se passou com Wellington.
Para nos aproximarmos de uma compreensão menos afobada e ingênua (embora talvez mais tranquilizadora) do que ocorreu em Realengo é preciso ampliar o foco da análise e tentar examinar as relações do indivíduo Wellington com o mundo ao seu redor, tentar compreender como sua constituição biológica, sua história pessoal, e o ambiente humano em que cresceu, marcaram seu jeito de pensar, sua maneira de lidar com os próprios conflitos, seu modo de se defender da angústia, seus sonhos e pesadelos. Um diagnóstico psiquiátrico pode ser uma peça no quebra-cabeça das complexas relações por trás de seu ato, mas certamente não é a chave do enigma. Finalmente, é preciso dizer: poderia não ter acontecido. A cadeia de pequenos elos que o levou à ação desvairada poderia ter sido rompida sem que ninguém jamais viesse a saber. Um gesto, uma experiência fortuita, um acaso qualquer, poderiam ter desviado Wellington de seu destino. Por mais que multipliquemos, em benefício de nossa compreensão, as razões de sua conduta, ela não estava escrita, ela não fadada a acontecer. Poderia não ter acontecido.
Boa parte das explicações levantadas com base na psicopatologia descreve causas de natureza biológica e individual. Existe saúde ou doença mental independente do contexto de relações sociais em que vive o indivíduo?
No cenário atual há basicamente duas grandes posições no campo da psiquiatria e da saúde mental em relação a esta questão, que podemos descrever sinteticamente da seguinte maneira: de um lado há os reducionistas, aqueles que acreditam que se pode perfeitamente compreender, explicar e tratar a experiência subjetiva em sua complexidade se atendo fundamentalmente à descrição de suas bases biológicas; de outro há aqueles (entre os quais me situo) que afirmam que essas bases biológicas são necessárias e indispensáveis para a existência de estados e eventos mentais (não há vida psíquica sem um cérebro funcionando), mas não são suficientes para o surgimento e muito menos para a compreensão do sentido que a experiência subjetiva tem para um individuo - esses são os antirreducionistas. Para estes, a experiência subjetiva (normal ou patológica) é sempre o resultado da interação constante entre o sistema nervoso central e o resto do organismo, e do organismo com o mundo que ele habita com seus semelhantes, o ambiente natural e cultural, simbólico. Para que surja um sujeito pleno são necessários gens, moléculas, neurônios, hormônios, convívio com outros humanos, investimento amoroso, palavras, cultura, tudo isso interagindo sem cessar ao longo da vida do indivíduo. A própria biologia do século XXI aponta para isso por meio de conceitos como os de plasticidade e emergência, de embodiment (inscrição corporal da mente) e embedment (inscrição dinâmica do corpo no ambiente). Portanto, explicações centradas na biologia do cérebro e no funcionamento do indivíduo são apenas parte integrante de um quadro muito mais vasto e complexo.
O reducionista acredita que as alegrias, tristezas, o sentimento de liberdade, a apreciação estética, o amor e o sentimento de abandono nada mais são (esta é a expressão-chave de qualquer postulado reducionista) do que o efeito da ação de neurônios. Por isso ele acha, por exemplo, que depressão se explica pela recaptação acelerada de serotonina no nível das sinapses. O antirreducionista descreve a depressão como um processo complexo que pode ser descrito com vários vocabulários, cada um com um objetivo diferente.
O vocabulário biológico é utilíssimo, pois ajuda a compreender como o cérebro participa deste fenômeno, e permite a busca por medicamentos mais precisos. Ele permite elucidar os correlatos neurais da experiência, mas não desvenda o conteúdo subjetivo da experiência, muito menos as razões pelas quais aprendemos a denominar, reconhecer, viver e tratar um certo tipo de experiência como sendo uma patologia chamada depressão.
Ora, se no campo da pesquisa eu posso isolar uma dessas dimensões e me dedicar inteiramente a ela (sendo neurobiólogo, psicofarmacólogo, psicanalista ou pensador da cultura), no universo da clínica todas essas dimensões são fundamentais. Para o dispositivo da clínica todos esses conhecimentos compõem a caixa de ferramentas de que nos valemos para minorar o sofrimento e ampliar a normatividade biológica, psíquica e social dos que nos procuram.
A cobertura jornalística tem dado especial atenção ao fenômeno do bullying, que também tem sido apontado como causa possível de episódios de irrupção de violência. O que o sr. pensa disso?
O bullying, ou seja, a prática de infligir sofrimento físico ou moral a indivíduos em situação de fragilidade ou vulnerabilidade, em função de preconceitos e com o abuso de força, tornou-se um tema recorrente nos últimos anos. Porque estamos mais sensíveis a ele ou porque tem efetivamente aumentado? Talvez pelas duas coisas. Nos últimos anos temos criado mecanismos legais para proteção de muitos grupos alvo de agressões sociais como os negros, os gays, as mulheres - sinal de que nos damos conta do quanto nossa cultura é racista, machista, intolerante. Mas a escola é uma vitrine da sociedade. Há muito tempo vem mudando o lugar simbólico destinado a ela e a seus representantes. A escola deixou de ser o ambiente privilegiado de passagem da vida privada para a vida pública, o espaço em que a criança deixava de ser "o filho de D. Izaura" para ser o indivíduo "Rui", futuro cidadão. Numa sociedade cada vez mais voltada para produzir "vencedores", cujo sucesso se mede menos pelos valores internalizados pessoalmente e exibidos na vida pública, do que pelas performances espetacularizadas, a escola vem deixando de ser um espaço de construção de cidadãos para virar uma fábrica de ávidos consumidores, candidatos a winners (os que podem, claro; a maioria logo percebe que com as regras do jogo em voga não há lugar para todos). É verdade que sempre houve algum grau de violência nas escolas. A figura do "pele", aquele a quem todos atazanavam pelo simples prazer (humano) de gozar com o sofrimento alheio sempre existiu. Mas o fenômeno a que chamamos bullying parece indicar algo mais, apontando para uma transformação do ambiente escolar e da sociedade que a abriga, e que afeta a todos - professores e alunos, algozes e vítimas, pais e a população em geral: no mesmo momento em que somos mais sensíveis às expressões de intolerância, somos mais capazes de multiplicá-las.
Qual o papel da escola nesse processo?
Creio que à escola cabe buscar maneiras de trazer todos os sujeitos envolvidos para uma discussão permanente acerca do que é sua função precípua: a de construir cidadãos capazes de transformar para melhor a sociedade em que vivemos. É preciso não apenas reagir às expressões de intolerância, mas, sobretudo, criar dispositivos que permitam que as raízes de seu aparecimento sejam compreendidas e superadas. Essa é uma tarefa perpétua. A tentação da violência, assim como a busca da paz, faz parte da condição humana. O melhor que podemos fazer é admitir este fato, e lidarmos com ele da melhor maneira possível, expandindo sem cessar o campo daqueles que protegemos contra o pior de nós mesmos.
As novas tecnologias de comunicação e as chamadas redes sociais vêm produzindo o que se poderia chamar de uma nova sociabilidade? Com elas se criam novos modos de viver a solidão?
Sim, com a internet e as novas ferramentas de comunicação um novo ambiente de interação humana, cada vez mais rico e complexo, vem sendo criado. Isto vem modificando as bases de nossa experiência do mundo, e os parâmetros nos quais nossa sociabilidade se conduzia. Proximidade espacial, por exemplo, deixou de ser requisito para a intimidade. É possível (e será cada vez mais) vivê-la à distância. O acesso ao conhecimento mudou radicalmente em poucos anos.
As possibilidades de acesso à informação revolucionaram a relação dos indivíduos com setores especialistas - os médicos que o digam, sempre confrontados com as consultas, prévias e posteriores, feitas por seus pacientes ao "Dr. Google", a centros de pesquisa, enciclopédias médicas, etc. Estariam sendo criados novos modos de viver a solidão? Acredito que sim. Hoje é possível viver isolado e completamente antenado com tudo ao redor ao mesmo tempo. Há pessoas que usufruem disso. Mas o que julgo mais relevante é a criação de novas formas de rompimento com a solidão. Um número cada vez maior de casais se forma a partir de encontros na rede. Grupos de praticamente todo tipo se formam do mesmo modo, impulsionando contatos regulares de colecionadores de revistas do anos 40, autistas, portadores da síndrome de Down, pesquisadores de línguas indígenas, e assim por diante.
A internet e as novas redes ampliaram o mundo de nossa existência social. Para o bem e para o mal. Há sites que incitam ao suicídio, à pedofilia, ensinam a fazer bombas, a roubar senhas. Há novos crimes, possibilitados pela internet. Aumentam as maneiras pelas quais nossa vulnerabilidade pode ser atingida. Mas também se ampliam as redes de solidariedade e auxílio mútuo. O que precisamos fazer, as escolas em especial, é trazer as redes e a internet para dentro do cotidiano dos alunos. Se a escola não ajudar o aluno, ensinando-o a habitar esse novo espaço de convivência e de experimentação, ele o fará sozinho, ou pior, acabará seduzido por guias que terão todo tipo de interesse que não o de seu amadurecimento como indivíduo e cidadão.
Gostaria que o sr. comentasse o processo de medicalização ou psiquiatrização da infância.
Desde o século XVIII a medicina vem desempenhando um papel crescente na regulação da vida coletiva e individual, estabelecendo normas de saúde e bem-estar, de normalidade e patologia, criando verdadeiros roteiros de subjetivação e de comportamento. O que chamamos de medicalização é o longo e complexo processo por meio do qual, nos últimos séculos, esse processo vem se dando. A expressão, portanto, não se refere apenas a estratégias biomédicas para controle social dos indivíduos e dos grupos, mas principalmente ao modo como um número cada vez maior de problemas não-médicos vem sendo definidos e tratados como problemas médicos, com todas as consequências que isto traz para a vida pessoal e coletiva. A medicalização é um processo complexo, dinâmico e multidirecional. Há fatos da vida hoje inteiramente medicalizados, como o parto. Há outros em intenso processo de medicalização, como a infância e a velhice. Sua dinâmica envolve não apenas o saber médico e suas corporações, mas também a indústria farmacêutica e suas estratégias de ampliação de consumo de medicamentos, e os próprios consumidores, ávidos por uma vida saudável. Ele se dirige não só ao combate de velhas e novas doenças, mas também à regulação e do bem-estar (transformados em exigências individuais, mais do que direitos coletivos).
Quando olhamos para a psiquiatria da infância, podemos perceber suas várias nuances. Algumas positivas, como a grande expansão do conhecimento acerca do processo de desenvolvimento e suas patologias; outras motivo de preocupação, como a expansão de categorias diagnósticas na infância, o afrouxamento dos critérios de inclusão para esses diagnósticos e a impressionante medicalização de estados emocionais.
Um exemplo clássico é o do TDAH (transtorno do déficit de atenção e hiperatividade), que inicialmente era aplicado apenas a crianças exageradamente ativas, impulsivas e muito distraídas, e hegemonicamente em meninos, e que progressivamente vem sendo usado para meninas e adultos. Outro exemplo é o uso crescente de psicofármacos em crianças (ritalina, ansiolíticos, antidepressivos). No pano de fundo desse processo encontra-se um dado recente: a progressiva incorporação em nosso imaginário da noção de que a existência social pode e deve ser biotecnologicamente regulada. A própria idéia de que a vida normal contém em si mesma a possibilidade de sofrimentos, de altos e baixos, que dão a ela sua consistência, vem se tornando rarefeita.
Tendemos a esquecer que ter saúde não é não ter doenças, ou não sofrer, e sim, como dizia Georges Canguilhem, poder adoecer e se recuperar, poder atravessar o sofrimento e superá-lo. A difusão e o uso indiscriminado do vocabulário psiquiátrico entre pais, professores, médicos e o público em geral reforça esse movimento, daí porque é preciso conhecê-los bem, compreender seu alcance e, sobretudo, seus limites.
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"Há fatos que resistem a explicações simples". Entrevista com Benilton Bezerra - Instituto Humanitas Unisinos - IHU