20 Fevereiro 2011
Há uma mudança no mundo político, social e cultural do Oriente Médio. Criará muitas tragédias, levantará muitas esperanças e derramará demasiado sangue. Talvez seja melhor ignorar os analistas e seus think tanks, cujos "especialistas" idiotas dominam os canais de televisão globais. Se os tchecos puderam ter sua liberdade, por que não os egípcios? Se os ditadores podem ser derrubados na Europa – primeiro, os fascistas, depois, os comunistas – por que não ocorreria o mesmo no grande mundo árabe muçulmano? E – só por um momento – deixem a religião fora disso. O artigo é de Robert Fisk, correspondente do jornal The Independent, e publicado por Carta Maior, 20-02-2011.
Eis o artigo.
Hosni Mubarak denunciou que os islamistas estavam por trás da revolução egípcia. Ben Alí disse a mesma coisa na Tunísia, O rei Abdulá, da Jordânia, vê uma mão obscura e sinistra, a mão da Al Qaeda, da Irmandade Muçulmana, uma mão islamista por trás da insurreição que percorre o mundo árabe. No sábado, as autoridades do Bahrein descobriram que a mão ensanguentada do Hezbolah estava por trás dos levantes xiitas.
Como é possível que homens educados, mas singularmente antidemocráticos possam entender tudo tão errado? Confrontados com uma série de explosões seculares – Bahrein não está incluído nesta categoria – acusam os radicais islâmicos. O Xá cometeu um erro idêntico, no sentido inverso. Confrontado por um levante obviamente islâmico, ele acusou os comunistas.
Barack Obama e Hillary Clinton se esmeraram para dar uma pirueta mais rara. Havendo apoiado originalmente as "estáveis" ditaduras do Oriente Médio – quando deveriam estar ao lado das forças democráticas -, decidiram avalizar as reivindicações da democracia civil no mundo árabe justamente quando os árabes estão tão desencantados com a hipocrisia ocidental que não querem os Estados Unidos do seu lado. "Os norteamericanos interferiram em nosso país por 30 anos durante a era Mubarak, apoiando este regime e armando seus soldados", me disse a semana passada um estudante egípcio na praça Tahrir. "Agora ficaríamos agradecidos se deixassem de interferir do nosso lado", acrescentou. Ao final da semana, escutei as mesmas vozes em Bahrein. "Estavam nos baleando com armas estadunidenses e montados em tanques estadunidenses", afirmou um médico na quinta-feira. "E agora Obama quer ficar do nosso lado?", perguntou.
Os fatos dos últimos dois meses e o espírito anti-regime da inssurreição árabe – por dignidade e justiça, mas que por um emirado islâmico – ficaram em nossos livros de história por anos. E o fracasso dos mais próximos apoiadores do Islã será discutido por décadas. No sábado houve um especial interesse pelo último vídeo da Al Qaeda, gravado antes da queda de Mubarak, que enfatizava a necessidade de que o Islã triunfasse no Egito. No entanto, uma semana antes, as forças seculares, nacionalistas e honoráveis do Egito, homens e mulheres muçulmanos e cristãos, tinham se libertado do velho Mubarak sem nenhuma ajuda de Osama Bin Laden. Mais rara foi a reação do Irã, cujo líder supremo se auto convenceu de que a vitória popular egípcia era um triunfo do Islã. Dá para pensar que só Irã, Al Qaeda e seus mais ferrenhos inimigos, os ditadores árabes antiislâmicos, acreditam que a religião esteve por trás das rebeliões massivas dos manifestantes pró democracia.
A mais sangrenta ironia de todas – que acabou envolvendo Obama – foi que a República Islâmica do Irã estava louvando os democratas do Egito enquanto ameaçava executar seus próprios líderes democráticos opositores. Quase todos os milhões de manifestantes árabes que querem se ver livres da capa da autocracia – com nossa ajuda ocidental – viveram com medo e humilhação, e são muçulmanos. E os muçulmanos, diferentemente do Ocidente cristão, não perderam sua fé. Abaixo de pedras e dos cassetetes da polícia assassina de Mubarak, eles contra-atacaram gritando "Alá akbar" no que, para eles, não era uma "Jihad", uma guerra religiosa, mas sim uma batalha pela justiça. "Deus é grande" e a demanda por justiça são afirmações concordantes. A luta contra a injustiça: esse é o espírito do Corão.
No Bahrein temos um caso especial. Aqui uma maioria xiita é dirigida por uma monarquia sunita. A Síria, de fato, sofreria de "bahreinitis" pela mesma razão: uma maioria sunita é governada por uma minoria xiita. Bom, ao menos o Ocidente em sua defesa do rei Hamad, do Bahrein, pode aferrar-se ao fato de que o Bahrein, como o Kuwait, tem um parlamento. É uma velha e triste besta, que existiu entre 1973 e 1975 até que foi dissolvido inconstitucionalmente e depois reinventado em 2001 dentro de um pacote de "reformas". Mas o novo parlamento terminou sendo menos representativo que o primeiro. Os políticos da oposição foram acossados pela segurança do Estado e foram manipuladas as margens parlamentares para garantir que a minoria sunita seguisse com o controle do Parlamento.
Em 2006 e em 2010, por exemplo, o mais importante partido xiita do Bahrein ganhou só 18 das 40 cadeiras. Muitos me disseram que temem por suas vidas, que temem que as turbas xiitas os queimem em suas casas e os matem.
Tudo isso parece mudar. O controle do poder estatal tem que ser legitimado para ser efetivo e as balas para reprimir protestos pacíficos estavam destinadas a terminar em uma série de domingos sangrentos no Bahrein. Uma vez que os árabes aprenderam a perder seu medo, podem exigir os direitos civis que os católicos demandaram no passado na Irlanda do Norte. Ao final, os britânicos tiveram que destruir a liderança dos unionistas e trazer o IRA para compartilhar o poder com os protestantes. Os paralelos não são exatos e os xiitas não têm (ainda) uma milícia, apesar de o governo bahreiní ter mostrado fotografias de pistolas e espadas para apoiar sua opinião de que entre seus opositores há "terroristas".
No Bahrein há, não é necessário dizer, uma batalha sectária e secular, algo que o príncipe reconheceu inconscientemente quando disse que as forças de segurança deviam reprimir os protestos para impedir a violência sectária. É uma visão mantida selvagemente pela Arábia Saudita, que tem um forte interesse na eliminação do dissenso em Bahrein. Os ânimos dos xiitas da Arábia Saudita podem se exaltar se seus correligionários do Bahrein arrasarem o Estado. Então, escutaríamos os líderes alardear a ameaça da República Islâmica do Irã. Mas essas insurreições interconectadas não deveriam ser vistas no simples marco de fermentação no Oriente Médio. O levante no Iêmen contra o presidente Saleh (que está há 32 anos no poder) é democrático, mas também é tribal. E não falta muito para que a oposição empunhe armas. O Iêmen é uma sociedade armada, há tribos com armas e nacionalismo endêmico. E ainda há o caso da Líbia.
Kadafi é tão estranho, tão próspero, seu domínio tão cruel (ele está no governo há 42 anos), que é um Ozymandias esperando para cair. Sua proximidade com Berlusconi – e, pior ainda, seu amor meloso com Tony Blair – não irão salvá-lo. Enfeitado com mais medalhas que o general Eisenhower, desesperado por uma operação que levante sua papada, este desgraçado está ameaçando sua própria gente com castigos "terríveis" por desafiar seu regime. Há duas coisas a lembrar sobre a Líbia: como o Iêmen, é uma terra tribal e quando se levantou contra seus fascistas colonos italianos, começou uma selvagem guerra de libertação, cujos valentes líderes enfrentaram a forca com uma coragem incrível. Só porque Kadafi é um louco, não quer dizer que seu povo seja idiota.
Então, há uma mudança no mundo político, social e cultural do Oriente Médio. Criará muitas tragédias, levantará muitas esperanças e derramará demasiado sangue. Talvez seja melhor ignorar os analistas e seus think tanks, cujos "especialistas" idiotas dominam os canais de televisão globais.
Se os tchecos puderam ter sua liberdade, por que não os egípcios? Se os ditadores podem ser derrubados na Europa – primeiro, os fascistas, depois, os comunistas – por que não ocorreria o mesmo no grande mundo árabe muçulmano? E – só por um momento – deixem a religião fora disso.
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As cordas que movem o conflito no Oriente Médio - Instituto Humanitas Unisinos - IHU