21 Abril 2011
Inos Biffi e Agostini Marchetto respondem no jornal L’Osservatore Romano aos tradicionalistas Brunero Gherardini e Roberto de Mattei, que acusam o atual Papa pelo fato de não ter corrigido os "erros" do Concílio Vaticano II.
A reportagem é de Sandro Magister e está publicada no sítio Chiesa, 18-04-2011. A tradução é do Cepat.
Dois dos "grandes desiludidos com o Papa Bento XVI" aos quais se referiu www.chiesa em recente artigo receberam um tratamento especial por parte do L’Osservatore Romano, com duas resenhas de seus últimos livros.
Os "grandes desiludidos" são aqueles pensadores tradicionalistas que, inicialmente, haviam posto suas esperanças no pontificado de Joseph Ratzinger e em sua ação restauradora, mas que depois viram suas expectativas traídas. E que agora tornam público seu descontentamento.
Sua decepção se deve, sobretudo, ao modo como o atual Papa interpreta e aplica o Concílio Vaticano II. Porque, na opinião destes pensadores, ali está, nesse Concílio, a raiz dos males presentes da Igreja.
Foi o que escreveram e argumentaram em seus últimos livros, particularmente o professor Roberto de Mattei e o canônico Brunero Gherardini, um do ponto de vista histórico e o outro do ponto de vista teológico.
O citado artigo oferece uma síntese das teses de ambos.
O teólogo Gherardini, entre seus motivos de decepção, lamenta também o silêncio com que as autoridades da Igreja reagiram a um livro anterior seu: Concílio Vaticano II. Um debate por fazer.
Tanto é assim que em seu último livro, publicado neste ano, expressa desde o título sua decepção: Concílio Vaticano II. O debate que falta.
Mas, desta vez, as coisas aconteceram de outra maneira. O novo livro de Gherardini não foi ignorado, mas teve uma página inteira de resenha no L’Osservatore Romano, na edição de 15 de abril. O artigo é de um analista de primeira ordem, Inos Biffi, milanês, professor emérito das faculdades teológicas de Milão e de Lugano, que é um dos maiores conhecedores do mundo da teologia medieval e primeira assinatura teológica do jornal da Santa Sé.
As partes mais importantes da resenha estão reproduzidas mais abaixo, enquanto que seu texto completo está na página Chiesa.
Inos Biffi reserva às teses de Gherardini críticas severas. Mas reconhece também os méritos.
Ele mesmo não deixa de criticar alguns aspectos do Concílio. O faz apoiando-se em uma autoridade de alto nível, o cardeal Giacomo Biffi, com quem tem em comum o sobrenome – sem nenhum vínculo familiar –, mas, sobretudo, as ideias.
As críticas dos dois Biffi, Giacomo e Inos, ao evento conciliar referem-se à sua natureza "pastoral", à renúncia da condenação dos erros e aos equívocos do chamado "aggiornamento".
Mas na opinião deles, os documentos produzidos pelo Vaticano II são em todos os casos "não culpados" pelos desvios subsequentes. E nisto a sua opinião é diverge completamente daquela de Gherardini e outros tradicionalistas.
O professor Roberto de Mattei, autor de uma história do Concílio Vaticano II na qual mostra o caráter de ruptura com a tradição, também teve uma resenha publicada no L’Osservatore Romano, na edição de 14 de abril, realizada por outra alta pena do primeiro escalão: o arcebispo Agostino Marchetto, ex-secretário do Pontifício Conselho dos Migrantes, vigoroso crítico, há anos, da história do Vaticano II mais lida no mundo, aquela produzida pela "Escola de Bolonha", fundada por Giuseppe Dossetti e Giuseppe Alberigo, que interpreta também o acontecimento conciliar como uma "ruptura" com a tradição e um "novo início", mas num espírito oposto ao dos tradicionalistas?
A resenha de Marchetto do livro de De Mattei está nesta página [em italiano].
Na sequência, um extrato da resenha do livro de Gherardini, publicada no L’Osservatore Romano, 15 de abril.
Releituras Conciliares, por Inos Biffi
Sem dúvida é possível, e também desejável, fazer uma leitura crítica do Concílio Vaticano II, que tenha por objetivo proceder a uma análise exaustiva das suas fontes, segundo suas diferentes naturezas, a uma completa reconstrução histórica de sua preparação e de seu desenvolvimento e, enfim, à interpretação de seu conteúdo doutrinal, em função de critérios metodológicos conhecidos pela teologia. Este terceiro objetivo não é fácil de atingir, por causa do gênero literário dos textos conciliares, muito extensos e similares a tratados teológicos, ao contrário do ensino sintético que caracterizava os atos dos concílios anteriores.
Trata-se, na realidade, de um trabalho já empreendido, com vastas perspectivas, mas que foi analisado negativamente, não sem razão, por causa das ideologias de sinal contrário que o guiaram e que levaram a uma mesma conclusão: a de um Vaticano II "revolucionário", que teria representado uma ruptura com a Tradição, ou por uma atualização de ruptura promovida por um João XXIII, que teria sido conciliar desde o seio materno, ou por um refluxo do "modernismo" devido à falta de vigilância dos Papas que sucederam Pio X.
Que esta conclusão seja pouco plausível, já deveria aparecer no fato de que os documentos conciliares foram aprovados e promulgados pelo sucessor de Pedro e pelo colégio episcopal reunido em concílio, e em comunhão com ele. A hipótese de que eles teriam proposto um corpo doutrinário em desacordo com a Tradição levaria inevitavelmente à afirmação de que, na Igreja, o Magistério se fraturou e se perdeu a segurança e a fé.
Por esta razão, ambos os resultados acima evocados são inevitáveis quando o que está na base da releitura, mais ou menos conscientemente, não é a intenção de reparar e examinar os dados, mas o propósito de comprovar uma tese.
* * *
Ao contrário, uma vez removidos os pressupostos que poderiam comprometer uma compreensão objetiva, certamente é legítimo e mesmo oportuno reexaminar o Concílio e dar relevância, em diferentes níveis, às suas limitações ou o que parecem ser suas limitações.
Penso nas sintéticas, mas penetrantes, reflexões do cardeal Giacomo Biffi em suas Memórias e digressões de um cardeal italiano (Siena, Cantagalli, 2010). Ele considera, por exemplo, que a expressão de João XXIII "renovação interna da Igreja" é mais pertinente que o vocábulo "aggiornamento", que também foi utilizado pelo Papa João. Mas este último vocábulo teve um "sucesso desmerecido", que incluía – ultrapassando a intenção do Papa – a ideia de que a Igreja "se propunha a buscar sua melhor conformação não ao desígnio eterno do Pai e à sua salvação, mas "à jornada", isto é, à história temporal e terrestre".
O próprio cardeal não deixa de manifestar suas reservas sobre a intenção de João XXIII de se abster das condenações, para recorrer à "medicina da misericórdia", evitando assim "formular ensinamentos definitivos e vinculantes para todos" segundo a intenção declarada de apontar para um "Concílio pastoral", suscitando a complacência de todos "dentro e fora da sala do Vaticano". [...]
* * *
Em relação à Gaudium et Spes, Giacomo Biffi recorda três opiniões autorizadas.
A primeira é de Hubert Jedin, que dizia que "esta constituição foi saudada com entusiasmo, mas sua história posterior já demonstrou que seu significado e sua importância tinham sido amplamente supervalorizados e que não se tinha compreendido até que ponto esse "mundo’ que se queria ganhar para Cristo havia penetrado na Igreja".
A segunda opinião é a de um teólogo protestante muito apreciado por Giacomo Biffi, Karl Barth, segundo o qual o conceito de "mundo" da Gaudium et Spes não era aquele do Novo Testamento. Giacomo Biffi considera que esta opinião seja "talvez muito severa se ela for aplicada ao documento em si", mas que ela é "irrepreensível caso for extensiva a boa parte da mentalidade do pós-concílio".
A terceira opinião citada é a do cardeal Giovanni Colombo, "agudo e livre como sempre", que afirmava: "Todas as palavras desse texto são precisas; são os acentos que estão errados", e "lamentavelmente – segue dizendo Biffi – o pós-concílio foi influenciado e encantou mais pelos acentos do que pelas palavras".
* * *
As Memórias e digressões de um cardeal italiano se detêm, particularmente, na constituição litúrgica Sacrosanctum Concilium.
Quando ela foi publicada, lembra o cardeal Biffi, "me alegrei muito. Todo o movimento litúrgico mais inteligente e mais equilibrado – que nos anos anteriores havia seguido com paixão – encontrava aqui sua melhor acolhida e coroação. Dali partiu a reforma, providencial e impossível de parar, que tanto havíamos esperado". Sem dúvida, dali também "partiu, arbitrariamente, a mais desconcertante ignorância eclesiástica para suas espetaculares aberrações. Mas esta Constituição não tem a culpa disso".
Continuando, Giacomo Biffi evidencia as oportunas reformas com vistas a tornar efetivamente possível uma "participação piedosa e ativa dos fiéis" na celebração.Por esta razão "um retorno total e perfeito às formas que, antes do Concílio, eram normais para as celebrações menos solenes estaria em explícito contraste com o ensinamento e com a vontade do Vaticano II".
Depois, o cardeal não deixa de observar que, se "o Concílio não quis nem previu o latim desaparecesse totalmente das nossas celebrações", já nos Praenotanda do novo Missal reformado "a Santa Sé chegou a uma concessão geral". [...] Segundo o parecer do cardeal, "uma autorização apenas parcial, com o resultado de ter uma "liturgia bilingue’, não podia manter-se por muito tempo; e é, portanto, justificado que se tenha ido além do ensinamento do Concílio".
* * *
Parece-me que o teólogo Brunero Gherardini não aprova inteiramente esta análise da Constituição Sacrosanctum Concilium. Em seu novo livro Concílio Vaticano II. O debate que falta (Turim, Lindau, 2011) ele reserva uma série de acusações, no meu entendimento, infundadas e impossíveis de compartilhar. O que é inaceitável é, antes de tudo, a não distinção entre, de um lado, o ensinamento do Concílio e as sucessivas intervenções de aplicação lançadas e dirigidas posteriormente por pessoas autorizadas, e de outro, as escolhas arbitrárias inconsideradas do pós-concílio, das quais, contudo – como observava o cardeal Giacomo Biffi – a "Constituição é inocente".
O que se pode compartilhar, é o que Gherardini diz sobre os "absurdos anti-litúrgicos realizados em nome do Vaticano II" e sobre a "deplorável situação de anarquia litúrgica que está à vista de todos". Mas não creio que se possa atribuir a responsabilidade direta ou indireta disso ao Concílio em si.
Na verdade, Gherardini também reconhece a validade e a precisão dos princípios de reforma enunciados pela Sacrosanctum Concilium, que "em seu conjunto e cada um em si mesmo, são de cristalina claridade, de precisa pontualidade e de prudente equilíbrio". Mas, no fim, isso não o impede de imputar à própria Constituição ser a causa das desastrosas derivas ocorridas e em particular do antropocentrismo e horizontalismo litúrgico, dos que continha a semente e a inclinação.
De resto, segundo Gherardini, o antropocentrismo, o naturalismo, o horizontalismo, foram "as notas dominantes" do "incauto movimento litúrgico" representado, por exemplo, por Beauduin, Parsch e Casel, objetivamente responsáveis, além da retidão de intenção que tiveram, "de ter, ao menos em parte, invertido o sentido do movimento litúrgico, centrando-o sobre o homem".
Uma afirmação desse tipo não me parece verdadeiramente sustentável a respeito de Casel, para quem, em sintonia com a concepção dos Padres da Igreja, a liturgia representa a obra da salvação na forma sacramental, nem em relação a Beauduin, empenhado em fazer a comunidade cristã ativamente orante, nem em relação a Parsch, que tem o mérito de ter iniciado o melhor possível o povo na compreensão da liturgia. A menos que se considere que a obra pastoral que consiste em favorecer a participação sempre mais ativa dos fiéis na ação litúrgica seja sinal de antropocentrismo ou de horizontalismo. [...]
Gherardini está convencido de que o Vaticano II, falando, a propósito da liturgia, "de uma parte imutável porque é de instituição divina, e de partes sujeitas a mudanças", fez "de qualquer inovação um jogo para crianças". Mas não me parece que nem o Papa nem os organismos competentes da Sé Apostólica se tenham comportado como crianças, admitindo, na aplicação do Concílio, "qualquer" inovação, mesmo se os autores das "espetaculares aberrações", de acordo com a expressão de Biffi, foram – e são – mais deploráveis que as crianças.
Pode ser pertinente notar que Pio XII na Mediator Dei (1947) afirma: "A sagrada liturgia é formada por elementos humanos e por elementos divinos: estes, tendo sido instituídos pelo Divino Redentor, não podem, evidentemente, ser modificados pelos homens; ao contrário, aqueles podem sofrer várias modificações, aprovadas pela sagrada hierarquia assistida pelo Espírito Santo, segundo as exigências dos tempos, das coisas e das almas".
Gherardini está absolutamente seguro de que depois da promulgação da Sacrosanctum Concilium, na época das diferentes reformas, o Espírito Santo dormiu ou estava de férias, deixando a sacra Hierarquia, representada por Paulo VI ou por João Paulo II, desprovida de sua assistência e à mercê de seu "desejo de coisas novas"? [..]
Não vejo como aqueles que desejaram coisas novas teriam sido ajudados pelo "ensinamento conciliar", por sua linguagem e pelas "portas que este ia abrindo". Inclusive chega a afirmar que "sim, a porta está realmente aberta" e que "se alguém a atravessou para introduzir uma liturgia abolicionista de sua própria natureza e de seus fins primários, em última análise o responsável é exatamente o texto conciliar". Responsáveis são os Padres com "esse espírito de abertura no qual o próprio Concílio os havia sufocado". [...]
* * *
Gherardini dá uma atenção especial à questão do latim litúrgico. Seu valor é de fato incontestável e atual. Não é necessário negar os resultados decadentes e inclusive os erros – algum de caráter teológico – de certas versões em italiano, justamente postas em evidência por Gherardini. É por isto que, como escreve o cardeal Biffi, deve-se reclamar com vigor "a disposição a celebrar nos domingos e nas festas, ao menos nas igrejas catedrais, uma solene eucaristia latina, obviamente segundo o missal de Paulo VI".
Mas me pergunto se não é meio exagerado considerar, como faz Gherardini, que "com a substituição do latim pela língua vernacular" não se "pretendeu privilegiar o homem, não o elevando mediante o rito sagrado aos níveis do divino, mas abaixando o rito ao nível do homem, de sua condição historicamente limitada", como se, na liturgia, fosse a língua e não a graça a que elevava "aos níveis do divino", ou como se estes se encontrassem diminuídos se os fiéis compreendessem imediatamente os textos em seu idioma habitual [...]. Deveria estar claro que o "mistério" cristão é uma coisa bem diferente do "arcano" profano. [...]
Os grandes culpados por introduzir a língua vernacular são os Papas. Com a abertura do Vaticano II – sustenta Gherardini – "tudo o que era ou parecia ser uma exigência do homem ficou ao encargo dos homens do pós-concílio, inclusive os Papas". Eles são assim comparados aos inconscientes que, remetendo-se indevidamente ao Concílio, traíram-no e reverteram os princípios saudáveis e as diretrizes.
Quanto aos Papas tomados individualmente, foram Paulo VI, cúmplice de ter adotado a língua vernacular por "simpatia pelo homem", e João Paulo II, que por um quarto de século teve pelo homem "uma verdadeira devoção": um e outro permaneceram em todo caso "como que olhando para as estrelas". Estamos sempre na linha da tese preconcebida e inaceitável que orienta e condiciona toda a reconstrução retorcida e infrutuosa de Gherardini.
Mas aqui me parece que se excedeu inclusive os limites do bom gosto. E, nesse caso, seria perfeitamente inútil simplesmente evidenciar que a liturgia não existe porque Deus rende culto a si mesmo, mas para que o homem possa louvá-lo e glorificá-lo a través dos sagrados ritos celebrados "ativamente e em plena consciência", e assim receber a graça da salvação.
E, de fato, as reformas conciliares não tiveram outra finalidade; se elas tiveram limites, que podem ou devem ser corrigidos, elas trouxeram, de modo especial, imensos benefícios. Pode ser oportuno o debate sobre o Vaticano II: mas uma coisa é debater e outra é denegrir.
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Os desiludidos falaram. O Vaticano responde - Instituto Humanitas Unisinos - IHU