09 Janeiro 2011
O que as nomeações para a Cúria Romana de Dom Raimundo Damasceno de Assis, Dom Odilo Pedro Scherer e Dom João Braz de Avis significam para a vida da Igreja no Brasil? Como interpretá-las? Qual impacto delas para as próximas eleições da CNBB. Quem formula e procura responder a essas indagações é o professor Sérgio Ricardo Coutinho.
Sérgio Ricardo Coutinho é mestre em História pela UnB; professor de História da Igreja no Instituto São Boaventura em Brasília; professor de História da Igreja Antiga no Curso de especialização em História do Cristianismo Antigo na UnB; membro da Associação Brasileira de História das Religiões (ABHR) e presidente do Centro de Estudos em História da Igreja na América Latina (Cehila-Brasil).
Eis o artigo.
Nem mesmo o ano novo se iniciou pudemos já verificar os desdobramentos dos dois grandes eventos eclesiásticos de 2010, diretamente direcionados com a Igreja no Brasil: as Visitas Ad limina e o último Consistório.
Nesta primeira semana de janeiro recebemos a notícia de três nomeações de bispos brasileiros para ocupar cargos importantes na Cúria Romana, juntando-se a Dom Walmor Oliveira de Azevedo, arcebispo de Belo Horizonte, nomeado membro da Congregação para a Doutrina da Fé desde agosto de 2009.
O novo cardeal Dom Raimundo Damasceno de Assis foi nomeado membro do Conselho Pontifício das Comunicações Sociais e também para a Comissão Pontifícia para a América Latina; o cardeal arcebispo de São Paulo, Dom Odilo Pedro Scherer, como membro do mais novo dicastério romano: o Conselho Pontifício para a Promoção da Nova Evangelização; e o arcebispo de Brasília, Dom João Braz de Avis, que desbancou o favoritíssimo cardeal Maradiaga de Honduras, como Prefeito para a Congregação dos Institutos de Vida Consagrada e as Sociedades de Vida Apostólica.
O que essas nomeações significam para a vida da Igreja no Brasil? Como interpretá-las? Qual impacto delas para as próximas eleições da CNBB?
Durante a fase preparatória do Concílio Vaticano II (1959-1961), havia um forte sentimento que desejava a descentralização e reforma da Cúria Romana. Naquela época, vários motivos eram apresentados para a atitude negativa de muitos bispos em relação à Cúria. Para alguns prelados ela era uma barreira entre os bispos e o Papa. Para outros, a Cúria era vista como arbitrária, auto-crítica e acima dos bispos. A preocupação de muitos deles, com a chegada do Concílio, estava mais na quebra do poder da Cúria do que propriamente discutirem teologia.
Sabedor do sentimento dos bispos em relação à Cúria Romana, o próprio papa Paulo VI convidou os padres conciliares a discutir o tema. Os resultados das discussões sobre a reforma da Cúria encontram-se no “Decreto sobre o Múnus Pastoral dos Bispos na Igreja” – Christus Dominus [n.1].
O decreto pede que haja uma reorganização da Cúria mais de acordo com as necessidades dos tempos e diversidade de lugares e ritos na Igreja. Ou seja, uma Cúria reformada deveria mais claramente levar em conta a grande diversidade existente na Igreja: geográfica, cultural e histórica; não apenas em sua composição, mas, o que seria mais importante, nas suas políticas e procedimentos. Especificamente, o Vaticano II previa três coisas: internacionalização, melhor comunicação e coordenação entre os departamentos na Cúria, e, finalmente, a participação de bispos e leigos.
Interessa-nos aqui neste momento é o primeiro aspecto da internacionalização. Desde o fim do Vaticano II (1965), houve de fato uma significativa internacionalização da Cúria. Pelo menos dois terços dos membros dos dicastérios romanos são de fora da Itália, e há um notável aumento de não italianos nos quadros de funcionários das congregações.
O que se esperava, de fato, é que a internacionalização trouxesse para a Cúria pessoas com diferentes experiências e pontos de vista, dando-lhe assim uma visão mais aberta. O problema está em que facilmente os oficiais da Cúria e seus quadros perdem sua identidade nacional, tornam-se romanizados, ou seja, assumem os modos de pensar e ver da Cúria, que se vê mais como o “centro” e o resto da Igreja como “periferia”, perdem o contato com suas regiões e com as realidades pastorais das Igrejas das quais procedem.
E também a maneira como os membros da Cúria romana são escolhidos ajuda muito pouco a criar essa visão mais aberta que o concílio tinha em mente. Os nomes dos candidatos para as congregações ou conselhos são levantados pelos chefes de departamento e pela Secretaria de Estado. Geralmente não há consulta às conferências episcopais da região de onde procedem os candidatos. Muitas vezes são escolhidos não tanto porque irão trazer uma nova visão ou mentalidade, mas porque estão de acordo com o ethos e o ponto de vista predominante na Cúria. Assim, é possível haver uma internacionalização dos membros sem uma “internacionalização” das mentalidades [n.2] .
Os documentos da diplomacia norte-americana divulgados pelo site Wikileaks acabam por reforçar esta nossa opinião sobre a qualidade desta “internacionalização”. A embaixada americana critica “a fraqueza da liderança da cúpula” e diz com alarme que o núcleo íntimo do Papa “tem poucos conselheiros que falam inglês”, concluindo que a Cúria “não aproveita (se não as ignora completamente) as comunicações do século XXI”. A embaixada anota, além disso, “a ausência de vozes dissidentes”.
Dom João Braz de Avis, historicamente, sempre teve pouca habilidade política. Sua relação com o poder executivo do Distrito Federal foi de muita aproximação com o governado José Roberto Arruda, preso por corrupção. Internamente, na relação com a CNBB, sempre foi muito crítico quanto à linha tradicional desta instituição, ou seja, de ter um maior diálogo com o Estado e a sociedade. Defendeu o fim da expressão “comunidades eclesiais de base”, em favor de outro termo, mais “asséptico” e menos “ideológico”, de “pequenas comunidades”, durante a V Conferência de Aparecida. E foi dele a pauta que orientou a fala do papa Bento XVI sobre o correto comportamento da CNBB, incluindo seus assessores, durante a última visita Ad limina do Regional Centro-Oeste.
Por outro lado, Dom João parece ter construído aquilo que é muito comum nas grandes organizações e no mundo business – “network” – uma rede de relacionamentos fortes, o que explicaria sua escolha em detrimento do cardeal Maradiaga. Muito provavelmente seu vínculo com o Movimento de Chiara Lubichi, o Focolares, lhe rendeu uma boa indicação. Talvez também dando pistas para o tipo de “vida religiosa” que o papa Bento XVI gostaria de ver realizado na vida da Igreja neste momento que retoma o projeto de Nova Evangelização de João Paulo II.
Para se ter uma idéia da visão que o dicastério, para onde foi nomeado, tem sobre a Vida religiosa, por ocasião da XVII Assembléia Nacional da Confer (Confederação Espanhola de Religiosos e Religiosas), seu Presidente, o jesuíta Elías Royón, convidou para proferir o discurso de encerramento o então prefeito da Congregação, Dom Franc Rodé. Deixando o auditório boquiaberto, arremeteu contra a Vida Consagrada, chamando-a de “paralela à Igreja em geral” e de ser a causa, após o Vaticano II e tendo o protagonismo dos jesuítas de Pedro Arrupe, de todos os desmandos ocorridos com o Povo de Deus e o Mistério de Comunhão.
Além disso, ele entra em uma Congregação “com alguns focos de incêndio que já estão em chamas”, como afirma John L. Allen Jr. A Congregação para os Religiosos é responsável pela controversa Visitação Apostólica das religiosas norte-americanas, que deverá ser realizada até 2011, e também supervisionou a visitação aos Legionários de Cristo, que levou à recente decisão do Papa Bento XVI de nomear um Delegado Apostólico para a ordem. O delegado, o arcebispo italiano Velasio De Paolis, é membro da Congregação para os Religiosos.
Parece haver uma inter-relação entre a nomeação de Dom João Braz de Avis e o novo cardeal Dom Raimundo Damasceno Assis. A nomeação de Dom Damasceno segue a linha de retribuição pelos bons préstimos na realização da V Conferência de Aparecida, pela presidência que exerce no CELAM, e do cuidado do grande Santuário de Nossa Senhora Aparecida e seu aparato de mídia televisiva.
Sua contribuição será mais visível no Brasil que propriamente na Cúria. Dom Raimundo Damasceno esteve na posse da presidente Dilma Roussef, ao invés, por exemplo, da presidência da CNBB. Estaria ele representando o papa Bento XVI? Para isso o Núncio Apostólico já seria o suficiente. Nossa hipótese é de que D. Damasceno deixará Aparecida e virá para a arquidiocese de Brasília.
Dom Damasceno conhece bem a dinâmica política da cidade, coisa que Dom João teve muito pouco habilidade como ele mesmo confessou em sua entrevista: “Temos a conotação política da capital federal, lidamos com as crises políticas nos últimos tempos... Esse lado é complicado em Brasília, mas muito rica essa relação com as autoridades. A própria CNBB realiza isso em nível nacional e nós realizamos em nível local do Distrito Federal”. Além disso, será necessário alguém com uma boa experiência na relação com o governo, já que D. Damasceno também foi secretário-geral da CNBB e que possua uma boa base de diálogo para ajudar na efetiva implementação do Acordo Brasil-Santa Sé.
A ideia da nova evangelização, embora tenha nascido enquanto projeto com o papa João Paulo II, é totalmente ratzingeriana. Foi Bento XVI que quis o recém nascido Pontifício Conselho para a Promoção da Nova Evangelização, da qual o arcebispo italiano Rino Fisichella é presidente. Foi Bento XVI que insistiu na necessidade de que o cristianismo seja proposto ao nosso mundo como algo vivo, moderno, “que atravessa – disse o Papa a Peeter Seewald –, formando-a e moldando-a, toda a modernidade e que, portanto, em certo sentido, verdadeiramente a abraça”. E ainda: “Aqui é necessária uma grande luta espiritual... É importante que procuremos viver e pensar o cristianismo de tal modo que ele assuma a modernidade boa e justa e, assim, ao mesmo tempo, se afaste e se distinga daquela que está se tornando uma contrarreligião”.
A um “ministério” encarregado de responder a um problema que o Papa sente como vivo em sua própria carne, são necessárias competências escolhidas.
A nomeação de Dom Odilo Scherer me parece ser um indicativo para o futuro da CNBB. Se em 2007 ele se apresentava como um candidato forte, em função de sua recém nomeação como arcebispo de São Paulo, agora com esta nova nomeação para um dicastério, que será a menina dos olhos do papa Bento XVI, suas chances são muito consistentes.
Durante os anos 1970 e 1980 – e, com menor intensidade, nas duas décadas passada –, a CNBB foi marcada por uma relativa independência em relação a Roma. As preocupações e indicações do papa eram, obviamente, observadas e seguidas, mas a conferência sempre buscou um espaço de autonomia para deliberar e agir politicamente a respeito de problemas que considerava da “realidade local”. Bispos e leigos defensores dessa linha temem que a entidade perca esse caráter, em alguma medida, sob o comando do cardeal-arcebispo de São Paulo.
Interessante é verificar a opinião do embaixador norte-americano sobre o perfil de Dom Odilo, em documento de 2007, divulgado pelo Wikileaks: “Dom Scherer, que preside a terceira maior arquidiocese do mundo católico, representa uma nova geração de bispos brasileiros católicos que, sob a influência do Papa João Paulo II, ajudou a reduzir a influência da teologia da libertação sobre a Igreja no Brasil. A expectativa sobre ele, como Arcebispo, é que dedique mais atenção às questões morais e religiosas e menos à política. Isso não significa, porém, que ele vai evitar confrontos políticos que possam surgir. Em contraste com o cardeal Hummes, que é moderado, sutil e discreto, o bispo Odilo é considerado de fala franca e politicamente independente... O arcebispo, que serviu anteriormente como secretário-geral da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), salientou que a Igreja não tem uma missão política. Ela não é filiada a nenhum partido político e não abraça nenhuma ideologia. Ela atua mais como uma força moral e ética na sociedade. O desafio, segundo ele, é fazer com que sua voz seja ouvida. Sua missão é ajudar a Igreja no Brasil a voltar às suas raízes religiosas, enquanto isso, ao mesmo tempo, ampliar seu apelo popular”.
Se os diplomatas norte-americanos percebem a “ausência de dissidência” na Cúria romana – que, além do cardeal Bertone, todos os demais também seriam “Yes man” –, como será a força do episcopado brasileiro, e conseqüentemente da CNBB, diante da projeção destes novos membros curiais brasileiros? Vamos acompanhar um pouco mais, pois o ano está só começando.
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Notas:
1 - Christus Dominus, nn. 9 e 10.
2 - QUINN, John R. Reforma do Papado: indispensável para a unidade cristã, São Paulo: Ed. Santuário, 2002, pp. 177-179.
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Brasileiros na Cúria Romana e seus possíveis desdobramentos - Instituto Humanitas Unisinos - IHU