26 Janeiro 2011
A ex-presidenta do Chile, Michelle Bachelet, ofereceu aos Estados Unidos, com grande franqueza, sua visão sobre vários líderes latino-americanos, segundo os documentos do Departamento de Estado filtrados pelo Wikileaks, ao El País. Para Bachelet, a presidenta da Argentina, Cristina Fernández de Kirchner, “tende a crer nos rumores da imprensa e faz comentários infelizes em público”. Quanto ao Brasil, “o ex-presidente crê que goza de uma fama desproporcional como mediador em conflitos regionais”.
A reportagem é de Francisco Peregil, publicada pelo jornal El País, 26-01-2011. A tradução é de Anne Ledur.
Falou sem papas na língua. Em um almoço com o responsável máximo para a América Latina dos Estados Unidos, Arturo Valenzuela, a então presidenta do Chile, Michelle Bachelet, expressou sua visão sobre os líderes do continente sem nenhum rodeio. Foi no dia 12 de janeiro de 2010, no palácio presidencial de La Moneda. Três dias depois, o embaixador dos Estados Unidos no Chile, Paul Simons, enviava seu informe a Washington. A Argentina, segundo Bachelet, tem problemas de “credibilidade como país”. “Sua democracia não é robusta e suas instituições não são fortes. Tende a viver de crise em crise, em vez de perseguir políticas estáveis”, indicou.
O subsecretário de Relações Exteriores, Ángel Flisfisch, presente na reunião, acrescentou que o “inusual sistema federal” da Argentina e a ideologia peronista “podem levar à paranoia política e somam obstáculos à estabilidade”. Eduardo Frei, o candidato presidencial em 2010 pela Concertación, se expressava em termos parecidos em outra reunião com Arturo Valenzuela pelas mesmas datas: “A Argentina destrói de dia o que a natureza cria de noite”.
Com relação à presidenta Cristina Fernández de Kirchner, Bachelet acrescentou que condensava em sua pessoa os problemas da Argentina. “Kirchner não é anti-Estados Unidos, mas está convencida de que o `maletaço` de 2007 [o empresário venezuelo-estadounidense, Guido Alejandro Antonini Wilson, foi surpreendido no aeroporto de Buenos Aires com uma maleta com 800 mil dólares para supostamente financiar a campanha de Cristina Kirchner] foi tramado contra ela e não admitirá provas que a contradigam”, diz. “Kirchner tende a crer nos rumores e os artigos caluniosos da imprensa e tem a tendência de fazer comentários infelizes em público”, acrescentou.
O interlocutor da ex-presidenta naquele almoço era e segue sendo o representante máximo para a América Latina da administração Obama. Valenzuela nasceu no Chile, em 1944, e emigrou para os Estados Unidos com 16 anos. Michelle Bachelet parecia se expressar com plena confiança frente a seu antigo compatriota.
Com relação ao Brasil, a ex-presidenta indicou que, mesmo que a imprensa retrate o país como um importante mediador regional, ele “não exerce um papel importante na maioria dos temas regionais”. O Brasil está mais interessado em desempenhar uma função importante no cenário mundial, em temas como mudança climática e na proliferação do armamento nuclear. Para ela, Lula é uma “raposa política, inteligente e encantadora”. E a então candidata presidencial brasileira Dilma Roussef era vista como “distante e formal”.
A ex-presidenta e responsável máxima da ONU Mulheres insistiu na necessidade de não se desejar levar pelos estereótipos de países populistas pró-ocidentais e fixar-se nas matizes de cada líder latino-americano. Insistiu que o boliviano Evo Morales é “muito diferente” do venezuelano Hugo Chávez, e acrescentou que Morales foi eleito de forma limpa.
Se mostrou especialmente elogiosa com o ministro de Relações Exteriores boliviano, David Choquehuanca, de quem destacou que é “sereno e capaz” e melhor preparado que outros líderes bolivianos. Assinalou que é importante ter em conta as diferenças culturais para compreender a Bolívia. Falando com Bachelet sobre crescimento econômico, Choquehuanca se mostrou mais interessado na “qualidade de vida que no desenvolvimento econômico como objetivo em si mesmo”.
Quanto ao Chile, Bachelet mostrou sua preocupação diante da “tremenda concentração de poder”, que o multimilionário Sebastián Piñera poderia monopolizar se chegasse à presidência, coisa que ocorreria em menos de dois meses.
A ex-presidenta expressou também sua preocupação pelo “sensacionalismo” da imprensa chilena e os prejuízos contra a Concertación, a formação de centro-esquerda que governou o país durante 20 anos. Cada vez que o então candidato presidencial Eduardo Frei falava do conflito de interesses que poderia se produzir com Piñera como presidente, a imprensa conservador o tachava de “guerra suja”, conforme diz Bachelet.
A embaixada dos Estados Unidos vê Bachelet com muito bons olhos. Por motivo de uma viagem a Washington, em junho de 2009, em que Bachelet tinha uma entrevista junto com Barack Obama, o embaixador Simons apresentou credenciais que não podiam ser melhores sobre ela. A viagem era vista como uma oportunidade para “alargar e aprofundar a relação com uma das mais bem-sucedidas democracias do hemisfério”.
O diplomata elogiou os êxitos do ministro da Economia, Andrés Velasco, por responder de forma eficiente à crise financeira mundial. “Apesar de seu êxito econômico, Bachelet observa seu legado, sobretudo na esfera social. Suas iniciativas expandiram o esquema de pensões privadas à população de renda mais baixa, ofereceu cuidados gratuitos para as crianças e nutrição básica para as famílias de baixa renda, expandiu o acesso à saúde e fortaleceu a educação pública”. E tem mais: “Graças ao crescimento econômico e às medidas postas
em andamento, a pobreza caiu de 40% da população, em 1990, a 14%, em 2006”.
Dois meses depois do encontro com Obama, em agosto de 2009, na visita do general Douglas Fraser ao Chile, o embaixador em Santiago enviava outro documento a Washington, em que elogiava a política internacional de Bachelet, mas lembrava: “No outono passado, durante a Assembleia Geral da ONU, Bachelet disse que os Estados Unidos e o Chile são `amigos políticos, mas não amigos incondicionais`” e criticou os Estados Unidos por seu papel em precipitar a crise financeira.
Apesar disso, o diplomata recordou: “Nos últimos três meses, o Chile desempenhou um papel construtivo na entrada com condições de Cuba na Organizações dos Estados Americanos; no conflito de Honduras; e em rebaixar a retórica que surgiu contra os acordos militares de cooperação entre a Colômbia e os Estados Unidos”. Nesse último aspecto, ao que a Venezuela se opôs, Bachelet desempenhou um trabalho tão eficaz como discreto, segundo os Estados Unidos: “O Chile não se sente cômodo com a retórica e as ações populistas do presidente Hugo Chávez, mas preferiu trabalhar caladamente, atrás da cena, para conseguir uma moderada influência antes de rebater em público suas declarações mais descabeladas”.
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Michelle Bachelet: Lula é uma "raposa política, inteligente e encantadora" - Instituto Humanitas Unisinos - IHU