15 Abril 2011
"Apesar da diferença radical entre as revoluções do passado e as do presente, não só os povos do Norte da África, mas também os de todo o Ocidente, estão apenas no início do processo que está destinado a levá-los ao abandono da sua tradição."
A reflexão é do filósofo italiano Emanuele Severino, professor da Universidade Vita-Salute San Raffaele de Milão, Itália, em artigo publicado no jornal Corriere della Sera, 14-04-2011. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Eis o texto.
O que está acontecendo no Norte da África é um típico fenômeno do nosso tempo, em que, nos modos mais diversos, mas todos convergentes, o Ocidente volta as costas à sua própria plurimilenar tradição. O mundo árabe, de fato, depois de ter reativado, na Idade Média, a civilização europeia, reconectando-a com a grande cultura grega, sentiu e sofreu depois a presença dessas civilizações, com uma intensidade tão maior quanto mais ampla e profunda – com relação aos povos da África subsaariana – foi a dimensão que o mundo árabe teve em comum com a Europa (pense-se também no legado comum das escrituras vetero-testamentárias).
Pretendo dizer que o que está acontecendo no Norte da África é o modo específico em que esse mundo também começa a voltar as costas para a tradição do Ocidente. Entre os mais visíveis dos fenômenos típicos do nosso tempo, as duas guerras mundiais. Na primeira, as democracias destroem o absolutismo dos Impérios centrais e o do otomano, contribuindo para determinar as condições que levam ao final do absolutismo czarista. Na segunda, as democracias destroem o absolutismo nacional-socialista e fascista.
Mas o fim do absolutismo soviético também pertence a essa ordem de fenômenos. Também pertence, na Europa e embora em menor medida na América, a crise do cristianismo e dos costumes que nele se inspiram. O cristianismo pretende, de fato, ser o ordenamento absoluto que torna possível a salvação do ser humano. A essa ordem de fenômenos também pertence a crise do capitalismo: não tanto a relativa às dificuldades em que ele se encontra hoje, mas sim a crise pela qual ele é sempre menos entendido como uma "lei natural eterna" – isto é, como ordenamento absoluto que torna possível a salvação econômica – e sempre mais como uma "experiência" histórica de muitos méritos, mas de resultado incerto, também pela devastação da terra à qual ele conduz.
A essa ordem de fenômenos – isto é, ao abandono da tradição do Ocidente – pertencem também grandes eventos dos últimos dois séculos da história europeia, que, embora menos visíveis, são muitos e, em certos casos, ainda mais decisivos. Entre os séculos XIX e XX, a arte europeia se recusou a ter que se adequar ao modelo constituído pelo belo absoluto e imposto pela cultura tradicional: ela se propôs como livre invenção de um mundo novo; nascem a arte "abstrata" e a música atonal (isto é, ela mesma "abstrata", separada do ordenamento sonoro da tradição).
A Verdade absoluta
Mas, de modo eminente, é a filosofia que rompe com o passado, e sobretudo com o seu próprio, mostrando a impossibilidade daquele Ordenamento dos ordenamentos que é a própria existência de uma Verdade absoluta e de um Ser absoluto que pretenda valer como Princípio do mundo.
"Deus está morto", e, na raiz, está morta aquela Verdade absoluta que presume poder se manter estável e inalterável acima da história, do tempo, do devir. Dessa atitude do pensamento filosófico, as ciências naturais e lógico-matemáticas sentem os efeitos, e, seu modos próprios, não se apresentam mais como Verdades absolutas, mas como hipóteses ou leis estatístico-probabilísticas das quais sempre é possível a falsificação.
As ciências jurídicas também abandonam o conceito de "direito natural", na medida em que ele quer ser um direito absoluto, absolutamente verdadeiro e presente na consciência de todo ser humano, e levam ao primeiro plano o conceito de "direito positivo", posto pelo ser humano em determinadas circunstâncias históricas.
O abatimento da tradição do Ocidente é um turbilhão gigantesco em forma de pirâmide, cujos estratos tornam-se sempre mais visíveis assim que se desce para a base, e sempre menos visíveis – mas também sempre mais decisivos – assim que se sobe para o vértice da pirâmide, que é constituído pelo pensamento filosófico e que, embora em geral se mantenha escondido, guia o turbilhão. Mesmo olhando com perspicácia diferente para o alto, os povo do Ocidente habitam a base da pirâmide. Os povos do Norte da África também. Da filosofia, não sabem nada, obviamente, mas, de algum modo, entreveem a sombra que ela deixa sobre as coisas e sobre os eventos do mundo. Para completar a metáfora da pirâmide, acrescenta-se que a base sopra sobre as convicções, os costumes, as obras, as instituições da tradição ocidental, e que, embora não se perceba, o poder impetuoso do sopro provém do vértice.
Diz-se que principalmente os jovens do Norte da África assistem televisão e se servem da Internet e dos celulares. Mas o que é mais importante destacar é a sua intuição de que o mundo está mudando em um sentido totalmente particular e não só muito mais profunda e rapidamente do que se suspeitava: intuem que, nos meios de comunicação, todas as perspectivas estão postas no mesmo plano, que, portanto, não existe uma perspectiva capaz de prevalecer e de dominar as outras, que permaneça quando elas se esvaem e que tenha, portanto, aquela "absoluteza" da qual os povos podem intuir o sentido, embora ignorem a palavra.
Cada uma das mensagem da grande mídia assegura a comunicação dos conteúdos mais importantes. Mas, justamente porque são todos que a asseguram, o nivelamento dos conteúdos é inevitável. Para quem habita a base do turbilhão em formato de pirâmide que investe sobre o passado, a preminência dos valores tradicionais enfraquece justamente porque eles aparecem em telas luminosas. Com isso, não se quer dizer que a tradição do Ocidente não pode ser Verdade absoluta pelo fato de que as mensagens da grande mídia operam aquele nivelamento, mas que o modo em que o declínio dos absolutos é posto à luz pelo pensamento filosófico do nosso tempo se faz sentir, de certa forma, por quem, escutando o que estamos dizendo, não seria capaz de entendê-lo.
E, certamente, esse modo de declinar fez-se sentir mais claramente na destruição dos absolutismos e totalitarismos político-econômicos operada na Europa do século XX. Evidências estas que revelam como as guerras e as revoluções do século XX europeu tendem a ter um caráter totalmente diferente das dos séculos anteriores, que, embora profundas e antecipadoras, invertem, sim, velhos ordenamentos absolutos, mas deixando que os novos conservassem o caráter da "absoluteza".
Turbilhão
Por isso, é mais difícil – mas não tanto – que as revoluções do Norte da África, que, de algum modo, podem se dizer europeias, abolindo regimes totalitários, tenha desembocado em novas formas de absolutismo, como o integralismo islâmico – no interior do turbilhão em formato de pirâmide, a relação da cultura não filosófica com o pensamento filosófico dos últimos dois séculos é obviamente, há muito tempo, mais direto do que aquele que pode ser instaurado permanecendo na base ou nos estratos mais baixos da pirâmide.
Essa cultura habita os seus estratos intermediários. Mas, portanto, é ainda do exterior que ela pode ouvir a voz daquele pensamento. Uma crítica científica, religiosa, artística etc. dos absolutos que foram afirmados sobretudo pela tradição filosófica pode mostrar que esta última afirma conteúdos diferentes e opostos com relação aos que tal crítica pretende defender, mas nem por isso ela pode concluir que esses conteúdos devem ser abandonados.
Por exemplo, seria uma imensa ingenuidade considerar que a filosofia de Aristóteles ou de Hegel deve ser deixada de lado porque a física moderna desapareceu ou porque foram descobertas as geometrias não euclidianas e a física quântica. Só uma crítica filosófica da tradição filosófica e das dimensões em que o absoluto filosófico se espelhou, degradando até a base da pirâmide, pode ser irrefutável.
O que foi dito até aqui é, de fato, apenas a descrição de um fato, embora de enormes proporções: o fato sobre de que a pirâmide consiste. Mas não se disse nada ainda sobre a irrefutabilidade, ou seja, sobre a verdade de tal fato: ainda não se disse nada sobre aquela outra forma de verdade que é a verdade da destruição da Verdade da tradição ocidental – ou seja, da Verdade que, se disse, pretende-se pôr-se, inalterável e imutável, acima do tempo e da história.
Estado e democracia
Esse giro de conceitos é decisivo. Tentemos esclarecê-lo dentro daquilo que é possível aqui. As democracias parlamentares destruíram os Estados totalitários do século XX, que, justamente, se apresentam como a forma terrena da Verdade e do Deus absolutos. Isso, do ponto de vista das ciências histórias, pode ser considerado um fato. Mas não se pode concluir disso que as democracias sejam verdade, e os totalitarismos, erro!
Concluir isso significa confundir os critérios da luta política com os do pensamento crítico filosófico – que, ao invés, a propósito, pode dizer bem mais (quando se sabe entendê-lo). Diz, de fato, que, de um lado, o Estado absoluto, controlando toda a vida dos súditos, predetermina o seu futuro, o ocupa inteiramente e impõe-lhe a sua própria legislação inviolável. E que, de outro lado, o Estado absoluto, mas também os seus súditos, são, porém, mais ou menos conscientemente convictos de que o futuro existe e é a dimensão de tudo o que ainda não existe, não é predeterminado, não é já ocupado por alguma inviolável legislação.
O Estado absoluto é, portanto, uma gigantesca contradição, em que a existência do futuro é, ao mesmo tempo, afirmada e negada. E a contradição não é só um estado de essencial instabilidade, antes ou depois destinada a ruir, mas é também a forma essencial do erro. Só se soubermos entrever de modo apropriado a contradição da qual está envolta uma certa situação histórica é possível prever a ruína desta última, sem que a previsão decaia ao nível de adivinhação ou de profecia (pode-se mostrar que o marxismo entreve de modo inapropriado a contradição do absolutismo capitalista e imperialista).
A destruição do Estado totalitário (e da sua suposta Verdade) por parte da democracia tem, portanto, verdade só se a democracia for consciente da contradição do totalitarismo. Senão (e é essa a situação), a democracia é uma forma de violência que se contrapõe à totalitária e que no Ocidente venceu só "de fato" – provisoriamente, aparentemente –, não "de direito".
A contradição do absolutismo político está presente também em todas as outras formas de absolutismo (às quais se fez referência acima) da tradição ocidental. Mas a sua espelha de forma derivada a contradição extrema e grandiosa que envolve a Verdade da tradição filosófica. Tal Verdade pretende, de fato, ser o Ordenamento de todos os ordenamentos. Tudo deve existir conforme à Verdade absoluta: ela não é somente a lei que domina o futuro dos súditos do Estado absoluto, mas é a Lei que predetermina e, portanto, ocupa e domina (além do presente e do passado) o futuro de todas as coisas, o enche completamente consigo mesma, e, portanto, o esvazia do modo mais radical, porque, assim preenchido, o futuro não é mais futuro.
Mas, ao mesmo tempo, a Verdade da tradição ocidental é o reconhecimento da existência do tempo e, portanto, do futuro: é a fé mais indestrutível e profunda nessa existência: pretende ser, justamente, a Lei do tempo, acima do qual põe a dominação do Deus, ele mesmo eterno e absoluto. Isto é, a Verdade absoluta é fé intransigente na existência e, ao mesmo tempo, na inexistência do tempo e da história. Portanto, é contradição extrema.
A essência mais escondida da filosofia do nosso tempo é o vértice do turbilhão que leva a tradição ocidental ao declínio. No vértice, essa extrema contradição é levada a plena luz. Mas também é o vértice ao qual nem a maior parte da própria filosofia contemporânea consegue se levantar, que repete, sim, a proclamação da morte da Verdade e de Deus, mas que só raramente sabe mostrar o fundamento sem o qual a proclamação é apenas fé, dogma, retórica.
Por outro lado, se conseguimos entrever de modo apropriado que a Verdade absoluta da tradição é contradição extrema e portanto extrema instabilidade, somos capazes de afirmar que essa Verdade está destinada ao declínio. Esta – no interior da cultura do Ocidente, que já é a cultura do Planeta – é a previsão fundamental com a qual toda forma de previsão deve fazer as contas (e a cujo esclarecimento eu trabalho há meio século). Mas enquanto tal previsão permanece invisível, continuando lá em cima, no vértice do turbilhão, o poder com o qual ela guia todo o turbilhão continua enfraquecido.
O papel da filosofia
Sinal disso que estupor, a irritação, senão a comiseração que os leitores também podem sentir lendo aqui que compete à filosofia uma função tão decisiva na história do mundo. Os estratos da pirâmide são imagens do vértice e, portanto, são a sua alteração, não deixam ver o seu poder e sempre menos quanto mais se desce para a base: incapazes de ver e de assumir o poder do próprio vértice, tendem a se assemelhar a um exército que vai à frente levando consigo, ao invés das suas próprias armas, as suas fotografias.
Nesse sentido, o vértice do turbilhão é um subsolo. Exatamente por isso, os grandes protagonistas da tradição ocidental não se sentem ainda derrotados: teocracia, Estado absoluto e "ético", paleocapitalismo, democracia (entendida tanto como união de liberdade e de Verdade, quanto como democracia processual fundada porém na metafísica do indivíduo) e também comunismo marxista continuam reivindicando a insuprimibilidade dos seus valores e sentindo-se no direito de guiar o mundo: diante deles, apresenta-se a forma frágil do turbilhão, enquanto a voz do poder do vértice – isto é, a essência do subsolo do pensamento do nosso tempo, constituída pelos poucos pensadores essenciais – continua sendo, acima de tudo, superada pelas vozes dessa fraqueza.
Também por isso, apesar da diferença radical entre as revoluções do passado e as do presente, não só os povos do Norte da África, mas também os de todo o Ocidente, estão apenas no início do processo que está destinado a levá-los ao abandono da sua tradição.
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O declínio da Verdade chega aos países árabes - Instituto Humanitas Unisinos - IHU