21 Fevereiro 2011
"Na hora da crise desses poucos, generosidade, flexibilidade, repasse de recursos públicos - na forma de "renúncia fiscal". Pouco depois, na hora da urgente necessidade de reequilíbrio fiscal, só os que são remunerados a partir do salário mínimo são lembrados como contribuintes!", escreve Ivo Poletto.
E pergunta: "Até quando nossos governantes continuarão decidindo políticas que têm a ver com a sobrevivência de milhões de brasileiros e brasileiras com argumentos cínicos, dando impressão de que tomam decisões com seriedade e responsabilidade, quando, na realidade, escondem as responsabilidades e ampliam os privilégios das elites econômicas, fazendo que o Brasil continue o sétimo país com maior desigualdade social, que é o reverso da concentração da riqueza e da renda em poucas e, por enquanto, poderosas mãos?"
Ivo Poletto é assessor de pastorais e movimentos sociais. Trabalhou durante os dois primeiros anos do governo Lula como assessor do Programa Fome Zero e foi o primeiro secretário-executivo da Comissão Pastoral da Terra (CPT). Autor, entre outros, do livro Brasil, oportunidades perdidas: Meus dois anos no governo Lula (Rio de Janeiro: Garamond, 2005), é cientista social e educador popular.
Eis o artigo.
Ninguém desconhece que o salário mínimo recuperou relativamente seu poder de compra nos últimos anos. Nada muito significativo, porém. Afinal ele continua muito distante do que deveria ser se o que determina a Contituição Federal sobre salário mínimo fosse aplicado. Aqui o primeiro cinismo: quando a decisão se refere aos mais pobres, que recebem salário mínimo por seu trabalho ou igual valor em sua aposentadoria, as elites, os governos e a grande mídia fazem de conta que não conhecem a Constituição, mas a conhecem de cor e salteado sempre que algum privilégio das elites, ainda presente na Constituição como se fosse "direito", é colocado em questão! Basta lembrar como os deputados e senadores conhecem e aplicam a norma constitucional na hora de aumentar seus próprios salários e demais privilégios, e como, além deles, também praticamente todos os juízes sempre estão prontos para defender grandes proprietários, muitos deles relés grileiros, para aplicar a Constituição que, para nossa desonra, não estabelece sequer o tamanho máximo e o número de propriedades que cada ricaço pode possuir!
Até perto do final do ano passado, a capacidade aquisitiva das mal denominadas "classe C e D" e seu desejo de comprar teria sido um dos fatores que ajudaram a enfrentar a crise internacional, reduzindo-a a uma simples "marola", nas palavras do ex-presidente Lula. Passados alguns meses e já em ação um novo governo, agora a continuidade de melhoria da capacidade de compra das mesmas "classes", remuneradas na base do salário mínimo, não pode mais acontecer, já que causaria desequilíbrio das contas públicas e seria fonte de crescimento da inflação. Como entender esse jogo de argumentos sem perceber que se trata de cinismo desbragado?
Na realidade da história, os pobres não causaram crise financeira internacional e nacional alguma; ela foi causada pelos desvarios dos donos e executivos dos grandes bancos e pela falta total de controle dos governos sobre essas loucuras. Assim mesmo, aos causadores da sua própria crise foram repassados em torno de 20 trilhões de dólares para evitar que quebrassem, pois seriam "grandes demais" e sua quebra provocaria uma quebradeira geral. Pergunto: será possível encontrar argumentos e práticas mais cínicas?
Voltemos ao nosso dramático problema na hora de definir o aumento do salário mínimo. O ministro da Fazenda Guido Mantega foi à Câmara dos Deputados, e contou com apoio incondicional do PMDB e das lideranças e ampla maioria dos petistas e demais partidos da "base" governamental, para argumentar que o salário mínimo com aumento restrito era absolutamente necessário para "garantir o equilíbrio fiscal" do Orçamento público. Uma vez mais, um cinismo quase perfeito! Por que não cobrar a devolução dos que foram beneficiados para enfrentarem a crise criada por eles próprios, e que retomaram a geração de bilhões e bilhões de reais de lucros, como no caso dos bancos e das fabricantes e revendedoras de aumtomóveis e outros produtos que foram liberados de recolher impostos para venderem mais? Na hora da crise desses poucos, generosidade, flexibilidade, repasse de recursos públicos - na forma de "renúncia fiscal". Pouco depois, na hora da urgente necessidade de reequilíbrio fiscal, só os que são remunerados a partir do salário mínimo são lembrados como contribuintes!
Se até articulistas conservadores reconhecem que não se chegará ao fim da crise financeira internacional sem que se cobre a devolução do que foi a eles erroneamente tranferido, e sem que os governos controlem o funciomento do capital financeiro, cabe-nos apenas perguntar: até quando nossos governantes continuarão decidindo políticas que têm a ver com a sobrevivência de milhões de brasileiros e brasileiras com argumentos cínicos, dando impressão de que tomam decisões com seriedade e responsabilidade, quando, na realidade, escondem as responsabilidades e ampliam os privilégios das elites econômicas, fazendo que o Brasil continue o sétimo país com maior desigualdade social, que é o reverso da concentração da riqueza e da renda em poucas e, por enquanto, poderosas mãos?
Há outro argumento eminentemente cínico: o de que se deve evitar o controle sobre os preços das commodities agrícolas, que dispararam porque estão sendo usados para especulação mundial, e já levaram à miséria mais 40 milhões de pessoas, para que o Brasil possa continuar tendo vantagens em sua balança comercial. Mas isso é assumto para outra reflexão crítica.
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Até onde irá o cinismo? - Instituto Humanitas Unisinos - IHU