Publicamos aqui o comentário do monge italiano Enzo Bianchi, fundador da Comunidade de Bose, sobre o Evangelho deste domingo, 9 de janeiro de 2022, solenidade do Batismo do Senhor (Lc 3,15-16.21-22). A tradução é de Moisés Sbardelotto.
É a festa do batismo de Jesus, da sua imersão por João no rio Jordão: o primeiro ato de Jesus como homem maduro, a sua primeira aparição pública. Todos os Evangelhos recordam esse evento, posto no início do ministério de Jesus, e cada um o narra a seu modo: tentemos, portanto, compreender e explicitar as peculiaridades do relato de Lucas.
João Batista havia anunciado a vinda de Alguém mais forte do que ele, que imergiria (ou seja, batizaria) não nas águas do Jordão, mas no Espírito Santo e no fogo. No entanto, esse Alguém que viria, que é discípulo de João e traz o nome ainda não famoso de Jeshu’a, Jesus, também vai se fazer batizar.
Lucas enfatiza que ele faz isso junto com “todo o povo”, expressão enfática que quer acentuar o grande número de judeus reunidos por aquele que “evangelizava” (Lc 3,18), isto é, que anunciava a boa notícia e que devia “preparar ao Senhor um povo bem disposto” (Lc 1,17).
Solidário com aquele povo, homem como todos os outros, misturado na multidão anônima, na fila entre homens e mulheres, sem nenhuma vontade de distinção dos pecadores, Jesus se faz imergir por João: alguém do povo, com o povo, no meio do povo, em que esse termo certamente indica as pessoas comuns, mas também aquele novo povo que Deus está reunindo para fazer dele o seu povo para sempre.
Jesus inicia a sua vida pública assim: não com uma pregação, não com um milagre, não com uma aparição que pudesse surpreender e maravilhar os presentes, mas com um gesto humano de humildade, de submissão a Deus e de total solidariedade com seus irmãos e irmãs pecadores.
Lucas também quer evidenciar o que acontece com Jesus, aquela que se torna a sua experiência personalíssima naquele evento. Ao contrário dos outros Evangelhos, ele revela que Jesus recebe o batismo enquanto está rezando, enquanto reconhece a presença e o senhorio do seu Deus e Pai. Eis a primeira ação de Jesus na sua vida pública: a oração! E, no Evangelho segundo Lucas, a oração também será a última ação de Jesus na cruz, antes de morrer (cf. Lc 23,46).
O que significa rezar, portanto? Poucas coisas: fazer silêncio, abrir espaço dentro de si para acolher o Espírito de Deus e escutar aquela palavra que Deus dirige pessoalmente ao fiel. Isto e somente isto é a oração cristã: não palavras ditas a Deus, nem repetição de fórmulas, nem exercício de afetos, mas silêncio, predisposição de si mesmo para a acolhida da Palavra e do Espírito de Deus.
Acontece com Jesus aquilo que acontece com a primeira comunidade dos discípulos, depois da sua ressurreição, quando ele permanecerá em oração, abrirá espaço para o Espírito e receberá o dom (cf. Atos 1,4; 2,2-12). Por isso, Jesus, segundo Lucas, falando da oração e do seu cumprimento, especifica: “Se vocês, que são maus, sabem dar coisas boas aos filhos, quanto mais o Pai do céu! Ele dará o Espírito Santo àqueles que o pedirem” (Lc 11,13). A oração cristã é a epiclese do Espírito, e o seu cumprimento é o dom do Espírito.
Jesus, portanto, faz-se imergir por João, mas, acima de tudo, reza, prepara todo o seu ser para se tornar morada do Espírito Santo, que somente Jesus “vê descer” do céu sob a forma de uma pomba para habitar nele. É o sinal do Espírito de Deus que pairava sobre as águas no momento da criação (cf. Gn 1,2), o sinal da Shekinah, a Presença do Deus vivo que, do céu, desce sobre a terra. Os céus se abrem para essa descida do Espírito a partir de Deus, e, com o Espírito, eis ressoar a palavra personalíssima dirigida a Jesus: “Tu! Tu és meu filho!”. Esta é a identidade de Jesus: é o Filho de Deus!
Para explicitar essa proclamação, o Evangelho segundo Lucas cita o Salmo 2: “Tu és meu Filho, eu hoje te gerei” (v. 7), de modo que essa voz não é uma revelação para Jesus, que conhecia a sua relação com o Pai (cf. Lc 2,49), mas sim uma entronização messiânica no início da sua missão.
No Evangelho segundo Marcos, a voz que desce do céu (retomada por Mateus e por alguns manuscritos de Lucas) ressoa de modo diferente: “Tu és o meu Filho amado, em ti encontro o meu agrado” (Mc 1,11; Mt 3,17). Além do Salmo 2, ecoa aqui a declaração do Senhor sobre o seu Servo (“Eis o meu servo... nele tenho o meu agrado”: Is 42,1). Sim, Deus se compraz, encontra alegria no seu Servo, assim como a encontra na sua vinda entre os humanos (cf. Lc 2,14). Também na transfiguração essa voz do céu descerá para proclamar Jesus como Filho de Deus, como Servo eleito ao qual se deve escutar, e para confirmá-lo no seu caminho rumo à paixão e à morte (cf. Lc 9,35).
Ninguém escuta aquela voz, ninguém vê o Espírito descendo sobre Jesus, que poderá, portanto, proclamar aquele evento com autoridade: “O Espírito do Senhor está sobre mim; por isso me ungiu e me enviou para levar a boa notícia aos pobres” (Lc 4,18; Is 61,1). O batismo, então, é revelação do chamado dirigido a Jesus, que ele realizará plena e pontualmente como Messias e, portanto, Filho de Deus, como Profeta e, portanto, Servo do Senhor.
“Jesus tinha cerca de 30 anos” (Lc 3,23), anota Lucas logo depois; portanto, ele passou muitos anos de vida oculta. Desde o seu bar mitzwah, quando, aos 12 anos, tornou-se “filho do mandamento” (cf. Lc 2,41-50), até este evento de revelação, Jesus viveu uma existência comum, que permanece obscura para nós. É inútil reconstruir com a fantasia e a imaginação aqueles anos, a fim de deduzir uma “espiritualidade” de Jesus em família, de Jesus operário, de Jesus em Nazaré... Basta-nos saber que ele esperou, que não assumiu papéis nem uma vocação, mas que sempre soube viver o hoje de Deus.
Temos certeza apenas da sua obediência a Deus, e não aos homens e à família (cf. Lc 2,49; At 5,29); da sua disponibilidade de dar lugar na própria vida e no próprio corpo ao Espírito Santo, “o seu companheiro inseparável” (Basílio de Cesareia); do seu exercício na arte da escuta da Palavra de Deus, que ele encontrava na assiduidade das Sagradas Escrituras; do fato de se tornar discípulo, pondo-se no seguimento de João, rabi e profeta; do fato de fazer discernimento da própria vocação e missão.
Isso até cerca dos 30 anos, quando já era um homem maduro e, para o seu tempo, avançado em anos. E, quando o seu mestre João foi preso por Herodes (cf. Lc 3,19-20), eis chegada a sua hora, a hora de fazer ressoar a sua palavra, a hora de proclamar o Evangelho, a hora de percorrer as ruas da Galileia e da Judeia “passando entre os humanos fazendo o bem” (cf. At 10,38) e fazendo o diabo recuar.
Esse caminho vai da imersão nas águas do Jordão até a imersão nas águas da paixão e da morte (cf. Sl 69,2-3). E, na hora da morte, Jesus também será crucificado no meio de dois malfeitores (cf. Lc 22,37; 23,33; Is 53,12), solidário com os pecadores, como havia sido por toda a vida. Ele os preferira aos justos, fazendo-se batizar junto com eles por João; ainda os preferiria aos justos morrendo na cruz entre eles, mas chegando a prometer justamente a um deles: “Hoje estarás comigo no paraíso” (Lc 23,43). E, assim que morreu, ouviu de novo a voz do Pai: “Tu és o meu Filho, eu hoje te gerei”, voz que o chama de volta dos mortos, Espírito Santo que o levanta para a vida eterna.
O Apóstolo Paulo releria essa história de modo sintético no início da Carta aos Romanos: “Cristo Jesus (...) Filho de Deus, nascido da linhagem de Davi segundo a carne, constituído Filho de Deus com poder, segundo o Espírito Santo, por meio da ressurreição dos mortos” (Rm 1,1,3-4).
A festa do batismo de Jesus é a última manifestação-epifania do tempo do Natal. Vindo ao mundo, Jesus se manifestou em Belém aos pastores, aos pobres de Israel; manifestou-se como Rei dos judeus aos sábios vindos do Oriente, aos povos da terra; e, no início do seu ministério público, manifestou-se a todo o Israel como Messias e Filho de Deus.
A partir do próximo domingo, mediante a leitura sequencial do Evangelho segundo Lucas, a Igreja nos pedirá para seguir Jesus rumo à sua Páscoa, “o seu êxodo que deverá se cumprir em Jerusalém” (Lc 9,31).