05 Janeiro 2011
"Como cardeal, Joseph Ratzinger foi um dos mais convictos críticos do encontro inter-religioso de Assis em outubro de 1986. Como Papa, depois dos primeiros e difíceis anos marcados pela grave crise nas relações da Igreja ad extra, ele agora redescobre a urgência e, de alguma forma, a inevitabilidade dessa intuição de João Paulo II."
A opinião é de Massimo Faggioli, doutor em história da religião e professor de história do cristianismo no departamento de teologia da University of St. Thomas, em Minneapolis-St. Paul, nos EUA. O artigo foi publicado na revista Europa, 04-01-2011. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Eis o texto.
O Papa Bento XVI marcou uma das datas importantes do seu pontificado com a mensagem intitulada Liberdade religiosa, caminho para a paz para o dia da paz que ocorre todos os anos no dia 1º de janeiro e com o discurso do Ângelus do primeiro dia de 2011. O Papa lembrou "o espírito de Assis", a 25 anos daquela histórica iniciativa de João Paulo II de oração inter-religiosa pela paz, e anunciou uma peregrinação sua à cidade de Francisco para o próximo mês de outubro.
A decisão é importante por diversos motivos. Ao longo da última década, tornou-se sempre maior a pressão do fundamentalismo islâmico sobre os cristãos do Oriente Médio (também por causa da guerra iraquiana e das suas ramificações políticas regionais), da Índia, do Paquistão e do Sudeste Asiático, e nenhuma leitura do mundo politically correct pode já esconder a experiência de martírio de muitos cristãos que vivem fora das fronteiras sul-orientais da Otan e da União Europeia.
O recente atentado de Alexandria do Egito se segue aos dos últimos meses e anos no Iraque, no Paquistão e a constante diminuição do número dos cristãos no Oriente Médio por causa de um clima político sempre menos hospitaleiro com relação a uma minoria, a cristã, que, para essas terras, certamente não é menos originária do que a maioria muçulmana.
A resposta dada por Bento XVI a esses últimos desenvolvimentos mostrou ser original e corajosa. Esquecendo-se dos teocon conterrâneos (lembre-se de Marcello Pera e o assustador discurso contra a "mestiçagem cultural" no Meeting de Rimini de agosto de 2005), o Papa assume um dos elementos mais importantes da tradição do catolicismo conciliar. Tentar negar que alguma coisa aconteceu no dia 1º de janeiro de 2011 é inútil: basta perguntar o que pensam do "espírito de Assis" àqueles que até pouco tempo atrás eram os mais aguerridos defensores de Bento XVI enquanto purificador do generoso mas ingênuo "irenismo" de João Paulo II.
Como cardeal, Joseph Ratzinger foi um dos mais convictos críticos do encontro inter-religioso de Assis em outubro de 1986. Como Papa, depois dos primeiros e difíceis anos marcados pela grave crise nas relações da Igreja "ad extra" (o discurso de Regensburg e as relações com o islã em 2006, a oração da Sexta-Feira Santa e os judeus em 2007-2008, a revogação das excomunhões dos lefebvrianos em 2009), ele agora redescobre a urgência e, de alguma forma, a inevitabilidade dessa intuição de João Paulo II. A Igreja conciliar é fundamentada no "magistério dos gestos", assim como nos textos escritos pelos documentos oficiais: o sucessor de João Paulo II reconhece isso e põe a Igreja e pontificado em ação como ministério eclesial ao qual foi eleito em abril de 2005.
Não se sabe ainda qual forma irá assumir o encontro de outubro de 2011, mas já se podem evidenciar alguns elementos ligados às decisões do Papa. Em primeiro lugar, é evidente o "crescimento" do Papa Bento XVI dentro do pontificado: um destaque (não uma separação) dos seus posicionamentos passados sobre Assis em 1986, evento-cume do catolicismo pós-conciliar, e uma maior conscientização das dimensões geopolíticas globais da Igreja Católica como intérprete original e ator único do seu gênero no palco do mundo contemporâneo.
Em segundo lugar, a referência ao "espírito de Assis" colocará os seguidores de Dom Lefevbre (há muito tempo em negociações com a Santa Sé para uma "reentrada" na comunhão com Roma) em condições de compreender finalmente a irrevogabilidade de alguns passos dados pela Igreja no último meio séculos, do Concílio em diante. A decisão de Bento XVI de assumir o "espírito de Assis" irá tornar mais difícil para os lefebvrianos o arquivamento desses gestos de João Paulo II como momentos isolados e estranhos à tradição e à recepção teológica do Concílio Vaticano II na Igreja.
Enfim, essa referência de Bento XVI a um dos atos de maior coragem primazial de João Paulo II – o apelo de Assis 1986 – representa um momento importante na redefinição da relação entre os dois pontificados do pós-concílio: uma confirmação da complexa relação que existe na catolicidade entre continuidade e mudança, entre liberdade e reverência à tradição, entre as idiossincrasias teológicas pessoais dos Papas e o poder dos "sinais dos tempos".
A decisão de Bento XVI torna visível a força do pontificado romano como instituição a serviço da Igreja e do mundo contemporâneo: aquelas que aos olhos de muitos católicos e não católicos (e aos olhos de um mundo ocidental que é muito mais desenraizado da tradição do que da religião) são as instituições mais antiquadas e menos compreensíveis revelam, nos momentos de emergência como este, a sua força.
Roma, como centro de unidade do catolicismo mundial, e o pontificado romano, como poder do Papa de se fazer intérprete de modo primazial de um sentimento dos fiéis e do mundo inteiro, encontraram na mensagem do dia 1º de janeiro de 2011 um momento alto, difícil de rebaixar a um momento de rotina dentro de um pontificado original. O gênio do catolicismo como forma particular de cristianismo ainda está vivo e luta junto àqueles que têm no coração a paz entre as religiões como contribuição fundamental para a construção da paz no mundo da "revanche de Deus".