09 Abril 2011
"A sociedade em midiatização constitui o caldo cultural onde os diversos processos sociais acontecem. Ela é uma ambiência, um novo modo de ser no mundo, que caracteriza a sociedade atual. Comunicação e sociedade, imbricadas na produção de sentido, articulam-se nesse caldo de cultura que é resultado da emergência e do extremo desenvolvimento tecnológico. Mais do que um estágio na evolução, ele é um salto qualitativo que estabelece o totalmente novo na sociedade."
A análise é de Pedro Gilberto Gomes, jesuíta, pró-reitor acadêmico da Unisinos, graduado em Filosofia pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul - PUC-RS, e especialista em Teologia pela Universidade Católica de Santiago, no Chile. É ainda mestre e doutor em Comunicação pela Universidade de São Paulo - USP. Entre suas obras, destacamos Da Igreja Eletrônica à sociedade em midiatização (Ed. Paulinas, 2010) e Filosofia e ética da comunicação na midiatização da sociedade (Ed. Unisinos, 2006).
Eis o artigo.
A trajetória da sociedade dos mídias à sociedade em midiatização é um processo lento e gradual que se desenvolve em dois eixos profundamente interligados. De um lado, temos o eixo do tempo que nos insere na perspectiva de uma evolução cronológica que vai dos primórdios da consciência e chega aos dias atuais. O segundo eixo situa-se na dimensão qualitativa, de complexidade cada vez mais crescente nas relações, inter-relações e interconexões humanas. É a bissetriz de ambos que espelha a flecha simbólica da evolução humana.
Sobre a situação, Joel Rosnay [1] afirma:
Estamos prestes a viver uma mudança de paradigma. Penso que essa mudança de paradigma e essa transição entre a sociedade industrial e a sociedade informacional são a causa de alguns dos grandes problemas que temos hoje, tanto sociológicos quanto socioeconômicos, políticos ou culturais. Frente a essas mudanças, devem-se fazer três coisas. Em primeiro lugar, entender; em segundo, experimentar; e em terceiro, aprender.
Entender. Não se trata de deixar passar esta revolução tecnológica pretextando que se trata de tecnologia e que é mais uma que se soma às outras. Não, já não estamos nas lógicas de substituição, mas nas lógicas de integração. Lógicas de integração que abrem novos espaços. Depois da logosfera da linguagem, limitada pelo espaço e tempo, da grafosfera da escritura, não limitada nem no tempo nem no espaço, e da midiosfera da televisão, entramos na ciberesfera, das comunicações eletrônicas. Temos que inventar novas relações que sejam compatíveis com isso, caso contrário outros irão conquistar este novo espaço no nosso lugar. Deve-se entender, portanto, essas ferramentas [2].
O quadro abaixo [3] visibiliza essa evolução que vai do surgimento da logosfera até a ciberesfera, passando pela grafosfera e pela midiosfera, na linha do tempo. A cada estágio corresponde estágios de complexidades no processo de inter-relação social.
O primeiro estágio evolutivo do ser humano aconteceu com o brotar na consciência, caracterizado pela logosfera. O desenvolvimento do universo simbólico chega ao seu ápice com a palavra falada, consequência do gregarismo e da necessidade de se reagrupar e se defender dos embates com a natureza. É a fase da oralidade e a consolidação da aldeia. Emerge o poder dos anciãos como guardiães das tradições e educadores das novas gerações. Competia a essa classe a responsabilidade de transmitir aos jovens as conquistas, mitos e histórias primordiais da tribo.
Esse processo sofre uma transformação substancial com a invenção da escrita. Essa fase começou com os ideogramas, com os sinais sagrados. Nesse momento ainda havia a concentração do poder e a dissociação entre olho e ouvido não alcançara o seu ponto mais extremo. Com a invenção do alfabeto, o olho se independizou. Houve uma fragmentação dos sentidos com a consequente destribalização. Com isso, rompeu-se o poder dos anciãos, pois a memória da tribo podia, agora, ser armazenada. Ao mesmo tempo, entretanto, que significava um avanço qualitativo nas relações sociais, introduziu a categoria do analfabeto. O auge da grafosfera aconteceu com a invenção dos tipos móveis, por Gutenberg, no século XV. Houve o desenvolvimento das línguas nacionais (quebra do monopólio do latim) e o surgimento dos estados independentes. A destribalização atinge o seu ápice.
Um terceiro estágio evolutivo representou uma volta à tribo: a midiosfera. A eletricidade proporcionou o desenvolvimento dos meios eletrônicos de comunicação: telégrafo, cinema, rádio e a televisão. Esta última levou ao extremo o processo de retribalização. Criou-se uma comunidade verbo-oral. A TV traz a linguagem da evidência.
Até aqui se configura o que pode chamar de sociedade dos meios. Depois da quebra do paradigma da oralidade com a invenção da escrita, a humanidade foi aperfeiçoando e sofisticando seus dispositivos comunicacionais num nível de complexidade crescente. O desenvolvimento da técnica esteve (e está) umbilicalmente unido à especialização dos meios de comunicação.
Não obstante, essa volta à tribo, a retribalização de McLuhan, estrutura-se em bases totalmente distintas. Não é um retorno idílico ao passado oral, mas a uma dimensão de aldeia global: uma glo(tri)balização. É a síntese de algo novo com elementos do passado.
Entretanto, tal como aconteceu com a passagem da oralidade à grafia, em determinado momento, aquilo que parecia ser mais um elemento de complexificação da tecnologia existente, um degrau a mais a ser galgado no plano do desenvolvimento das tecnologias de comunicação, teve conseqüências radicais para o modo de ser no mundo social.
Portanto, esse quarto estágio não é apenas um passo a mais no processo de evolução. A ciberesfera representa um salto qualitativo, com tanta força de rompimento quanto o foi a invenção da escrita. Hoje acontece o que se poderia nomear de salto quântico no processo de evolução social. Contudo, esse salto acontece silenciosamente e vai transformando a existência da humanidade. Da Internet 1.0, passando pela Internet 2.0, estamos observando, lentamente, a configuração de um homem simbiótico, na feliz expressão de Joel Rosnay [4].
O primeiro que anteviu isso foi Pierre Teilhard de Chardin. Wolfe comenta que, para o jesuíta francês, Deus estava dirigindo, nesse exato momento, o século XX, a evolução do homem para a noosfera (...) uma unificação de todos os sistemas nervosos humanos, todas as almas humanas, por meio da tecnologia [5]. Teilhard de Chardin
menciona o rádio, a televisão e os computadores em especial com pormenores consideráveis, e alude à cibernética. [...] Esta tecnologia estava criando um "sistema nervoso para a humanidade", escreveu ele, "uma membrana única, organizada, inteiriça sobre a terra", "uma estupenda máquina pensante". [...] "A era da civilização terminou", e a da "civilização unificada está começando" [6].
Wolfe identifica a noosfera, a membrana inteiriça aduzida por Chardin, com a rede inconsútil de McLuhan. Para ele, a civilização unificada não é outra coisa que a aldeia global do pensador canadense. Ainda citando Teilhard, Wolfe constata:
Podemos pensar, escreveu Teilhard, que essas tecnologias são artificiais e completamente "exteriores aos nossos corpos", mas na realidade elas são parte da evolução "natural, profunda", do nosso sistema nervoso. Podemos pensar que estamos apenas nos divertindo", ao usá-las, "ou apenas desenvolvendo o nosso comércio, ou apenas propagando idéias. Na realidade, o que estamos fazendo é nada menos do que continuar num plano superior, por outros meios, a obra ininterrupta da evolução biológica. Ou, para dizer de outro modo, completa Wolfe: "O meio é a mensagem" [7]
A produção de Teilhard de Chardin é vasta e abrangente. Entretanto, para o que aqui nos interessa, basta-nos o seu livro sobre o futuro do homem. Numa série de conferências publicadas ao longo da década de 1940, Teilhard traça uma linha de reflexão que procura compreender para onde caminha a humanidade, tendo em conta o crescimento populacional e o desenvolvimento científico e tecnológico.
Nesse sentido, afirma:
Sobre a superfície geometricamente limitada da Terra, constantemente encolhidas pelo crescimento de seu raio de ação, as partículas humanas não só se multiplicam cada dia mais, mas, por reação a seus mútuos roçares, desenvolvem ao redor de si, automaticamente, uma madeixa cada vez mais densa de conexões econômicas e sociais. Ainda mais: exposta cada uma delas, até ao seu âmago, às enumeráveis influências espirituais emanadas a cada instante do pensamento, da vontade, das paixões de todas as demais, encontram-se constantemente submetidas interiormente a um regime forçado de ressonância. (…) Não é evidente que uma só direção permanece aberta ao movimento que nos arrasta: a de uma unificação sempre crescente? (...) Ao mesmo tempo em que a Terra envelhece mais depressa se contrai sua película vivente [8].
No caso do ser humano, sublinha, igualmente, sua ascensão psíquica correlativa à socialização pela:
- Aparição de uma memória coletiva onde se acumula por experiências acumuladas e se transmite por educação uma herança geral da humanidade;
- Desenvolvimento, por transmissão cada vez mais rápida do pensamento, de uma verdadeira rede nervosa que se envolve, a partir de certos centros definidos, a superfície inteira da Terra;
- Emergência, por concurso e concentração cada vez mais avançada dos pontos de vista individuais, de uma faculdade de visão comum que se funde, além do Mundo contínuo e estático das representações vulgares, num Universo fantástico, e, não obstante, dominável, de energia atomizada [9].
É importante que se retenha o que ele afirma do desenvolvimento de uma rede nervosa que envolve a superfície da terra. Desse modo, sublinha:
Ao nosso redor, tangível e materialmente, o invólucro pensante da Terra – a Noosfera – multiplica suas fibras internas, estreita suas redes; e, simultaneamente, eleva-se sua temperatura interior, sobe o seu psiquismo. É impossível se enganar com esses dois signos associados. Sob o véu, sob a forma da coletivização humana, continua sua marcha para frente a super-organização da matéria sobre si mesma, com seu efeito habitual, específico, de uma liberação de consciência. E, pela própria natureza dos elementos postos em jogo, o processo não poderá alcançar seu equilíbrio a não ser quando, ao redor do globo, o""quantum" humano encontre-se não só (...) circundado sobre si mesmo, mas também organicamente totalizado [10].
Marshall McLuhan , quase um quarto de século depois, vai assumir muito dessa posição quando afirma:
"Os meios elétricos tendem a criar uma espécie de interdependência orgânica entre todas as instituições da sociedade, o que dá nova ênfase ao parecer de Chardin de que a descoberta do eletromagnetismo deve ser considerada como um `prodigioso acontecimento biológico`. Se as instituições políticas e comerciais adquirem um caráter biológico por força dos meios elétricos de comunicação, é agora explicável que biologistas como Hans Selye pensem no organismo físico em termos de rede de comunicação" [11].
De uma maneira mais simplificada, tentando exemplificar graficamente, o esquema abaixo forneces elementos para se compreender o que está acontecendo hoje nesse estágio da ciberesfera. O mapa sistêmico expressa a vertebração do processo de midiatização hoje vivido. Sociedade em midiatização é o ambiente novo, mais amplo e mais básico do que a concepção de uma sociedade dos meios, ancorada na visão dos meios apenas como dispositivos tecnológicos de comunicação.
O mapa sistêmico mostra a sociedade na sua dinâmica de comunicação, mostrando a relação entre conteúdo e resultado. É a comunicação que constitui a sociedade, cujo conteúdo expressa toda a sua vida: passado, presente, futuro, histórias, sonhos etc. O resultado é o compartilhamento de vivências entre as pessoas de todas as gerações. O processo comunicacional possibilita o avanço progressivo da sociedade em níveis cada vez mais complexos. O relacionamento da mídia tanto com os processos de significação quanto com os processos sócio-culturais expressam a realidade e se dá no marco dos processos midiáticos. Esses dois movimentos, além disso, interagem para a construção do sentido social.
Hoje, com o advento da tecnologia digital, essas inter-relações se complexificaram e ampliaram, criando uma nova ambiência. No mapa sistêmico apresentado, todos os inter-relacionamentos comunicacionais bem como os processos midiáticos ocorrem no caldo cultural da midiatização. Portanto, a realidade da sociedade em midiatização supera e engloba as particulares dinâmicas que a sociedade engendra para se comunicar. O meio social é modificado. A tela de fundo, o marco dentro dos quais interagem as dinâmicas sociais, é gerado pela assunção da realidade digital. A virtualidade digital traz como conseqüência a estruturação de um novo modo de ser no mundo. As inter-relações recebem uma carga semântica que as coloca numa dimensão radicalmente nova, qualitativamente, em relação ao modo de ser na sociedade até então. O processo humano de comunicação é potencializado, na sociedade contemporânea, pela sofisticação de seus meios eletrônicos.
A sociedade em midiatização constitui, nessa perspectiva, o caldo cultural, repetimos, onde os diversos processos sociais acontecem. Ela é uma ambiência, um novo modo de ser no mundo, que caracteriza a sociedade atual. Comunicação e sociedade, imbricadas na produção de sentido, articulam-se nesse caldo de cultura que é resultado da emergência e do extremo desenvolvimento tecnológico. Mais do que um estágio na evolução, ele é um salto qualitativo que estabelece o totalmente novo na sociedade.
Notas:
1. ROSNAY, Joël de. "Un cambio de era". In RAMONET, Ignacio. La post-televisión. Multimedia, Internet y Globalización. Madrid: Icaria, sd., p.17-32.
2. Idem, p. 31.
3. Este quadro foi montado a partir de um quadro semelhante da evolução humana, de Teilhard de Chardin, no qual foram incorporadas as eras da comunicação expressas por Rosnay.
4. ROSNAY, Joel. Homem simbiótico. Perspectivas para o Terceiro Milênio. Petrópolis: Vozes, 1997.
5. WOLFE, Tom. "Introdução". In: MCLUHAN, Marshall. McLuhnan por McLuhan. Rio de Janeiro: Ediouro, 2005, p. 17.
6. Idem ibidem.
7. Idem, p. 18
8. CHARDIN, Pierre Teilhard de. El Porvenir del Hombre. Madrid: Taurus, 1962, p. 67.
9. Idem, p. 162.
10. Idem, p. 163.
11. MCLUHAN, Marshall. Os meios de comunicação como extensões do homem. Tradução: Décio Pignatari. 8 ed. São Paulo: Cultrix, 1996.
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