23 Fevereiro 2011
Com sua forma peculiar de filosofar, o dirigente de esquerda Dagoberto Gutiérrez analisa a conjuntura política de El Salvador e não descarta ser candidato independente a deputado nas eleições de 2012.
A entrevista é de Carmen Rodríguez e está publicada no jornal salvadorenho La Página, 15-02-2011. A tradução é do Cepat.
Eis a entrevista.
Como qualifica o papel do Governo do presidente Mauricio Funes?
O papel do Governo é o da administração da política do Estado, e esse é – precisamente – o papel do atual Governo, na atual etapa. Caracterizado, porque é um Governo não dirigido pela ARENA, mas pela direita.
Por que é um Governo dirigido pela direita?
Porque a ARENA perdeu as eleições, essa foi uma derrota eleitoral. Mas a direita não foi derrotada politicamente e ela segue governando.
Então, não é significativo que a FMLN tenha chegado também à presidência da Assembleia Legislativa?
Bom, a Assembleia Legislativa também é Governo; os órgãos fundamentais do Governo são o Legislativo, o Executivo e o Judiciário.
Qual é o significado do novo presidente da Assembleia Legislativa?
Em primeiro lugar, trata-se de um acesso à presidência da Assembleia fruto da derrota eleitoral da ARENA e da divisão da ARENA. Isto dá pé a uma série de negociações na Assembleia que viabilizam esta presidência.
Em segundo lugar, até agora o que se ouve sobre a gestão que se inaugura é a referência à vida privada do aparelho, aos problemas internos que sem dúvida serão abundantes. Mas não há referência, ao menos até agora, ao problema fundamental da representação, que é a distância entre os representantes e os representados. Este é um problema político chave, sem dúvida também ideológico. Penso que é preciso esperar, convém esperar, pelo menos no que diz respeito a este problema chave da representação.
A FMLN tem possibilidades de manter o poder Executivo e a Assembleia Legislativa numa próxima legislatura?
A FMLN não tem o poder, também não tem o Governo; a FMLN é um partido governamental como a ARENA, como o PCN, como os outros partidos, ou seja, tem participação no aparelho governamental.
Partido de Governo é aquele que sustenta filosófica e politicamente o desempenho de um Governo, aquele que dirige um Governo se chama partido de Governo, este não é o caso.
Partido de Governo é aquele que tem pessoas no gabinete, que devem se remeter a ele, esse não é o caso; e partido governamental é aquele que tem posições no aparelho do Governo... esse é o caso.
O poder é outro tema, quem tem o poder é outro assunto e também podemos falar de quem é o poder. E depois, o que é o poder político, de que tipo estamos falando.
É preciso se perguntar, e quem tem o poder na Assembleia Legislativa?, antes de se perguntar se é possível manter o poder... Outra coisa é quem tem o cargo, se deve observar e buscar a pista do regime e não do sistema, e sempre se sabe que o regime é a forma como funciona o sistema.
Então, quem tem o domínio na Assembleia Legislativa?
Quem domina. Esse é um ato de força, e se estamos falando da Assembleia estamos falando de votos: é a direita, a direita domina... A Assembleia é um órgão colegiado e tudo é decidido quantitativamente, não qualitativamente; não se trata de quem tem razão, não... trata-se de quem tem os votos. Você domina se tem votos.
Esta distância entre os representados e os representantes que você mencionou é muito acentuada?
Totalmente, isso é o que expressa o descrédito dos partidos políticos, mas, além disso, é o que expressa o enfraquecimento da representação como apoio da democracia participativa. É preciso procurar com muita atenção para encontrar uma pessoa que se sinta representada neste momento.
Há pessoas que se sentem representadas neste momento?
Isso te digo: é preciso procurá-las com muita atenção.
De quem depende – se há muita desconfiança por parte da população – que o tema das candidaturas independentes tome um giro e que as pessoas confiem na política?
Não estou seguro de se o problema é a falta de confiança, mas se pode estar seguro de que há uma abundância de dúvidas... E essa dúvida abarca a posição das pessoas diante da política, que é nestas circunstâncias o problema fundamental. Porque a política sempre equivale ao ato de respirar para o ser humano, o ser humano sabe que necessita do ser político e que a desconfiança dos partidos políticos, das instituições e dos assim chamados políticos, não deveria obscurecer o papel da política na vida das pessoas; uma parte das pessoas tem claro esse papel, mas apenas uma parte.
Que parte da população tem claro esse papel?
É pequena, porque o problema não é simples, há toda uma vida onde se induz à ideia de que os políticos são dos partidos políticos e que a política se faz nas instituições governamentais e que inclusive há uma classe política, esta figura é a criação mais feroz na linha de levar a obscuridade ao cérebro dos seres humanos.
É essa classe política que está por trás do poder?
Não, o problema é que não existe a figura política... Toda figura de classe social tem a ver com a relação com o aparelho produtivo, é uma figura econômica. As pessoas não se diferenciam pela produção da política, não, é uma tentativa muito feroz a serviço da ideia de que alguns fazem política e outros não. É quase equivalente àquilo de que alguns são inteligentes e outros não, que alguns pensam e outros não. Não existe a classe política.
De que maneira vai ser possível o financiamento das campanhas independentes, se até agora se colocaram mais obstáculos que facilidades?
Esse é um problema de arquitetura.
Mas quem vai financiá-las, há alguém por trás delas?
É que não há nada por trás, tudo está dentro... Nada está por trás de nada e ninguém está por trás de ninguém, tudo está dentro disso. Quando se quer explicar o fenômeno das candidaturas independentes, se deve perguntar: o que está deste fenômeno? Ou seja, qual é a essência desse fenômeno porque tudo tem uma essência, a essência não se manifesta mais como fenômeno, não há nada por trás, tudo está dentro, então a pergunta é: o que está dentro das candidaturas independentes?
Um: a crise dos partidos políticos. Dois: a crise da democracia representativa. Três: a presença da democracia participativa. Quatro: a escola histórica da sociedade no ofício pedregoso de fazer política, mas entendendo a política não como a atividade que te relaciona com o Estado, mas como a atividade que te relaciona com a tua vida.
Se alguém quer e necessita defender a sua vida, deve fazer política, isto é, a política a serviço da defesa e promoção da vida, esse é o caminho difícil que as pessoas percorreram neste país. Essa experiência de todos os dias está produzindo tombos e mais tombos aqui, essa é a essência.
Dagoberto Gutiérrez está dentro das candidaturas independentes?
Evidentemente que estou dentro das candidaturas independentes, estou de acordo com essa figura, apoio essa figura, penso essa figura. Quer dizer, estou dentro, estudo essa figura; estou dentro.
Há participação direta e protagônica de Dagoberto Gutiérrez nas candidaturas independentes?
Na sentença da Sala do Constitucional, não... Essa sentença abriu o caminho para a figura das candidaturas independentes, eu penso que não há democracia representativa sem democracia participativa, e que antes da representação sempre existiu a participação, sempre... Isso faz parte do meu pensamento.
Eu entendo que a participação significa ser parte de um todo e eu sou parte de um todo quando tenho noção do todo e da parte, e que a chave não é exatamente a relação entre a parte e o todo, de maneira sistêmica, mas em certo modo a luta entre o todo e a parte, essa é a essência da participação.
Eu participo quando sou parte e não posso ser parte mais que de um todo, mas o todo não é todo sem as partes, essa é a ciência das partes. Dessa participação sai a representação, não pode haver representação sem que antes haja participação, parece um raciocínio simples, mas não é, apenas é simples, quer dizer, complexo.
Como pode um cidadão normal ser parte desse todo?
No campo da política isto é mais difícil de entender porque, por exemplo, o presidente da República é o primeiro mandatário, mas não há mandatário sem mandantes. E na relação entre mandantes e mandatário, quem decide é o mandante. E quem é o mandante? O povo. E o mandatário está a serviço de seu mandante. O mandatário faz o que seu mandante diz, aí há uma relação entre uma parte e o todo. Pois bem, nem sempre se entende que um mandatário deve sua razão de ser ao mandante, de repente se entende todos os dias que quando se diz mandatário se está dizendo que é independente do mandante, esta não é uma reflexão simples, é complexa.
Por isso, o primeiro passo na consolidação da figura das candidaturas independentes é o estudo da Constituição. E as pessoas devem entender que o problema da Constituição não é um problema de advogados, é um problema político, e os advogados não se especializam na Constituição, simplesmente porque a Constituição não é a arma para brigar.
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"A direita salvadorenha perdeu as eleições, mas não foi derrotada politicamente e segue governando’ - Instituto Humanitas Unisinos - IHU