10 Abril 2011
Ao longo dos 41 anos do regime comunista no antigo país do bloco do Leste, uma rede subterrânea de grupos e indivíduos manteve viva a fé católica, chegando ao ponto de ordenar homens casados e mulheres. Na semana passada, suas conquistas foram tardiamente homenageadas.
A reportagem é de Christa Pongratz-Lippitt, publicada na revista inglesa The Tablet, 08-04-2011. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Foi em uma comovente cerimônia na Igreja da cidade das Nações Unidas, Viena, no sábado da semana passada, 21 anos após a queda da Cortina de Ferro, que o maior e mais conhecido grupo subterrâneo da antiga Tchecoslováquia – chamado de "Koinótés" e fundado pelo falecido bispo Felix Maria Davidek (foto) – recebeu o Prêmio pela Liberdade na Igreja da Fundação Herbert-Haag, concedido anualmente a pessoas e instituições "por ações corajosas dentro da cristandade".
Embora sendo uma figura controversa e polêmica, o carisma de Felix Maria Davidek e seus extraordinários dons já foram reconhecidos por muitos homens da Igreja Católica, incluindo bispos e cardeais. Davidek reconheceu os sinais dos tempos, e sua resposta foi profética.
Situações desesperadoras – neste caso, a severa perseguição por um dos regimes ateus mais implacáveis – merecem remédios desesperados, e Davidek ordenou homens casados e mulheres ao sacerdócio católico. As estratégias de sobrevivência que ele tomou iluminam o potencial da Igreja para a reforma, que nunca acaba com a morte dos reformadores.
Já antes da invasão comunista em 1948, Davidek ficou fascinado com a ideia de Teilhard de Chardin de uma progressão evolutiva rumo a uma consciência cada vez maior. Ele estava convencido de que, além de estudar filosofia e teologia, os seminaristas deveriam ter uma formação universitária ampla e também estudar as humanidades e as ciências.
Enquanto ele era seminarista na Tchecoslováquia sob a ocupação alemã durante a Segunda Guerra Mundial, ele sonhava em fundar uma universidade católica. Após a ordenação, em 1945, Davidek continuou seus estudos universitários. Ele fez medicina e, finalmente, obteve um doutorado em psicologia. Ao mesmo tempo, ele fundou o "Atheneum", um curso preparatório para jovens católicos, homens e mulheres, que não haviam sido autorizados a participar das escolas secundárias durante a ocupação alemã, com o objetivo de prepará-los para a matrícula e permitindo-lhes assim estudar teologia.
Em 1948, entretanto, os comunistas tomaram o poder. Davidek continuou com seus cursos no Atheneum em segredo, mas logo ficou sob a vigilância da polícia e foi preso. Seus companheiros presos disseram que ele era um prisioneiro particularmente audacioso que frequentemente se rebelava e, consequentemente, passou longos períodos em isolamento. Durante seus 14 anos de encarceramento, ele anotou em pedaços de papel higiênico seus planos meticulosos para a sobrevivência da Igreja em uma ditadura comunista e ateia.
Perseguição
Os anos 1950 foram o pior período da perseguição à Igreja na Tchecoslováquia. As faculdades de teologia das universidades foram fechadas. Apenas dois seminários católicos foram autorizados a permanecer abertos, e ambos foram colocados sob controle estatal. Os bispos haviam proibido os seminaristas de frequentar esses seminários controlados pelo Estado, e logo muitos deles foram presos. Uma sede depois da outra acabou ficando abandonada, e a polícia secreta observava de perto todas as atividades da Igreja.
Quando foi libertado em 1964, Davidek imediatamente começou a colocar seus planos em ação. Ele logo foi capaz de reunir muitos católicos comprometidos em torno dele. Eles chamaram seu grupo de "Koinótés" (derivado de “koinonia”, palavra grega que significa comunidade) e reuniam-se regularmente em segredo à noite e nos fins de semana, já que era obrigatório ter um emprego durante o dia.
Davidek ensinou uma grande variedade de temas e, secretamente, convidou clérigos proeminentes como oradores convidados. Graças a amigos que as haviam trazido às escondidas do exterior, ele também foi capaz de estudar as conclusões do Concílio Vaticano II e as obras de Karl Rahner, Yves Congar, Henri de Lubac e outros teólogos muito conhecidos da época junto com seus alunos.
O maior desafio era garantir um número suficiente de sacerdotes fidedignos nos quais pudesse confiar que não iriam colaborar com o regime. Até 1967, os candidatos foram enviados ao exterior para serem ordenados clandestinamente na Alemanha ou na Polônia. Tanto o arcebispo de Cracóvia, Karol Wojtyla, que mais tarde viria a ser o Papa João Paulo II, e o cardeal Joachim Meisner, de Colônia, então bispo de Berlim, ordenaram sacerdotes tchecoslovacos clandestinamente nessa época.
Davidek sabia que nunca iria obter permissão para deixar o país. Por isso, ele enviou Jan Blaha, um jovem químico que participava de conferências no exterior e era membro do Koinótés, a Augsburg, onde foi ordenado sacerdote clandestinamente pelo bispo Josef Stimpfle. Poucos meses depois, em Praga, em outubro de 1967, Blaha foi sagrado bispo por Dom Peter Dubovsky, um jesuíta eslovaco, que também havia sido ordenado clandestinamente. Dom Blaha, então, consagrou Felix Davidek. Todas essas ordenações e consagrações foram, desde então, devidamente reconhecidas e declaradas como válidas pelo Vaticano.
A partir de então, o Koinótés se tornou o núcleo de uma rede clandestina de grupos católicos comprometidos da Tchecoslováquia. Davidek estava convencido de que a Igreja só poderia sobreviver e cumprir seu mandato em pequenas entidades e que, como na Igreja primitiva, cada grupo deveria ter seu próprio bispo. Por isso, ele logo ordenou um número considerável deles.
Depois que os tanques soviéticos destruíram a efêmera Primavera de Praga de 1968, Davidek vivia com medo de que os comunistas pudessem, a qualquer momento, tentar liquidar completamente a Igreja toda, deportando todos os clérigos para a Sibéria. Por isso, ele consagrou bispos de apoio, de "reserva", para assumir caso tal situação se verificasse.
Ele também ordenou homens casados, em primeiro lugar para o rito greco-católico, onde isso é costume. A Igreja greco-católica tinha sido dissolvida pelos comunistas e incorporada à força à Igreja Ortodoxa, e todos os seus bispos haviam sido presos. Muitos dos seus membros tornaram-se mártires, mas alguns escaparam e foram para a clandestinidade. O Koinótés trabalhou em estreita colaboração com eles.
Mais tarde, Davidek também ordenou homens casados de rito latino como sacerdotes "birrituais", que eram autorizados a celebrar em ambos os ritos. Ele consagrou até um bispo casado. Uma das principais razões para essas iniciativas era que as autoridades muito improvavelmente suspeitariam que homens casados fossem padres na católica Morávia de rito latino.
Ordenação de mulheres
Davidek também chegou a ordenar um pequeno número de mulheres. Há já algum tempo, ele vinha discutindo o papel das mulheres na Igreja, nos encontros do Koinótés. Ele estava convencido de que, como as mulheres eram batizadas, distribuíam a Comunhão aos doentes e tiveram o seu lugar como diaconisas na hierarquia da Igreja do primeiro milênio, elas apenas estavam excluídas do sacerdócio por razões históricas e não dogmáticas. Sua principal razão para a ordenar mulheres era pastoral. As mulheres nas prisões femininas – especialmente as religiosas que estavam presas em grande escala e eram muitas vezes expostas a terríveis torturas sexuais – não tinham ninguém para cuidar de suas necessidades espirituais, enquanto que, nas prisões masculinas, geralmente havia vários padres entre os prisioneiros homens.
Em dezembro de 1970, ele convocou um "sínodo pastoral" especial para discutir o papel das mulheres na Igreja, mas, quando ele colocou a ordenação feminina em votação, a metade dos membros do Koinótés que compareceram votaram contra. A questão dividiu a comunidade e se tornou um marco na sua história. Poucos dias depois, no entanto, Davidek ordenou Ludmila Javorová (foto), um membro proeminente do Koinótés, e mais tarde fez dela o seu vigário-geral, cargo no qual ela permaneceu até a sua morte em 1988.
Eu me lembro que discuti a respeito de Dom Davidek e de sua ordenação de homens casados e de mulheres com o arcebispo John Bukovsky, em Viena, no final dos anos 1990. Bukovsky, que hoje está aposentado, me disse que o Vaticano havia lhe enviado a uma missão de investigação na Tchecoslováquia, no verão de 1977. Ele conseguiu falar com Dom Davidek por várias horas, disse ele, e sabia que Davidek havia ordenado homens e mulheres casados. "Fiquei muito surpreso ao ser recebido pela sua vigária-geral, vestida de branco e trajando uma cruz", acrescentou. As ordenações eram ilícitas mas válidas, ele destacou naquele tempo, e disse que Roma havia sido totalmente informada.
As "reordenações"
Quando a Cortina de Ferro caiu em 1989, muitos sacerdotes e bispos ordenados clandestinamente, especialmente os do Koinótés, tinham primeiro grandes esperanças de que Roma lhes permitiria formar uma prelatura pessoal especial, de forma que pudessem continuar seu trabalho. Demorou anos para resolver o seu status de ordenação, já que as ordenações clandestinas raramente eram estabelecidas por escrito. A maior parte deles teve que concordar em ser condicionalmente reordenado, no caso de suas ordenações não serem válidas. Um certo número de padres casados foram depois assumidos pela reestabelecida Igreja greco-católica.
Em 1992, aqueles que se recusaram a ser reordenados foram proibidos de praticar seu ministério sacerdotal sob a ameaça de excomunhão. E em todo esse tempo, é claro, Ludmila Javorová e suas colegas foram completamente ignoradas. Na cerimônia de premiação, ela disse: "O trabalho foi iniciado. Outros devem continuar. Mesmo que o Vaticano considere o assunto encerrado, é minha firme convicção que, em algum momento no futuro, esse dossiê será reaberto".
Durante muitos anos depois de 1989, sempre que eu me encontrava com qualquer um desses padres clandestinos – algo que eu fazia e continuo fazendo regularmente –, eles ainda esperavam contra toda a esperança que Roma mudaria de opinião. Eles me pediam para não publicar entrevistas e se recusavam a criticar os poderes de Roma de qualquer forma que isso pudesse prejudicar a sua causa. Gradualmente, à medida que os mais velhos morriam e seus números diminuíam, eles perceberam que haviam sido entregues à sua sorte. E mesmo assim eles continuaram sendo o que eram desde o início – católicos comprometidos, humildes e fiéis.
Na cerimônia de entrega do prêmio em Viena, o Koinótés de Dom Davidek foi pela primeira vez reconhecido publicamente por aquilo que foi – um valente esforço para assegurar a sobrevivência da Igreja sob perseguição. No seu “laudatio”, o teólogo suíço Hans Küng, professor da Universidade de Tübingen, o professor Hans Jorissen, ex-professor de dogmática da Universidade de Bonn e provavelmente o principal especialista em Igreja clandestina fora da antiga Tchecoslováquia, e o professor Walter Kirchschläger, da Universidade de Lucerna, lamentaram o potencial que se perdera. Como o professor Jorissen disse, "o conceito de uma re-evangelização missionária da República Tcheca, que hoje é um dos países mais secularizados da Europa, poderia ter usado as experiências da Igreja clandestina, que foi, e ainda poderia ser hoje, um modelo para a re-evangelização".
Essa mensagem é repetida em um novo livro sobre a Igreja clandestina da então Tchecoslováquia, Die verratene Prophetie (A profecia traída), editado por Erwin Koller, pelo professor Küng e por Peter Krizan, e publicado em alemão pela editora Exodus, de Lucerna.
Dom Dusan Spiner, que também foi vigário-geral de Davidek, disse na cerimônia de premiação: "O mundo secular não é um continente de bárbaros e pagãos, a quem devemos levar a mensagem do evangelho. Ele é o nosso mundo e a nossa herança, e é nesse mundo que devemos viver com coragem, como uma comunidade da Igreja".
Dom Spiner e Ludmila Javorová foram a Viena para receber o Prêmio da Fundação Herbert-Haag em nome do Koinótés. Eles foram aplaudidos de pé, especialmente quando anunciaram que iriam usar o dinheiro para as comemorações do aniversário de Dom Davidek, que completaria 90 anos em setembro.
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A Igreja secreta e os clérigos clandestinos da Europa comunista - Instituto Humanitas Unisinos - IHU