15 Fevereiro 2011
O Papa disse que o casamento "não é um direito" e exige severidade do Tribunal da Rota.
A reportagem é de Juan G. Bedoya e publicada no jornal espanhol El País, 14-02-2011. A tradução é do Cepat.
Diariamente, cinco casais recorrem, na Espanha, a um tribunal eclesiástico para pedir a nulidade de seu vínculo. Não é uma anulação tão fácil como aquela do divórcio civil, mas quem a perseguir a consegue, depois de longos e, geralmente, caros trâmites. Apenas 122, de um total de 1.305, sentenças ditadas por juízes eclesiásticos em primeira instância em 2007 foram contrárias à nulidade. São números quase simbólicos em relação aos matrimônios registrados na Espanha anualmente. Em 2009, foram 175.167, dos quais 64,3% não precisaram de padre nem altar, isto é, foram uniões civis. Foi a primeira vez que essa opção ultrapassou os casamentos pelo rito católico (80.174). Houve apenas outras 785 uniões de outras religiões.
A tendência à diminuição dos matrimônios católicos, mais as petições de nulidade dos já celebrados e a chuva de divórcios também entre seus fiéis, alarmaram o Vaticano. Os bispos, além disso, sofrem a pressão de fiéis católicos que, apesar de terem que se divorciar, pedem para se recasar e continuar em comunhão com suas paróquias. Um sínodo de prelados europeus debateu há quatro anos essa questão, fechando momentaneamente o acesso de divorciados ao sacramento eucarístico.
"O que Deus uniu o homem não separe", diz o livro sagrado do catolicismo. É o princípio da indissolubilidade do matrimônio. Mas o divórcio se converteu em moeda comum nas sociedades modernas, também entre católicos. As consequências são que os divorciados são afastados da comunhão, uma espécie menor, mas bem visível, de excomunhão. Também não podem voltar a se casar pela Igreja, ainda que possam fazê-lo pelo civil apesar de o Vaticano não reconhecer o direito de um Estado de dispensar dos votos tomados em uma igreja romana.
A Conferência Episcopal argumenta que o matrimônio civil na Espanha "é um contrato muito mais leve" que o de um serviço telefônico. "O matrimônio é a união de qualquer cidadão por três meses, e aos três meses esse contrato pode ser dissolvido por qualquer uma das partes, sem precisar se justificar. Ou seja, é um contrato muito mais leve que contratar um serviço telefônico", disse o porta-voz episcopal e bispo auxiliar de Madri, o jesuíta Juan Antonio Martínez Camino.
Para evitar que a mesma impressão se estenda aos matrimônios abençoados por um sacerdote, Bento XVI deu ordem de endurecer os processos de nulidade. Já chega de anulações a qualquer preço, conclamou o Papa diante dos magistrados do Tribunal da Rota romana, reunidos por ocasião da abertura do ano judicial.
A primeira medida afetará os cursos de preparação ao matrimônio, que agora duram apenas alguns dias e, inclusive, horas. Essa medida acaba de ser anunciada em Madri pelo presidente da subcomissão da família da Conferência Episcopal, o bispo Juan Antonio Reig Plà. É o Pontifício Conselho para a Família quem está elaborando o "vade-mécum para a preparação do matrimônio" com essas e outras determinações.
Bento XVI propõe inclusive medidas sobre "o direito de casar" pela Igreja. Diz: "O direito a se casar, ou o ius connubii, deve ser visto nesta perspectiva. Não se trata de uma pretensão subjetiva que os pastores devem satisfazer mediante um mero reconhecimento formal, independentemente do conteúdo efetivo da união. O direito de contrair matrimônio pressupõe que se possa e se destina a celebrar na verdade da sua essência, assim ensinado pela Igreja. Ninguém pode reivindicar o direito a um matrimônio".
O que a Igreja romana defende sobre o matrimônio vem do Concílio de Trento, do século XVI, ainda que alguns eclesiásticos pareçam crer que a família e o matrimônio não existiam antes da fundação do cristianismo. Bento XVI não pretende agora mudar a doutrina, mas libertá-la "de conteúdos que não provinham da fé e que hoje devem ser abandonados".
O Papa pede aos juízes do Tribunal da Rota que deixem de abstrações ao ditar sentenças, nem sequer as pastorais. "Não é verdade que para ser mais pastoral o direito deve ser menos jurídico", disse. A ideia força é que o matrimônio cristão segue sendo indissolúvel e não se deve ceder "a pedidos sugestivos que façam com que a declaração de nulidade acabe tendo um custo".
Bento XVI faz o mesmo pedido aos advogados dos tribunais eclesiásticos. Em caso de dúvida, disse, o matrimônio deve ser entendido como válido enquanto não se conseguir provas irrefutáveis. Também adverte contra o ambiente social e, mais uma vez, contra o relativismo que se apoderou, segundo ele, das sociedades modernas.
Disse Bento XVI: "Convido-os à virtude da fortaleza, que se torna mais relevante quando a injustiça parece o caminho mais fácil a seguir, enquanto implica a condescendência aos desejos e às expectativas das partes, ou também aos condicionamentos do ambiente social. Sem verdade, a caridade deriva para o sentimentalismo e o amor se converte em uma máscara vazia, a ser preenchida arbitrariamente. É o risco fatal do amor em uma cultura sem verdade".
Sobre a polêmica de se um divorciado sem sentença de nulidade pode comungar, o Papa é taxativo. "Seria um bem fictício, e uma grave falta de justiça e de amor, aplainar o caminho para a recepção dos sacramentos, com o perigo de fazê-los viver em contraste com a verdade de sua própria condição pessoal".
Rastros do concubinato universal
"Se te casavas, podias ir dormir fora do quartel todas as noites, de maneira que chamei todas as moças que conhecia até que uma me disse que sim". Essa história é contada pelo cantor Joaquín Sabina e destacada pelo teólogo católico José Pedro Manglano em "O livro do matrimônio".
A citação serve para destacar que os motivos para se casar são tão misteriosos quanto os motivos do voto. Mas ao longo de séculos a Igreja católica ou o Estado querem intervir nessa decisão. Depois de afirmar que o matrimônio é "uma invenção social", Sabina resumiu as consequências: "Os papéis sempre embrulham".
Muitos das tensões entre o Estado e a Igreja tiveram o matrimônio como testemunha, tendo a legalização das uniões entre pessoas do mesmo sexo como último incidente, em 2005. Foi uma disputa furiosa, com bispos manifestando-se contra o Governo pelas ruas de Madri, mas muito menos agressiva que quando, em 1870, se introduziu na Espanha, pela primeira vez, o direito somente do casamento civil. Os jornais católicos publicaram a notícia da votação nas Cortes em páginas de margens pretas e os bispos ordenaram a celebração de ofícios expiatórios em todas as igrejas. Motivo: acabava-se de legalizar "o concubinato público universal".
Aceito pelo Vaticano como normal que os não cristãos possam casar-se à margem da Igreja – mesmo que às vezes tarde, o Vaticano costuma entrando na razão civil –, também houve barulho de batinas cada vez que se legalizou o divórcio na Espanha, tanto na II República, como em 1981, após o fim do obscuro nacional-catolicismo franquista.
O que agora angustia a hierarquia eclesiástica é que grande parte dos matrimônios celebrados acontece fora de sua Igreja, apesar de que 74% dos pesquisados pelo CIS se proclamem católicos. Também preocupa a proliferação de divórcios, inclusive entre os casados canonicamente depois de prometerem fidelidade indissolúvel. O Papa urge administrar remédio, mas não disse como. Saber-se-á dentro de alguns meses.
Nota da IHU On-Line: O discurso de Bento XVI pode ser lido aqui.
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Vaticano endurece processos de nulidade matrimonial - Instituto Humanitas Unisinos - IHU