02 Março 2011
"A Al-Jazeera tornou-se um ator político de primeiro plano, "porque reflete e articula o sentimento popular. Tornou-se o novo Nasser. O líder do mundo árabe é uma rede de televisão", escreve Barbara Spinelli, jornalista e formada em filosofia, uma das fundadoras do jornal La Repubblica, em artigo publicado no jornal La Repubblica, 02-03-2011. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Eis o artigo.
Estranhas e novas coisas estão acontecendo nos países árabes. Estranhas e novas também por aquilo que dizem sobre nós, democracias organizadas, mas incapazes de recordar como nasceram, de se perguntar se ainda estão à altura das promessas de origem. Todos os países europeus foram sacudidos pelas turbinas norte-africanas, mas é na Itália que o terror se acopla a essa inaptidão, radical, de interrogar a si mesmo. É como se fôssemos habituados, ao longo dos anos, a pensar a democracia de maneira monística: como se o domínio, até entre nós, fosse de um só. Como se fosse uma a fonte da soberania: o povo eleitor. Uma, a lei: a do chefe. Uma, a opinião, mesmo quando ela coincide com o parece de uma parte apenas (a maioria) da coletividade. Monismo e pensamento único caem aos pedaços do outro lado do Mediterrâneo, mas entre nós puseram raízes e se exibem triunfos. Tocqueville explica bem, nos livros sobre a Revolução Francesa, as insídias da tomada da Bastilha. O Rei foi substituído por um poder solitário, ilimitado, mais eficaz do que a Coroa. O do Povo, uno e indivisível. Um só valor é erigido a valor supremo, não negociável: o da Razão. O Uno é o fulcro do pensamento monístico, e, sub-repticiamente, nos adestra a pensar contra a democracia. Não conseguimos contar até dois. A estabilidade é o ídolo ao qual sacrificamos as primordiais aspirações democráticas. Talvez é o motivo pelo qual os governantes europeus, e os italianos em maior grau, se esforçam para entender os países árabes ou o Irã. Sofrem para observá-los, para falar sobre eles: não têm o vocabulário para isso, mesmo sendo os pais dos dicionários democráticos desenterrados do outro lado do Mediterrâneo também por nós. Cantarolamos o retorno da primavera dos povos e não sabemos mais aquilo que acontece quando um povo se apropria do próprio destino. Aquilo que urge construir, uma vez destruído o trono. Porém, basta olhar: não se reduzem a isso, por enquanto, as revoluções árabes. Não é um Povo que se levanta, monolítico coágulo de paixões que conquista o poder. Aquilo que vemos são as múltiplas aspirações, a proliferação e a diferenciação de projetos, a necessidade – inaugural em democracia – de um regime regulado de modo a favorecer tal diferenciação. A meta não é o domínio do povo, mas sim a possibilidade da disputa, a concórdia nutrida de discórdia. Duas são as características das revoluções árabes, que podem acabar mal ou bem, mas que são, no entanto, experiências da democracia no seu alvorecer. Em primeiro lugar, a descoberta do outro, do diferente, não mais sob a forma do inimigo que se odeia ou a quem se assujeita: portanto, a descoberta de si mesmo. É significativo que a primeira centelha das revoltas foi o suicídio do tunisiano Mohamed Bouazizi, jovem vendedor ambulante, no dia 4 de janeiro. O gesto cancelou, de um golpe só, anos de suicídios-homicídios terroristas, e, pela primeira vez, o árabe se insurge, começando por si mesmo. A segunda característica é a descoberta de como é precioso, para que haja democracia, o espaço público, onde as várias ideias se cruzam, se opõem, desembocam em deliberação. Na Grécia antiga, chamava-se ágora: a praça onde os privados se encontram, tornam-se cidadãos que acudem à coisa pública além da própria família. Onde democraticamente decidem. Decide-se votando em maioria, mas a existência da ágora é o preâmbulo que dá espaço, dignidade, legitimidade ao diferente. Quem acompanhou pela Internet os tumultos árabes deve ter visto as discussões desmedidas em torno de cada artigo, abaixo-assinado. Na ausência de uma ágora oficial (de uma res publica), os árabes escolhem a Internet e os celulares para falarem entre si, como jamais havia acontecido antes, para se manifestarem contra os autocratas pelos quais eram manipulados, não governados. O primeiro ato da democracia é sair de casa, contrariamente àquilo que Berlusconi diz, segundo o qual a família privada te ensina tudo e, fora, vagam professores obscuros da escola de Estado que inculcam noções desviantes. Robert Malley escreveu no Washington Post que a Al-Jazeera tornou-se um ator político de primeiro plano, "porque reflete e articula o sentimento popular. Tornou-se o novo Nasser. O líder do mundo árabe é uma rede de televisão". Mas a Internet e a TV são os instrumentos, não a matéria das democracias nascentes. Senão, poderíamos dizer que, também entre nós, as TVs comerciais foram parteiras de democracia. O que as redes sociais árabes suscitam é a pluralidade de opiniões e notícias, não a emergência do éter privatizado italiano; não a TV de circuito fechado da Milano 2 que se estende à nação e é o emblema do bairro fechado que os norte-americanos chamam de gated community. A Al-Jazeera e as social networks árabes abatem os recintos, abrem janelas. Abrem-nas àquilo que as nossas democracias inventaram, quando nasceram, também elas, no tumulto: a pluralidade de ideias, a separação dos poderes, a convicção de que o poder tende a se estender se outros poderes não o detém e contrabalançam. Abrem-nas, enfim, à laicidade, etapa essencial das democracias do Ocidente. Naturalmente, é possível que os Irmãos Muçulmanos, mais organizados do que os manifestantes, tenham a vantagem. Mas os ingredientes iniciais das revoltas não são, em geral, confessionais. Pode ocorrer que as muralhas autocráticas se limitem a deslocar peças. Mas os insurgentes, como se vê na Tunísia, entendem logo e não toleram gatos-pardos que fingem mudanças. Um exemplo significativo é o documento publicado no dia 24 de janeiro no site do jornal Yawm al-Sâbi` ("O Sétimo Dia"): um manifesto em 22 pontos em que se pede a separação entre religião e Estado, a dignidade das mulheres, o direito de cada cidadão (incluindo mulheres, cristãos) de ter acesso aos cargos máximos, dentre os quais a presidência. O documento é assinado por cerca de 20 teólogos e imãs egípcios e foi republicado primeiro pela Asia News e depois por mais de 12.400 sites árabes. Quem fala há dias sobre ele é Samir Khalil Samir, jesuíta egípcio e professor no Líbano e no Pontifício Instituto Oriental de Roma. Segundo Samir, os signatários da proclamação não estão sozinhos: "Esse desejo de operar uma distinção entre religião e Estado é um sentimento comum. A religião é uma coisa boa em si mesma, e não queremos obstaculizá-la, contanto que permaneça no seu âmbito, como uma coisa, ao contrário, privada, que não entra nas leis do Estado. Ao invés disso, os direitos humanos, esses sim! (...) E se a lei religiosa vai contra os direitos humanos, então preferimos os direitos humanos à sharia" (www.zenit.org). Na Itália, palavras semelhantes são heresia, porque é totalmente outro o espetáculo ao qual assistimos: uma regressão da laicidade, da separação dos poderes, da democracia. Não admira que Berlusconi tenha defendido em princípio os ditadores, temendo perturbá-los: não é a história árabe, mas a história das nossas democracias que não chega a interiorizar. Metade do mundo entra em contato com a democracia, com as teses de Montesquieu sobre o poder freado por outros poderes, mas ele está parado, em defesa do Uno e do Indivisível, em polêmica constante com todo poder de controle (magistratura, Consulta, Quirinale). Jamais como nestas semanas o seu experimento pareceu superado: expressão de uma democracia preguiçosa, fechada. A sua ideia de televisão também não é ágora, inclusão do diferente. É uma opinião sozinha que grita da tela da "caixa tonta" e tem a impudicícia de se apresentar como Radio Londra armada contra tiranos. Certamente, não somos os únicos a se angustiar por trás da primavera árabe sem saber por que nos angustiamos: esquecidos dos pactos com os tiranos, dos refugiados recusados nas nossas fronteiras e entregues aos campos de concentração líbios, da Arábia transformada em terra de negócios. A ministra do Exterior francês, Michèle Alliot-Marie, reagiu no início como Frattini, Berlusconi. Mas na França bastaram dois meses, e domingo a ministra teve que renunciar, estimulada pelo seu próprio partido. O discurso sobre os valores, caro ao primeiro-ministro quando se manifesta contra a escola pública, ou contra a adoção por parte de solteiros ou gays, ou contra o direito do moribundo de decidir se quer ou não ser mantido vivo, é fruto desse monismo não democrático. É uma visão que agrada à Igreja, que pode obter poder (não em homenagem aos Evangelhos, mas a uma sacralização da estabilidade digna do Grande Inquisidor) distribuindo-o do jeito do Islã radical: aos imãs, as mesquitas, o dinheiro, o senhorio sobre as almas; aos autocratas, o império político indiscutível. O horizonte é o da ágora negada: que transforma o inquilino da comunidade protegida não em cidadão, mas em consumidor suspenso à "caixa tonta", incapaz de sair e descobrir a Cidade.
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A ágora árabe - Instituto Humanitas Unisinos - IHU