24 Março 2011
Grande é a incerteza debaixo do céu dos caças aliados. É guerra ou não? A ONU decidiu bem, mas o frenesi das bombas ganhou força? Erramos todos ou só quem, por trás da no fly zone, escondeu os seus interesses econômicos e financeiros?
A reportagem é de Toni Jop, publicada no jornal L`Unità, 24-03-2011. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Kadafi estava para massacrar a oposição popular aninhada até agora só em Bengasi: se não se tivesse começado a atirar, a esta hora quem contaria os túmulos de seres humanos mortos pela liberdade, enquanto invocavam ajuda inutilmente?
Eis alguns problemas de consciência, suficientes para tirar convicção da ação de impedimento militar contra o retorno do líder líbio ao poder pleno e ditatorial. Mas também para permitir que a guerra deite raízes sob as janelas das nossas casas sem que nos demos conta plenamente.
Alex Zanotelli é padre missionário comboniano de Verona, Itália.
Eis a entrevista.
Feia, feia história, padre Alex Zanotelli, não é mesmo?
Cautela, no entanto. Nenhum de nós tem a verdade no bolso. Em segundo lugar, esse é um episódio muito difícil de julgar. É preciso entender os seres humanos, as pessoas que se perguntam "devemos intervir?".
Mas, obrigados pelos nossos saberes a dar uma resposta, aonde iremos parar?
Partamos do respeito devido aos que se colocam essas interrogações, levemos em conta também as dificuldades de quem, mesmo desde sempre contrário à guerra, como a Itália, se encontra agora nessa posição sofrida, dolorosa, e se pergunta se fizemos o que devíamos.
Isto nos parecia justo, irrenunciável: impossível suportar que essa primavera líbia terminasse em um banho de sangue.
Devíamos construir uma força de interposição, mas não a vejo. Eu penso assim. Ao invés, me pergunto como a Itália pode intervir em um conflito que se refere à Líbia. Del Boca escreve que a nossa guerra colonial causou a morte de 110 mil líbios. O que fazemos? Reabrimos as contas?
Berlusconi defende que os nossos caças não atiraram e não vão atirar...
E quem acredita nisso? Uma grande mentira do presidente do Conselho, porém é a guerra que esmaga sistematicamente a verdade dos fatos. Você entra na guerra e se finca em um quarto fechado e escuro. Não convém esperar para ver a claridade. A escuridão faz parte da guerra, não é uma opção...
Mas, um passo atrás, muitos pensaram que estava se atirando para salvar muitas vidas de líbios...
Eu também dou um passo atrás: não somos nós, italianos, os melhores juízes. Enchemos Kadafi de armas, como talvez ninguém mais no mundo. Depois atiramos nele com outras armas. Essa contradição merece também um questionamento moral ou não? Armamo-lo até os dentes, para depois descobrir – mas quem acredita nisso – que ele deveria ser abatido. No nosso diálogo com a Líbia, o único vocabulário é o das armas...
Além das armas, também trocamos beijos com o ditador...
Gestos macabros. Armas, beijos nos anéis e um belo contrato, assinado por quase todos os políticos italianos, que transformava Kadafi em um gendarme por conta nossa: ele devia limpar o mar de todos os pobres que o enfrentavam para fugir da miséria, da violência e da morte. A ONU nos autorizava só a impedir que os aviões de Kadafi voassem. Daí alçava voo uma tratativa que, além do mais, já havia iniciado...
Mas nos muros de Bengasi está escrito "Vive la France", "Vive Sarkozy". Quantos líbios, dentre os que escreveram essas palavras nos muros, estariam agora debaixo da terra sem esse impulso?
Respondo com cautela: quantos morrerão nos próximos dias, nas próximas semanas nesse pântano que estamos contribuindo para criar? Porque ninguém me convence de que Kadafi agora está mais fraco e disposto a tratar do que antes dos bombardeios. E porque, neste momento, nada me garante que tudo será rápido e indolor. Ou melhor, agora temos um outro fardo mortal sobre as costas.
Qual seria?
Um dado real e terrível: digamos que o cristianismo está em guerra contra o Islã, as frentes agora são três, e nós somos os cruzados, vômito de uma antiga campanha de sangue. E o Bahrein? Deixamo-lo que se perca, já que é tão pequeno e distante? Não nos damos conta: toda vez que usamos as armas produzimos infecções piores do que as que queríamos enfrentar. Veja o Kosovo: está melhor ou pior? Temo que esteja ocorrendo o golpe final da primavera árabe. Sorte que João Paulo II havia tomado distância da guerra no Iraque, sorte que o nosso bispo na Líbia havia se distanciado da solução militar depois adotada...
E a esquerda? Diferenciou-se da direita, do governo...
Não gosto de dizer isto, mas a esquerda é parte desse sistema, todos ganhamos, as armas são um problema de todos. Pode ser que eu me equivoque, mas temo muito que nos encharquemos e que Kadafi não cederá. Talvez no fim ele vai entregar a vida, mas teremos contribuído para criar um outro herói, por não termos entendido o valor e a força da recusa às armas, à guerra, como diz a Constituição deste país.
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"Agora temos um outro fardo mortal sobre as costas" - Instituto Humanitas Unisinos - IHU