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23 Fevereiro 2011

Justificacionismo. Está na moda uma concepção inapropriada da teoria que a vende como uma ideologia em grau de justificar qualquer coisa, do matrimônio imposto pela família à mutilação genital feminina. Assim, Alemanha e Inglaterra livram-se de uma doutrina.

O comentário é de Giancarlo Bosetti e publicado pelo jornal La Repubblica, 10-02-2011.

Eis o artigo.

"É uma simplificação compreensível (para a retórica da política faminta por votos), mas não perdoável essa que induziu Cameron ou Merkel a sustentar que "o multiculturalismo" é uma doutrina a ser abandonada porque "encoraja as diferentes culturas a viverem separadamente".

Não é perdoável na boca de elites que merecem essa definição e têm a responsabilidade dos grandes estados europeus. Aquela que vem liquidada desse modo é somente uma caricatura do conceito e da palavra, vendida como sinônimo de uma ideologia que justifica o matrimônio coagido, e talvez até mesmo a mutilação dos genitais femininos e a amputação da mão dos ladrões.

O termo multiculturalismo pode descrever acima de tudo uma situação de fato - a presença de comunidades de diferentes culturas, religião, língua, etnia em um único estado - e em seguida também uma orientação favorável, em vários graus, a respeito das diversas identidades e direitos, de comunidade, no âmbito do Estado de Direito e das regras de uma democracia liberal (que seja ou não federal). É multiculturalismo a proteção da língua francesa em Val d’Aosta como a de várias minorias e maiorias linguísticas no Canadá. É-o a proteção dos direitos da comunidade Amish ou Mórmon ou Judeus Ortodoxos ou dos índios nativos garantidos pela Corte Suprema nos Estados Unidos, e é multicultural também a proteção dos direitos poliétnicos que garantem às minorias poder expressar sua particularidade cultural, sem sofrer discriminações e sempre a respeito dos direitos individuais. É multicultural a defesa da cidadania norte-americana com o tracinho — hífen —, dos ítalo-americanos, hispano-americanos, afro-americanos, um tracinho com o qual os "hifenizados" americanos registram-se  no censo.

Que o multiculturalismo teve interpretações extremistas não significa que todo o multiculturalismo seja extremista, assim como nem todos os cristãos são fundamentalistas somente porque alguns o são. Melhor seria definir diferentemente essas versões degeneradas da ideia multicultural. Zygmunt Bauman propõe para isso a definição de "multicomunitarismo". Mas ainda mais nítida é a fórmula de Amartya Sen: a que se alude falando dos erros do separatismo na experiência inglesa não é uma política multicultural, mas uma política que fez "coleção de monoculturalismos".

Uma concepção apropriada do multiculturalismo prevê que os grupos de imigrantes que vêm em uma fase posterior à fundação dos Estados, como por exemplo, os mulçumanos nos países europeus, cuja grande maioria é cristã, têm direito como minoria (a liberdade de culto e o direito a construir lugares de oração), mas também "a responsabilidade de integrarem-se nas normas da nação". São palavras de um dos maiores teóricos do multiculturalismo, que é Will Kimlicka, filósofo canadense, e não de um ideólogo da Liga. Por isso, é melhor ir devagar do que queimar na fogueira dessa ideia. O multiculturalismo, em uma versão atualizada do pluralismo liberal, prevê também que os diferentes grupos culturais interajam entre si dentro do estado e no plano internacional.

Poder-se-ia, para isso, adotar o conceito menos utilizado de "interculturalidade", muito mais dialógico, mas sem conceder todo o terreno aos inimigos do multiculturalismo, o mais conhecido dos quais é Samuel Huntington, que nele via uma das razões do declínio do Ocidente e dos Estados Unidos, ao contrário de John Kennedy e Lyndon Johnson que viam na imigração e nos direitos civis das minorias a grande força de seu país multicultural.