Das teses de Martinho Lutero, uma 'ecclesia semper reformanda': a necessidade do constante diálogo ecumênico

Imagem icônica de Lutero afixando suas 95 teses que questionam a Igreja Católica da época. Imagem: Luteranos.com | Edição: IHU

30 Outubro 2021

 

Uma prática comum entre os movimentos de protesto dos séculos XX e XXI são os cartazes, também conhecidos como “lambe lambes”, colados pelos espaços mais movimentados das cidades. Em poucas palavras, na busca de denúncia ou anúncios, os movimentos saem à surdina para espalhar insatisfação e mobilização contra determinadas. Discutir-se-á a efetividade de tais práticas. Ou considerar o quão mal se faz à ecologia, à higiene e à estética dos espaços urbanos hoje. Mas, há 504 anos, na cidade de Wittenberg, na Alemanha, tal movimento e ato – de protesto – criava o ponto alto de um movimento intelectual, político e eclesiológico de contestação das estruturas sociais, filosóficas e teológicas da sociedade. O então padre agostiniano Martinho Lutero, em 31 de outubro, estabeleceu um marco, quando na porta da igreja-castelo da cidade, pregava suas 95 teses, que, de acordo com o teólogo Paolo Ricca, “abria um diálogo teológico” que se desencadeou em diversas formas e polêmica, mas continha em seu cerne uma crítica ao método e à teologia.

 


Impressão das 95 Teses em uma igreja de Nuremberg, atualmente disponível na Biblioteca Estadual de Berlim (Foto: Wikipédia)

 

A ação de protesto de Lutero pode ter esvaziado naquele momento o ponto central de suas intenções, mas segundo o sociólogo Franco Ferranotti, “seu sucesso reside em seu equívoco”, foram as caricaturas que aderiram e agitaram seus adeptos. Para Ferranoti, em artigo publicado pelo IHU, Lutero, ao questionar uma teologia enclausurada, tem grande importância ao separar a teologia da filosofia: “a crítica de Lutero ao modo de pensar e de estabelecer os problemas por parte da filosofia escolástica (preliminare declaratio terminorum e status quaestionis puramente dedutivos) leva-o a investir a questão do homem na sua historicidade essencial. Abandonam-se as velhas categorias preconcebidas e puramente definitórias com base no princípio de autoridade. Aproxima-se do homem em situação – na sua determinação datada e vivida – e não mais ao homem em geral, como genérica fictio mentis, fantasma conceitual desprovido de consistência”.

Para o teólogo luterano Martin Dreher, não foram as teses pregadas na porta do castelo que causaram a Reforma Protestante, mas são parte de um amplo sentimento da época. Entretanto, há nas teses elementos que também permitem pensar que a proposta centralizada no Evangelho e na Palavra de Deus permite com que a religião institucional continue em processo permanente de Reforma (eccleisia semper reformanda). “Na 62ª de suas 95 teses de 31 de outubro de 1517, Lutero afirma que 'o verdadeiro tesouro da Igreja é o santíssimo Evangelho da glória e da graça de Deus'. Quem quiser argumentar com essa tese e dizer que a Reforma colocou o Evangelho novamente em seu devido lugar só o pode fazer caso entender a Reforma não como um acontecimento encerrado a ser festejado, mas como algo que tem que acontecer sempre. Em razão dos acontecimentos políticos e de seus aspectos culturais, é possível fazer a afirmação de que a Reforma conseguiu seu espaço e seus objetivos”, escreveu Dreher, em artigo publicado pela Revista IHU On-Line.

O também teólogo luterano Walter Altmann acrescenta que a Reforma, no seu contexto mais amplo, teve no seu âmago a “redescoberta do Evangelho, isto é, a noção de que a salvação é concedida gratuitamente por Deus, em Cristo, especificamente no Cristo crucificado, o que deve ser recebido em fé”. Esse movimento tem nas ações de Lutero um movimento de transformação social a partir da imprensa.

 

 

Altmann explica como, para Lutero, a piedade popular e a contestação a uma teologia enclausurada e comercializada tinham relação com o desenvolvimento de uma comunidade com maior liberdade e ao que hoje pode se entender como cidadania. “Para Lutero, a fé pessoal haveria de ser algo de suma importância. Também havia um movimento cultural de 'volta às fontes' da Antiguidade. Lutero haveria de fundamentar a doutrina na Bíblia que ele magistralmente traduziu à língua alemã. Gutenberg havia descoberto a imprensa que foi determinante para a extraordinária difusão não apenas da Bíblia, mas também dos numerosos escritos de Lutero. Numa época em que emergiam unidades políticas territoriais autônomas, potencialmente independentes, ele ancorou a dignidade do ofício político no conceito de sacerdócio geral das pessoas batizadas e ele o definiu como manutenção da paz, estabelecimento da justiça e proteção às pessoas mais fracas. Como Lutero considerava que todas as pessoas devem ter acesso à Bíblia e que o estudo seria importante também para os ofícios seculares, ele foi pioneiro em advogar em favor de um sistema de educação universal, e isso numa época em que a esmagadora maioria da população era analfabeta”, afirma em entrevista concedida à Revista IHU On-Line.

 

 

No entanto, o teólogo Teófanes Egido López, carmelita, pondera que Lutero estava entre “dois mundos”, ora medievo, ora moderno. Para López, pode se afirmar que embora Lutero fosse um homem da ordem feudal, “não se pode negar que se apoiou no pensamento moderno que ele contribuiu para fortalecer a partir de sua influência. Tudo na dimensão religiosa é claro. E o modernismo era o retorno às fontes da fé e da espiritualidade, ou seja, a Escritura. Lutero, além disso, estava bebendo em São Paulo, interpretado e vivido com a mentalidade agostiniana, pois ele sempre foi muito agostiniano, com certo maniqueísmo antipelagiano no fundo. Coincidia com o humanismo em alguns aspectos, como na crítica a tantas formas de religiosidade não isentas de superstição de acordo com o que diziam seus críticos, ou em sua reivindicação da Bíblia não apenas para as elites culturais, mas também para o povo crente e fiel”, afirmou em entrevista à Revista IHU On-Line.

O filósofo italiano Marco Vanini interpreta que Lutero colocou um fim na mística cristã com a obrigatoriedade da Escritura na intermediação da oração. Vanini, que estuda mística há 50 anos, não interpreta que o luteranismo põe o foco sobre o Evangelho, mas é mais influenciado pelas epístolas de Paulo. “A sua ideia de Reforma baseia-se não tanto no Evangelho, mas sim nas epístolas paulinas e, particularmente, na epístola aos Romanos, considerada por ele como 'o evangelho mais puro'. Dos Evangelhos e da Bíblia em geral, Lutero faz um uso absolutamente instrumental, tomando aquilo que lhe serve e deixando de lado ou até mesmo condenando aquilo que não lhe serve ou que até é contra a sua teologia”.

O Instituto Humanitas Unisinos - IHU tem como um dos seus eixos a Teologia Pública, e os debates sobre as diferentes teologias são constantes nos sites e publicações, com diversas opiniões e análises, transdisciplinares e inter-religiosas. Confira no artigo linkado abaixo mais alguns materiais do IHU sobre a Reforma Protestante, e na sequência um quadro interativo com uma gama de publicações: