24 Março 2011
Na avaliação do professor André Singer, do Departamento de Ciências Políticas da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP (FFLCH), o governo Dilma Roussef tende, ao menos de início, a não afastar-se das linhas mestras do projeto político liderado por Lula, que envolve "transformação dentro da ordem, sem ruptura". Ou seja, a seu ver, a continuidade, no sentido de ausência de radicalismo, deve prevalecer. Isso porque, dentro da ampla coalizão que elegeu Dilma, as forças políticas ligadas ao capital rejeitam medidas mais contundentes, tais como imposto sobre grandes fortunas ou redução da jornada de trabalho para 40 horas semanais. Singer não descarta tais mudanças, mas acredita que dependeriam de uma alteração na atual correlação de forças.
O professor da FFLCH chama atenção para a complexidade da situação: no interior da composição vencedora, o antagonismo entre de um lado os trabalhadores organizados, e de outro lado "o que restou do capital industrial nacional", pode ser superado quando se trata de combater a atual política cambial, com a finalidade de preservar empregos e barrar a desindustrialização. "Mexer na política cambial significa um confronto com o setor dominante do capital, que é o capital financeiro. Para enfrentar este bloco é preciso reunir muita força e, portanto, vai haver necessidade de unir esses setores, porque o poder do capital financeiro é muito grande".
Na sua opinião, a vitória de Dilma confirma suas teses sobre o lulismo, fenômeno que expressa um realinhamento do eleitorado e o advento de uma nova e duradoura agenda política para o Brasil: "Existe uma nova maioria, articulada em torno da idéia de combate à pobreza sem ruptura da ordem". A nova maioria pode incluir interesses muito amplos: desde os setores mais pobres até setores do próprio capital financeiro, "à medida que você mantém, por exemplo, uma taxa de juros relativamente alta". Contudo, o núcleo dessa vasta composição social, precisa ele, "é formado pelos interessados no processo de distribuição de renda por meio de maior intervenção estatal, que tem um sentido antineoliberal".
O governo Lula, diz, mudou a agenda, que deixou de ser a diminuição do Estado e ampliação do mercado, para ser uma agenda de combate à pobreza: "O que me leva a achar que não está correto o diagnóstico de que o governo Lula aprofunda o neoliberalismo". Singer pensa que a oposição não tem como fugir da nova pauta fixada pelo realinhamento, o que explica as promessas feitas pelo candidato José Serra no segundo turno, tais como aumento do salário-mínimo e ampliação do Bolsa-Família.
A entrevista foi concedida a Pedro Estevam da Rocha Pomar e Kamila el Hage e publicada pela Revista Adusp, janeiro 2011.
Eis a entrevista.
Eleita Dilma Roussef, que se pode esperar do novo governo? Estão dadas as condições, políticas e econômicas, de avançar em determinadas políticas sociais que caracterizaram o governo Lula e garantiram o voto majoritário das camadas populares na candidata do Partido dos Trabalhadores?
À primeira vista a eleição indica uma continuidade. Eu não saberia dizer no primeiro momento se os resultados são propícios a um grande avanço, a uma mudança significativa em relação ao que nós já tivemos, sobretudo com relação ao segundo mandato do presidente Lula, no qual eu identifico uma certa inflexão com relação ao que aconteceu no primeiro. São sempre inflexões leves e às vezes passam desapercebidas pelo próprio estilo de governo que tem a ver, no meu ponto de vista, com o projeto político que está em curso, que é um projeto que envolve uma ausência de radicalização política. Uma das pedras basilares desse projeto, que é um projeto transformador, a meu ver, é que essa transformação se dá dentro da ordem, sem ameaça à ordem estabelecida. É uma das características estruturais do momento que a gente está vivendo.
Então, voltando à sua pergunta inicial, a gente tem que esperar, em um primeiro momento, continuidade no que diz respeito ao próprio equilíbrio das forças, pois foi um governo de composição política e um governo de composição social. Na verdade, é uma coalizão de interesses muito ampla e eu diria que a tendência seria de manter o mesmo tipo de equilíbrio que já havia. Desse ponto de vista, os resultados são propícios sim para uma continuidade. Não seria capaz de afirmar nesse momento, da análise que eu tenho dos dados, que é preliminar, que ela indique um avanço significativo.
Será possível continuar adotando medidas de distribuição de renda e ampliação de programas como o Sistema Único de Saúde sem realizar uma reforma tributária de viés progressivo, que amplie os impostos sobre grandes fortunas e sobre o sistema financeiro, por exemplo? Ou seja, tomando como ponto de partida esse pressuposto de que o projeto não envolve uma radicalização, não teríamos aí um dilema?
É um dilema de grau. A dificuldade de análise da situação é saber em que grau esse dilema se coloca, porque a questão do Sistema Único de Saúde, que você levanta, é fundamental. Nesses primeiros momentos do pós-eleição, já surgiu no âmbito do futuro governo a hipótese de volta de um tributo do tipo CPMF. Entendo que esse é o limite. Eu não acredito que se vá além disso no sentido de uma reforma tributária progressiva, muito menos no que diz respeito a um imposto sobre grandes fortunas. Digo isso porque me pareceu significativo aquele momento da campanha eleitoral em que, por uma razão ou por outra, foi registrado como programa da candidata Dilma aquele que havia sido o programa proposto pelo IV Congresso Nacional do PT, que ocorreu em fevereiro.
Nesse programa proposto pelo PT, que era uma proposta de programa que deveria ter sido debatida com os demais partidos, estavam incluídas duas propostas importantes, uma das quais era justamente o imposto sobre grandes fortunas e a outra era a redução da jornada de trabalho para 40 horas. Estas duas propostas são emblemáticas, porque elas são justamente típicas do que eu chamo de antigo PT. Ou seja, o PT tinha até 2002 uma configuração de partido de classe, com elementos de radicalismo explícito. O que havia sido uma grande novidade no panorama partidário brasileiro. De 2002 para cá, o PT muda, sem, a meu ver, deixar de ter dentro de si o que eu chamo de primeiro PT. Essa aprovação no IV Congresso dessas duas propostas típicas do primeiro PT mostra, confirma, a hipótese de que esse antigo PT ainda existe e ainda tem relevância dentro do atual PT.
No entanto, uma vez registrado esse programa, como programa da candidata, isso incitou uma polêmica pública nos meios de comunicação. A decisão do comando da campanha foi retirar o programa, de tal forma que, explicitamente, essas duas propostas ficaram de fora. É verdade que, por razões que eu desconheço, até o final da campanha, incluindo aí o segundo turno, não foi registrado um novo programa. De tal forma que ficamos sem saber exatamente quais são, oficialmente, os compromissos que tivessem sido registrados. Sei que foram divulgados pelo comitê de campanha alguns pontos, mas não foi registrado um programa em substituição àquele. Voltando à questão, minha análise sobre esse momento é a seguinte: por que essa proposta foi retirada, especificamente nas duas questões, impostos sobre grandes fortunas e redução da jornada de trabalho? Porque isso não é consensual na coalizão de forças que sustenta a candidatura Dilma. É evidente que entre essas forças estão forças ligadas ao capital.
O PMDB se colocou na posição de fazer a mediação com o capital, explicitamente dizendo que faria o diálogo com os empresários, e eles rejeitam essas duas propostas. Então essas propostas não são consensuais na coalizão e, por isso, elas não serão levadas adiante, a menos que no percurso haja uma modificação da correlação de forças, o que nesse momento não está posto. A situação que nós estamos vivendo é, do ângulo da luta de classes, bastante intrincada. Porque se de um lado existem divergências nítidas entre o segmento que representa a classe trabalhadora e o segmento do capital, no que diz respeito por exemplo a essas duas questões (imposto sobre grandes fortunas e redução da jornada de trabalho), por outro lado existem pontos de unidade fundamentais entre pelo menos o que restou do capital industrial nacional e os trabalhadores.
Esta questão diz respeito ao problema do câmbio. Quer dizer, esses dois setores estão interessados em que haja uma mudança da política cambial que impeça o Brasil de se desindustrializar e possibilite, segundo alguns economistas que eu respeito têm afirmado, que o Brasil entre em um período de reindustrialização. Porque já estaria em curso um processo de desindustralização. Para que isso aconteça é preciso mexer na política cambial, e mexer na política cambial significa um confronto com o setor dominante do capital, que é o capital financeiro. Para você enfrentar este bloco é preciso reunir muita força e portanto vai haver necessidade efetivamente de unir esses setores, porque o poder do capital financeiro é muito grande. Para concluir, é um jogo de forças de coalizões móveis com contradições internas, cujo desenho é muito intrincado e as vezes é difícil de entender, até porque esses processos têm se dado dentro do Estado e não por meio de mobilizações da sociedade. Então, penso que por vezes é difícil para a própria sociedade enxergar onde é que estão os pontos de unidade e de conflito.
Seria uma aproximação entre os setores organizados da classe trabalhadora e, digamos, a burguesia industrial, para falar em termos clássicos.
Entendo que tem um aspecto da situação atual que evidentemente coloca no mesmo campo esses dois setores e outros, porque nós poderíamos falar dos agricultores, da agricultura familiar, de conjunto, de setores que se contrapõem a essa política cambial que, por sua vez, está ligada à política de juros, poque a gente sabe que esse capital especulativo vem ao Brasil porque os juros são muito altos. Seria necessário mexer na política cambial e também na política de juros, que até agora não foi possível, o que mostra que o poder do setor dominante do capital, que hoje é o financeiro, é muito grande. Então, tem pelo menos um aspecto do conjunto que coloca no mesmo campo forças que são em outros aspectos antagônicas nessa questão tributária. Por isso que, a meu ver, não haverá insistência nessa questão tributária, porque ela divide um bloco que tem que permanecer unido.
Como você classifica essa grande coalizão de forças, presente no governo Lula, e também na candidatura da Dilma, e que vai da esquerda, passa pelo centro e tem inclusive agrupamentos e personalidades marcadamente de direita, que é uma aliança sui generis?
Tem que separar duas coisas: uma aliança no plano partidário e uma outra coalizão, vamos chamar assim, de interesses sociais. No plano partidário, essas alianças que são com partidos do campo da direita obedecem a uma lógica que é a seguinte: o sistema político brasileiro está tendendo a se bipartidarizar, e essa tendência de bipartidarização corresponde a um aspecto da lógica eleitoral. Quando se tem sistema presidencialista com segundo turno, em que você obriga os partidos que quiserem ser competitivos a formar grandes maiorias, do contrários eles não têm chance de disputar, historicamente você estimula a bipartidarização, porque qualquer um que queira ter chances precisa se agregar a uma das opções majoritárias, ou possivelmente majoritárias. Você tende, na verdade, a produzir partidos que são guarda-chuva.
Então, se de um lado você tem uma tendência à bipartidarização, por outro lado tem um sistema parlamentar muito fragmentado. Nós tivemos na legislatura passada, que termina agora ao final de 2010, 32 partidos representados na Câmara dos Deputados. É verdade que uma boa parte desses partidos não são expressivos do ponto de vista do número de cadeiras. Os partidos relevantes são seis ou sete. No entanto, se para governar você precisa de maioria ampla, no caso brasileiro não tanto para aprovar projetos, mas para não ser, o governo, pressionado por interesses locais muito fortes, precisa ter uma maioria que lhe permita uma certa largueza. Para conseguir isso você precisa ter uma base de apoio muito extensa.
Então pelos dois lados, tanto do lado da eleição presidencial quanto do lado do sistema parlamentar, tem-se uma situação que obriga os partidos a buscarem apoio em setores muito diversificados. Isso faz com que já em 1994 o PSDB tenha começado esse sistema ao se aliar ao PFL, o que na época foi uma grande surpresa. O PSDB se apresentava como um partido de centro- esquerda e fez uma aliança com um partido do campo da direita. Esse processo, iniciado pelo PSDB, se tornou praticamente obrigatório. Concordo com você no uso da expressão sui generis, mas eu diria que não é essa aliança, é o próprio sistema político brasileiro que é sui generis, é muito singular. Tem até uma característica que não conheço em nenhum outro lugar: é um sistema presidencialista com um partido puramente parlamentar, que é o caso do PMDB, significativo, representativo. Quer dizer, um partido que não disputa eleição presidencial desde 1994, mas é importante na formação dos governos. Uma situação inusitada. Tendo a achar que no plano partidário essas alianças são expressão dessa singularidade do sistema político brasileiro.
No plano social, existe uma nova maioria, articulada em torno da idéia de combate à pobreza sem ruptura da ordem. Esta é a agenda desta nova maioria. E ela realmente pode, num determinado momento, representar interesses muito amplos: desde os setores mais pobres, que são os efetivamente beneficiados pelos programas de transferência de renda, aumento do salário mínimo, benefícios de prestação continuada, "Luz para Todos" e vários outros, até setores do próprio capital financeiro, à medida que você mantém, por exemplo, uma taxa de juros relativamente alta. Ela vem caindo, mas ainda é relativamente alta. Então é uma composição que pode representar um arco muito grande de interesses. Mas eu diria que o núcleo dessa nova maioria é formado pelos interessados no processo de distribuição de renda por meio de maior intervenção estatal, que tem um sentido antineoliberal, mas sem ruptura na ordem. Embora você possa ter até o capital financeiro como parte desse arco, num determinado momento, ele não está no centro dessa nova maioria.
O presidente Lula anunciou sua disposição de, após o final de seu mandato, envolver- se pessoalmente na chamada reforma política. O PT defende o financiamento público das campanhas e o voto em lista. O que você pensa dessas propostas?
Este é um dos pontos-chave para entender o que vai acontecer no Brasil. O problema da mudança das regras do jogo político é que é preciso fazê-la com muito cuidado. Muitas vezes mudanças institucionais têm um resultado oposto ao esperado. Sempre penso no exemplo italiano, depois da Operação Mãos Limpas. No começo dos anos 1990, houve uma reforma política que pretendia resolver os problemas postos pela Operação Mãos Limpas. Qual foi o resultado? Desabou o sistema partidário anterior e ascendeu Berlusconi. O caso italiano é paradigmático de uma reforma política em que o tiro saiu pela culatra.
Então, ao mudar as regras do jogo é preciso muito cuidado para que o resultado não seja o oposto do esperado. Isto posto, tendo a achar que as duas propostas que você mencionou, financiamento público de campanha e lista fechada, o Brasil deveria experimentar, com cautelas. Que cautelas seriam essas? Por exemplo, em relação à lista fechada deveriam ser pensadas — não sou especialista no tema, não quero me aventurar muito nisso — medidas que, junto com a lista fechada, garantissem um maior controle da sociedade sobre as decisões no interior dos partidos. Porque, evidentemente, ao tomar a decisão de fazer a eleição por lista fechada você dá grande poder às burocracias partidárias, porque são as burocracias partidárias que vão decidir a ordem na lista. E ao decidirem a ordem na lista, praticamente se transfere dos eleitores para a burocracia partidária a decisão de quem vai sentar no parlamento.
É preciso tomar muito cuidado com isso, porque você pode simplesmente transferir um problema que está ocorrendo no plano da eleição para dentro da escolha das convenções partidárias. Eu sugeriria que se tomasse uma série de cautelas no sentido de obrigar os partidos a fazer processos transparentes e com verdadeira participação de base, o que é complicado, porque no mundo todo os partidos políticos estão sendo esvaziados do seu antigo caráter militante. Isto não é um problema brasileiro, é geral. Todos os partidos estão deixando de ser partidos de militância e passando a ser máquinas eleitorais em si. Como ter participação de base se não tem mais base? É complicado. Isso leva, por exemplo, ao que foi decidido na Argentina agora, que é obrigar os partidos a fazerem primárias, que ao que parece seriam abertas, qualquer eleitor pode participar.
Com relação ao financiamento público, sou a favor de que a gente tente, mas sou sensível aos argumentos daqueles que dizem: "Você vai ter o financiamento público e o financiamento privado vai continuar por baixo do pano". É o pior dos dois mundos. A única coisa que eu enxergo é que juntamente com o financiamento público você tem de fazer regras suficientemente claras, explícitas, de tal forma que entregue à sociedade a possibilidade de controlar o uso do recurso. Como é que seria isso? Por exemplo, criando um teto de campanhas baratas, um financiamento público mas que está pressupondo campanhas baratas. A vantagem disso é que qualquer pessoa é capaz de identificar uma campanha que está obviamente mais cara, e fazer uma denúncia à campanha eleitoral.
Isso vai depender de a sociedade estar mobilizada para fazer essas denúncias e pressionar. Um pouco o que está acontecendo no caso do Ficha Limpa. O Ficha Limpa é o resultado de uma mobilização social. Esta mobilização social tem que continuar. Tudo isso posto, eu diria: sou a favor, e se houver mobilização do presidente Lula nesse sentido será muito favorável, e, se tudo for bem sucedido, pode representar um passo importante na melhora da qualidade da nossa democracia.
No primeiro turno, a campanha petista pareceu ancorar-se mais no marketing eleitoral do que na defesa de um corpo programático de propostas. A candidatura tucana também não chegou a apresentar um programa. A que você atribui esse fenômeno?
Tenho tomado uma posição, que é importante a gente ter na universidade, de crítica ao marketing eleitoral. O marketing eleitoral é algo que distorce o princípio democrático. O princípio democrático é que os eleitores precisam ter informação suficiente para formar uma opinião esclarecida, que o voto deveria ser o resultado de uma opinião esclarecida. O marketing eleitoral, ao produzir propagandas inspiradas nas técnicas de propaganda comercial, distorce esse princípio, porque tenta no fundo induzir o eleitor a um comportamento que não é o de alguém que vá formar uma opinião esclarecida. O marketing eleitoral é uma invasão do comércio na política, é uma comercialização da política. É o que Habermas chamaria, a meu ver, de colonização do que antigamente foi a esfera pública por técnicas de fundo comercial. Isto posto, é óbvio que isso se tornou o abre-te Sésamo de toda a política democrática.
Não só no Brasil, no mundo todo. Todos os partidos usam essas técnicas de maneira extensa. Acho preocupante, e muito negativo para o processo democrático, o fato de que os dois principais candidatos não tenham registrado programas. Muito negativo e muito preocupante. Para ser sincero, não sei a razão disso: se houve dificuldades de um lado e de outro de tomar decisões, de definições que criariam eventuais arestas nas respectivas coalizões; se houve cálculo eleitoral. Mas o fato é que para aquela, hoje pequena, parcela de eleitores que têm procurado ainda se pautar por uma discussão de natureza programática, faltou esse elemento. Apesar disso tudo, quando se assistia aos debates, para um espectador mais atento era possível perceber a natureza das propostas. Mas reconheço que era preciso fazer bastante esforço e ter uma dose grande de informação prévia. Eu gostaria muito de estimular a sociedade a exigir que houvesse mais compromisso programático nas campanhas. Isso já houve no Brasil. O PT foi um partido onde esse traço programático foi muito forte. Aliás, como eu já disse no começo da entrevista, o PT produziu uma proposta, o que faltou foi no caso a candidatura da Dilma tomar uma decisão a respeito do que seria o seu programa oficial.
A candidatura Marina Silva foi o fator determinante para a realização do segundo turno. Marina e o Partido Verde são forças políticas em ascensão? Em que ponto do espectro político tendem a situar-se, dentro da grande polarização entre blocos de esquerda e direita que caracteriza a política brasileira?
Sim, são forças políticas em ascensão, e a melhor maneira de entendê-las é o que o cientista político norte-americano Ronald Inglehart chama de "ascensão do pós-materialismo". Na verdade a Marina representa mesmo uma nova agenda, representa até uma nova ideologia, e uma mudança cultural importante. Embora tenha sido a única que registrou programa, diante de quase todas as questões o que ela dizia, ao longo da campanha, era algo do tipo: "Não importa tanto o programa, o que importa é a maneira de implementar esse programa". "Precisamos produzir uma mudança na forma de fazer política, precisamos de uma nova política".
O fato de ela ter tido 20% dos votos válidos no primeiro turno indica que esse discurso está falando para uma parte da sociedade brasileira. Que parte é essa? De classe média. E por que necessariamente é de classe média? Porque só quem tem a sobrevivência garantida pode priorizar outros valores. No caso, está priorizando uma nova forma de democracia, mais avançada se você quiser, e que combina bem com a idéia de um desenvolvimento sustentável. Aqui há contradições importantes, porque, para os setores da sociedade que não têm a sua sobrevivência garantida, a questão ambiental é secundária. O fundamental é crescer, gerar emprego e renda. Então você tem aí diferenças de classe.
Eu diria que o fato de a Marina ter tido 20% mostra que já existe na sociedade brasileira isso que o Inglehart chama de tendência pós-materialista, e que ela tem chance, no longo prazo, de se tornar uma terceira força relevante. Por que digo "tem chance no longo prazo"? Porque, como eu disse antes, o sistema brasileiro está tendendo a ser bipartidário, e num sistema de tipo bipartidário é muito difícil a uma terceira força emplacar, está visto o caso norteamericano: é muito difícil romper o sistema de dois partidos. Não será fácil a trajetória da Marina e do Partido Verde. Vai depender muito da capacidade e da vontade da Marina de fazer um lento e persistente trabalho organizativo. Ela terá de criar o Partido Verde.
O Partido Verde é um projeto, que para existir vai depender de vontade de criar diretórios em todos os municípios, lançar candidatos para prefeito, vereador etc. até constituir uma base político-partidária semelhante ao que foi o PT. Não sei se a Marina tem disposição para isso. Ela tem capital político para um vôo de longo prazo. O partido é um projeto. Se ela tiver vontade política, vai encontrar ressonância; agora, não é algo de curto prazo, até porque a maioria da sociedade brasileira ainda está na agenda materialista, e a agenda materialista divide mesmo de esquerda e de direita, e durante muito tempo ainda será assim. O lugar que a Marina ocupa nesse cenário é de centro, nitidamente. Ela se colocou ao centro e a base social dela, que é a classe média, quer se colocar ao centro.
O candidato do PSDB obteve 44% dos votos, o que dá à oposição conservadora um cacife político muito expressivo. No discurso em que reconheceu a derrota, José Serra sinalizou que a trégua será curta, ao proclamar que "a luta continua", e demonstrou a disposição de liderar a oposição. Qual é o destino desse bloco de forças políticas, PSDB e seu aliado desde 1994, o DEM (antigo PFL), nos próximos quatro anos? Há diferença significativa entre os projetos de Serra, de um lado, e Aécio Neves, de outro lado?
O desempenho eleitoral do PSDB foi positivo, mas não é algo inesperado. É só lembrar que Serra e Alckmin tiveram em 2002 e 2006, no segundo turno, em torno de 39% dos votos válidos. Então houve um crescimento, de 39% para 44%, significativo mas não explosivo. O que deverá caracterizar a oposição não creio que possa ser uma atitude de beligerância. Se o discurso do ex-governador Serra teve esse intuito, acredito que ele não terá muito futuro. Porque essa eleição confirma a hipótese de que tivemos um realinhamento eleitoral em 2002, que se completou em 2006 com uma mudança na composição social da nova maioria. Quanto você tem eleição de realinhamento, como aconteceu em 2002, você tem a fixação de uma nova agenda, e o que caracteriza a fixação da nova agenda é que os adversários não têm como sair dos marcos que essa agenda estabelece.
A campanha do Serra, quando propôs um aumento do salário-mínimo para 600 reais; décimo-terceiro para o Bolsa-Família; num determinado momento chegou a falar da duplicação do valor total destinado ao Bolsa-família e do número de pessoas atendidas, o que significa uma enorme proporção da população brasileira; propôs aumento real das aposentadorias acima do salário-mínimo...
Subordinandose portanto à nova agenda...
...completamente à nova agenda, e não tinha nenhuma possibilidade de que não fosse assim, se ele quisesse chegar onde chegou que são esses 44%, porque ele tem que dialogar com essa nova maioria, que é importante no país. A oposição terá que fazer um tipo de contraste com essa nova maioria que não saia dessa agenda, essa é a minha visão. Essa na verdade é a grande mudança que houve no Brasil. O governo Lula mudou realmente a agenda. A agenda era de diminuição do Estado, de ampliação do espaço do mercado, e ela mudou para ser uma agenda de combate e erradicação da pobreza. O que me leva a achar que não está correto o diagnóstico de que o governo Lula aprofunda o neoliberalismo. Ele vai na direção contrária, embora sejam um governo e uma política sem radicalismo.
De tal maneira que o PSDB não tem nenhum risco de desintegração: é o grande partido de oposição no Brasil, tem importantes governos de estado, está enraizado, tem uma força importante na classe média tradicional, abriu o diálogo com a chamada "nova classe C" durante o processo eleitoral, mas não poderá caminhar se resolver retornar para a antiga agenda. Se fizer um movimento desse tipo vai permanecer como minoria.
Você se refere ao lulismo como um fenômeno de massa, que expressa a adesão das camadas mais empobrecidas da população brasileira à figura do Lula ou ao seu projeto político. No entanto, tudo indica que também os trabalhadores organizados votaram maciçamente em Dilma. Como fica esta equação? Pode-se dizer que o lulismo abarca os setores proletários assalariados, organizados?
O lulismo propriamente dito eu tenho dúvida. O lulismo é um movimento real, não formalizado, que tem mais um cunho eleitoral, e que sobretudo diz respeito ao que eu chamo de subproletariado, que se vê representado por uma política que é de transferência de renda, de distribuição de renda sem confronto político. Soma estas duas características que falam ao coração do subproletariado.
Seriam os trabalhadores informais, desempregados ou subempregados.
Isso. Uma parcela que ainda existe, de trabalhadores do campo etc. Exatamente. Não existem estatísticas claras sobre isso, mas estamos falando de metade do eleitorado brasileiro. O proletariado organizado está mais representado no PT do que no lulismo. O PT é mais o conduto político desse segmento. Não há, de parte do proletariado organizado, nenhuma rejeição ao lulismo. Até porque há um ponto que unifica inteiramente o proletariado e o subproletariado, que é o aumento do emprego, porque à medida que você aumenta o emprego você melhora substantivamente as condições de luta do proletariado organizado.
O que quebra a força sindical é o desemprego, é mortal para o setor organizado da classe trabalhadora. O aumento do emprego, que é o resultado do conjunto de políticas que o governo adotou, é o interesse central dessas duas categorias. Então não há nenhuma rejeição ao lulismo, mas o proletariado organizado não é a base social do lulismo; o lulismo criou uma nova base social, que é diferente da base social do PT.
Ainda nessa seara: as eleições de 2010 foram um teste para o lulismo? Como explicar o fato de uma parte significativa do eleitorado pobre ter dado seu voto ao PSDB, em especial nos Estados da região sul?
Foi um teste e continuará sendo assim, porque em tese o lulismo é algo para durar algumas décadas. Na ciência política norte-americana, que formulou essa teoria, a idéia de realinhamento, eles dizem que dura de 32 a 36 anos. É claro que isso é uma brincadeira, porque ninguém pode imaginar uma contabilidade tão exata dos fenômenos políticos, mas é para dar uma ordem de grandeza. Foi o primeiro teste de uma longa série que virá pela frente. Saíram-se bem no teste, a hipótese do lulismo e o próprio lulismo, porque a presidenta Dilma foi eleita pelos eleitores de renda mais baixa, tanto no primeiro quanto no segundo turno. Essa foi a sua base principal. Se dependesse dos outros setores de renda, a eleição ou não teria tido o resultado nítido que teve, ou seria vencida por Serra, se considerarmos os 20% do eleitorado que estão acima de 5 salários mínimos de renda familiar mensal. Então ele passou bem pelo primeiro teste. A segunda parte da pergunta é muito interessante.
Pela análise preliminar que fiz dos dados, realmente o PSDB conseguiu uma certa parcela de votos entre a chamada "nova classe C". Não tenho condição de afirmar isso categoricamente, porque não tem pesquisas mostrando exatamente de onde vieram esses votos, mas notei que a diferença na faixa de renda de dois a cinco salários mínimos, que é onde está a classe C, ela foi no finalzinho do segundo turno 49% para a candidata Dilma e 43% para o candidato Serra, o que significa que ali então ela teve uma diferença menor do que na média, e bem menor do que teve entre os eleitores de baixíssima renda. O que me leva a pensar que surpreendentemente, mas não tão surpreendentemente assim, eleitores que foram beneficiados pelas políticas do governo Lula nas regiões sudeste e sul votaram no PSDB.
Eu não chamo esses eleitores de nova classe média, chamo de novo proletariado, mas ele está se aproximando mais da classe média. E aparentemente uma parte desse eleitorado quer votar como a classe à qual ele quer chegar, e não como a classe de onde ele vem. Essa seria uma possível explicação para esse fenômeno. Nesses estados, havia uma unidade maior da classe média em torno da candidatura do PSDB e um poder de atração desta camada social mais forte. Vale a pena mencionar o aspecto regional: o lulismo está muito enraizado no Nordeste, primeiro porque lá o subproletariado é maior, e segundo porque o efeito regional das políticas adotadas no Nordeste foi muito mais expressivo do que no resto do país.
Com recursos relativamente moderados, você é capaz de ativar regiões deprimidas da economia, como é o caso do interior do Nordeste, a um custo menor do que você tem para resolver problemas nas periferias das grandes metrópoles do sudeste do país. Então, o resultado das políticas do governo Lula provocou um efeito regional, dentro do realinhamento. Isso faz com que no Nordeste você não tenha um poder de atração tão grande para a candidatura do PSDB, por parte da chamada classe média já estabelecida.
A política externa foi trabalhada arduamente pelo PT ao longo dos mandatos de Lula. As associações com países emergentes configuraram uma mudança de posição do Brasil, que deixou de subordinar-se aos Estados Unidos para se impor como país independente. Você acredita que esse panorama já está consolidado ou Dilma terá dificuldades para mantê-lo? Sabemos que não é sua especialidade, mas gostaríamos de conhecer sua opinião.
Minha impressão é de que esse é um campo em que se avançou bastante durante os dois mandatos do presidente Lula, de modo que de um certo ponto de vista o caminho está aplainado. Por outro lado, tal como nos outros campos que a gente abordou, vai haver conflitos, porque é uma coalizão de forças muito ampla e heterogênea, que se posiciona de maneira móvel em relação a esses assuntos. Estamos passando por um momento muito especial no cenário internacional, porque a crise do capitalismo de 2008 produziu um desarranjo que ninguém sabe muito bem onde vai dar.
Tudo indica que ela consolida uma tendência de crescimento da importância da China, porque a economia norte-americana está periclitante, e portanto o peso relativo da China aumentou ainda mais no cenário internacional. Com isso você tem uma tendência maior de multipolaridade, e o Brasil também cresce, até porque está associado à China, do ponto de vista comercial: é para onde exportamos uma parte importante das nossas commodities, e também porque o Brasil soube aproveitar muito bem o momento. É verdadeira a idéia de que o Brasil entrou por último e saiu primeiro da crise. Tudo isso faz com que o Brasil tenha uma importância relativa no cenário internacional maior do que tinha antes. Isso abre uma janela de oportunidade para a gente tentar uma inserção mais autônoma no arranjo econômico internacional.
Essa questão se liga a esse problema que a gente tocou antes, da reindustrialização. Penso que está aberta uma janela de oportunidade para transitar na direção de um modelo de desenvolvimento que não seja desindustrializar. O que significará investir fortemente em setores de ponta, nos quais poderemos vir a ter um desempenho significativo. Em função disso, talvez a gente venha a ter desafios importantes, porque há setores da sociedade brasileira, como o capital financeiro, que não estão muito interessados nesse modelo. Por aí pode haver oposições que teriam de ser enfrentadas.
Queria lhe fazer uma última pergunta, justamente pegando esse gancho. A crise chegou a parecer, num determinado momento, que estava sob controle; agora de novo vemos países da União Européia numa situação muito delicada. Trabalhando com um cenário pessimista, de agravamento da crise econômica, será possível manter esse arranjo capitaneado pelo Lula — de combate à pobreza sem ruptura com a ordem, como você definiu — sem algum tipo de conflito distributivo, sem enfrentar alguns privilégios? Até que ponto será possível manter esse, digamos, modelo, impedindo que ele entre em colapso, na hipótese de haver uma diminuição expressiva da arrecadação, problemas de natureza econômica?
Ninguém sabe o que vai acontecer no panorama econômico internacional. Você tem razão em notar que havia uma expectativa de resolução da crise que neste momento está em suspenso. Aí vale a experiência recente pela qual nós passamos: o governo foi muito hábil, isso faz parte desse modelo de não confrontação, porque usou a janela de oportunidade, que o momento mais grave da crise produziu em setembro de 2008, para recuperar uma capacidade indutora do Estado, por meio do BNDES. Não é casual que o setor que responde mais ao capital financeiro venha, já nos últimos meses, fazendo críticas ao BNDES, porque o BNDES está sendo um agente de promoção de uma política industrial. Veja como esse arranjo é complicado.
Em que medida esses conflitos vão se tornar mais agudos vai depender de certos elementos imponderáveis, porque no momento em que se deu uma asfixia do crédito, o governo teve a capacidade de se sobrepor ao capital financeiro, que estava paralisado. Tanto é que a atuação dos bancos públicos foi decisiva, porque a natureza da crise paralisou o capital financeiro, então ele foi incapaz de opor uma resistência. Nesse caso, foi possível avançar sem confronto, o confronto ficou subliminar. Se isso vai poder se dar para a frente, vai depender muito da resposta a grandes questões para as quais hoje não se tem resposta. Qual o horizonte do capitalismo hoje? Ninguém sabe.
Estamos no meio de um período de transição, que ninguém sabe muito bem como é que vai se desenvolver. Uma parte do mundo se deu conta de que se não impuser algum grau de regulamentação do setor financeiro, isso é uma bomba, vai de novo para o mesmo cenário, que foi gravíssimo, foi contido a custas de quantidades enormes de dinheiro público. Por outro lado, o capital financeiro no plano internacional tem sido forte o suficiente para obstar esse avanço da regulamentação. Em parte, o que vai acontecer no Brasil depende de como este cenário vai se desenvolver. Que grau de confronto nós vamos ter vai depender da natureza desse desenvolvimento, que não está claro.
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Governo Dilma tende à continuidade e ao equilíbrio sem ruptura, afirma André Singer - Instituto Humanitas Unisinos - IHU