17 Janeiro 2011
No dia 4 de janeiro, o cardeal Franc Rodé renunciou como chefe do "gabinete de Governo" do Vaticano que lida com as ordens religiosas, incluindo as comunidades de freiras de todo o mundo. Ele é chamado de Congregação para os Institutos de Vida Consagrada e as Sociedades de Vida Apostólica. Ele foi substituído por um brasileiro, o arcebispo João Bráz de Aviz. E o novo número dois no comando é um norte-americano, o arcebispo Joseph Tobin.
A análise é de Maureen Fiedler, religiosa das Irmãs de Loreto, que atua em diversas organizações em torno do diálogo inter-religioso, justiça social, igualdade racial e de gênero e da paz. É também doutora em ciências políticas pela Universidade de Georgetown em Washington, EUA. O artigo foi publicado no sítio The Huffington Post, 14-01-2011. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
As religiosas norte-americanas e observadores do Vaticano ficam imaginando o que está acontecendo. Rodé, segundo muitos, é um arquiconservador com uma visão arcaica da vida religiosa, que ressoa com o século XVIII, ao invés do século XXI. Seu projeto mais famoso (ou infame, dependendo de quem você pergunta) foi uma "investigação" formal de todas as ordens ativas de freiras nos Estados Unidos, anunciada formalmente em uma coletiva de imprensa em janeiro de 2009. Um mês depois, o Vaticano anunciou uma "investigação doutrinal" da Leadership Conference of Women Religious, a organização que representa a liderança coletiva de cerca de 90% a 95% de todas as religiosas dos Estados Unidos.
Essas investigações surgiram sem quaisquer alegações de irregularidades que os inquéritos oficiais normalmente induzem. E trouxeram uivos de protesto das próprias religiosas e de muitos leigos. Foi típico o comentário de um amigo meu: "Bem, deixe-me ver se eu entendi. Alguns padres cometeram abusos sexuais. Os bispos encobriram tudo. E então eles estão investigando as freiras?". A investigação das religiosas não tem nada a ver com os abusos sexuis, é claro, mas esse escândalo levou alguns a questionar se essa é uma tentativa de desviar a atenção do desastre dos abusos sexuais.
As lideranças das comunidades religiosas femininas, um grupo que, geralmente, busca o diálogo com Roma sobre questões difíceis, protestou contra todo o processo. Quando um questionário escrito (a fase 2 da investigação) foi enviado a todas as comunidades, uma porcentagem muito grande protestou contra a sua intromissão e simplesmente se recusou a preenchê-lo.
Essas mulheres não são radicais que gostam de enganar o Vaticano. No máximo, são centristas moderadas em suas comunidades. Mas estavam simplesmente tão irritadas que se envolveram em uma colaboração subterrânea em todo o país, para que nenhuma comunidade fosse um cavaleiro solitário na resistência. O resultado? Muito poucos questionários foram devolvidos a Roma na data marcada. Essas mulheres haviam chegado ao seu limite.
Os problemas com a investigação são inúmeros. Primeiro, o Vaticano não deu qualquer razão formal para lançá-la, para começá-la.
O processo delineado para a investigação violou os valores da abertura, do diálogo e da colaboração adotados pelas freiras norte-americanas desde o Concílio Vaticano II, no início da década de 1960. Não foi, em nenhum sentido, um esforço colaborativo, e o relatório final ao Vaticano sobre cada comunidade deve permanecer em segredo, não dando às comunidades nenhuma chance de corrigir erros ou de responder às conclusões irrazoáveis. As lideranças das comunidades protestaram fortemente, indicando que isso é inaceitável.
E, então, o processo é chefiado por uma freira de uma ordem tradicional, Madre Mary Clare Millea, ASCJ, Superiora Geral das Apóstolas do Sagrado Coração de Jesus, com sede em Connecticut. Eu falei com freiras progressistas que conheço, e elas acharam-na honesta, simpática e aberta como pessoa. Mas rapidamente reconhecem que ela trabalha para o Vaticano nessa posição de investigação e, provavelmente, não tem carta branca para pôr em prática os seus melhores instintos.
Na base de tudo, há uma preocupação profunda de que o Vaticano quer controlar as freiras norte-americanas, devolvê-las aos seus ministérios e estilos de vida tradicionais, colocá-las novamente nos hábitos, reduzir a sua independência e mantê-las longe de falar sobre assuntos públicos.
Quando a Leadership Conference falou a favor da reforma da saúde em 2010, enquanto os bispos norte-americanos se opunham a ela, o Vaticano foi apoplético. E, claro, a posição das freiras prevaleceu. De fato, existem alguns que acreditam que a sua posição pública foi fundamental na mudança de alguns dos últimos votos na Câmara dos Deputados.
E, sem dúvida, algumas freiras individuais se pronunciaram a favor dos direitos de gays e lésbicas, da ordenação de mulheres e até mesmo de uma abordagem pro-choice com relação ao aborto.
E apesar de algumas freiras ainda hoje manterem ministérios tradicionais nas escolas e ministérios paroquiais católicos, elas não são geralmente as mulheres desagradáveis em hábitos compridos, que ficaram famosas nos filmes antigos. Milhares delas colocaram a justiça e a paz como prioridade e muitas vezes defendem os direitos das mulheres. Muitas são ativas em movimentos ambientalistas. Algumas participam de campanhas e manifestações antiguerra e antitortura, ou de protestos contra a Escola das Américas, na Geórgia. Não poucas foram para a prisão. Muitas trabalham com os pobres e defendem os pobres nos tribunais. E muitas trabalham especificamente com mulheres pobres – em abrigos para sem-teto, centros de crise de estupro e centros que lidam com a violência doméstica.
Alguns comentaristas acham que Rodé e sua turma queriam pôr fim a tudo isso e fazer com que as freiras norte-americanas voltassem para a sala de aula e para o convento.
Como uma freira que esteve envolvida no trabalho pela paz e pela justiça, na colaboração inter-religiosa e pelos direitos das mulheres, não há praticamente nenhuma chance de isso acontecer, mesmo que esse fosse o motivo de Rodé, e mesmo que ele tivesse ficado. O evangelho da justiça e da paz faz parte da nossa medula óssea nestes dias. Ele é – como os documentos oficiais da Igreja dizem – "uma dimensão constitutiva da pregação do evangelho".
Mas e os novos homens no Vaticano? Será que vão mudar o curso dessa investigação? O Vaticano ficou "queimado" com a crítica forte e inesperada e com o não cumprimento por parte das freiras norte-americanas? Talvez as autoridades da Cúria, talvez o próprio Papa decidiu que é hora de silenciosamente enterrar essa ideia – ou pelo menos de apresentar resultados benignos.
Ninguém sabe, mas alguns sinais são positivos. O arcebispo Tobin trabalhou com freiras norte-americanas durante décadas, e diz que ele as admira. Dom João Bráz de Aviz, do Brasil, não fala inglês e nunca viajou aos Estados Unidos, mas diz estar aberto a um diálogo com as religiosas norte-americanas sobre a investigação. Ambos falam com cautela, porém, e ambos trabalham para o Vaticano, e por isso não são agentes independentes. Ainda assim, é difícil imaginar alguém mais linha dura do que Rodé, e ele foi embora. Provavelmente, 2011 abre um capítulo inteiramente novo para essa investigação.
FECHAR
Comunique à redação erros de português, de informação ou técnicos encontrados nesta página:
Novas mudanças na investigação do Vaticano das religiosas norte-americanas - Instituto Humanitas Unisinos - IHU