Drummond e o modernismo mineiro. A incontornável relação entre as elites políticas e os intelectuais modernistas. Entrevista especial com Sergio Miceli

Lira mensageira. Drummond e o grupo modernistamineiro é o mais recente livro de um dos principais pesquisadores da cultura no Brasil

Carlos Drummond de Andrade | Foto: Reprodução - TV Cultura SP

Por: Ricardo Machado | 19 Abril 2022

 

Os cem anos da Semana de Arte Moderna, realizada em fevereiro de 1922, trouxeram novamente à ordem do dia os debates em torno do Modernismo Brasileiro. A efeméride tem enriquecido a fortuna crítica em torno do tema, no qual o professor e pesquisador da Universidade de São Paulo – USP Sergio Miceli participa com a obra Lira mensageira. Drummond e o grupo modernista mineiro (São Paulo: Todavia, 2022). No texto, ele explica a contribuição de Minas Gerais para o movimento nacional. “A importância do modernismo mineiro, em primeiro lugar, foi ter produzido a figura central da poesia no Brasil, o Drummond, mas não só isso”, sublinha.

 

Um dos pontos altos da obra e aspecto interessante para compreender as nuances desse movimento é a diferenciação das condições sociais, políticas e econômicas que fizeram emergir os modernistas de São Paulo e os de Minas Gerais. “Para sintetizar, digamos que a elite política mineira é uma classe dirigente não econômica ancorada no predomínio, na prevalência, de magistrados e homens públicos; enquanto a elite política paulista tem um percentual muito elevando de proprietários privados, de gente que tem uma atividade econômica autônoma”, descreve.

 

Diferentemente de seus parceiros intelectuais do Grupo Estrela, a trajetória de Carlos Drummond de Andrade foi decisivamente impactada pelas alianças com políticos que lhe deram cargos públicos, sem os quais – do ponto de vista de trabalhar e poder escrever – nem mesmo sua poesia teria sido como foi.

 

“O caso do Drummond é mais peculiar e mais interessante, sob um certo ponto de vista, porque ele era o mais destituído de trunfos, não pertencia a uma família politicamente importante”, pontua Miceli. “Ele assistiu a todas as negociações que a elite mineira teve que fazer para sobreviver no novo condomínio e no novo regime que estava se montando pós-República Velha. Isso é uma experiência decisiva para ele”, complementa.

 

Sergio Miceli (Foto: Wikimedia Commons)

Sergio Miceli nasceu no Rio de Janeiro. É professor titular do departamento de sociologia na Universidade de São Paulo - USP. Lecionou na Universidade de Chicago, na Escuela Nacional de Antropología y Historia, na Cidade do México, e na École des Hautes Études en Sciences Sociales, em Paris.

 

Confira a entrevista.

 

IHU – Professor, para contextualizarmos nossa entrevista, gostaria que o senhor começasse falando, em linha gerais, sobre a importância do modernismo mineiro para o modernismo no Brasil...

 

Sergio Miceli – A importância do modernismo mineiro, em primeiro lugar, foi ter produzido a figura central da poesia no Brasil, o Drummond, mas não só isso. O modernismo mineiro tem uma contribuição na área ficcional com o trabalho do Cyro dos Anjos e João Alphonsus. Esses são os nomes principais do grupo de escritores. Os outros são menos conhecidos, como Abgar Renault e Emilio Moura, e tiveram uma fortuna crítica muito menor e com muito menos impacto.

Digamos que o modernismo mineiro tem a ver com o protagonismo desses três autores – Drummond, Cyro dos Anjos e João Alphonsus – e também com o arranjo muito peculiar das circunstâncias que organizaram o itinerário intelectual da trajetória desses escritores jovens, que por meio de uma carreira política viabilizaram uma possibilidade de produção intelectual autônoma.

 

 (Foto: Divulgação)

 

IHU – Como se deu o intercâmbio entre capital político, das classes dirigentes, e capital simbólico dos bacharéis cultos do modernismo mineiro?

 

Sergio Miceli – Eu procuro fazer uma espécie de retrato coletivo do grupo, destacando desse coletivo aqueles jovens que se tornariam escritores profissionais e que encetariam uma carreira política de homens públicos, no plano estadual e, depois, federal.

A análise parte dessa experiência de sociabilidade nos espaços em que se movimentavam os integrantes do Grupo Estrela. Ou seja, os espaços de lazer, os espaços de sociabilidade, a faculdade de direito – o único que não fez direito foi o Drummond e não obstante tinha uma sociabilidade íntima com o grupo.

O que eu tento mostrar na reconstrução empreendida no livro, é que esta sociabilidade entre jovens tem desde a origem um lastro e um encaixe deles na elite política mineira. Todos os passos que eles vão desenvolver, em termos de itinerário intelectual, cultural, político, administrativo tem a ver com esse enlace com os clãs dominantes da elite política mineira.

 

 

IHU – Quais são as características da elite política mineira em comparação com a paulista e como isso impactou, respectivamente, na constituição das elites culturais desses dois estados nas primeiras décadas do século XX?

 

Sergio Miceli – Para sintetizar, digamos que a elite política mineira é uma classe dirigente não econômica ancorada no predomínio, na prevalência de magistrados e homens públicos, enquanto a elite política paulista tem um percentual muito elevando de proprietários privados, de gente que tem uma atividade econômica autônoma. Na política mineira, os fazendeiros, os grandes proprietários, mesmo grandes produtores de café, não tinham o mesmo impacto na composição da elite como em São Paulo.

A elite paulista é privatista, ao passo que a elite mineira é mais voltada para o controle do Estado. No interior do Estado, por meio do Partido Republicano Mineiro – PRM, mas também do acesso ao governo central, uma vez que Minas era o maior eleitorado e de representação parlamentar na época. Já São Paulo tem uma representação partidária mais diferenciada, porque lá não existia um partido único. Desde 1926, com o surgimento do Partido Democrático, há uma cisão na classe dirigente em termos de filiação partidária.

 

 

Essa diferenciação reflete uma especialização crescente e uma divisão do trabalho no interior da classe dirigente paulista, com a emergência, por exemplo, de empresários culturais que têm uma envergadura empresarial, que é o grupo d’O Estado de São Paulo, em torno da família Mesquita. Esse é um exemplo de empresários especializados na imprensa, na produção da Revista do Brasil, no Estadinho, que tinham vários negócios na área cultural e na imprensa da época. Mesmo na área de imprensa não havia um monopólio d’O Estado de São Paulo, havia um jornal do Partido Republicano Paulista e depois, também, o Partido Democrático teve um jornal próprio.

Houve em São Paulo uma situação mais diferenciada em termos de frações especializadas nas classes dirigentes com um papel muito mais protagonista de um mecenato privado, de uma série de fortunas pessoais – Olivia Guedes Penteado, Freitas Vale, Paulo Prado –, investindo na montagem de coleções de arte, investindo na edição de revistas e trabalhando com o Estado por meio da organização de um programa de bolsas de estudos no exterior para a formação de artistas plásticos, por intermédio do Liceu de Artes e Ofícios.

A classe dirigente mineira é uma classe dependente e ancorada nos recursos governamentais. A classe dirigente paulista – que, claro, controlava o governo do Estado e tinha uma representação parlamentar e de interesse no poder federal – possuía uma diferenciação de atividades e de representações muito maior que a elite mineira.

 

 

IHU – O que foi o grupo Escritores do Estrela?

 

Sergio Miceli – Era um grupo de jovens que se reunia neste café, o Café Estrela, mas também cumpriam o itinerário de sociabilidade daqueles jovens que vão herdar as posições políticas, porque pertencem aos clãs políticos do Estado de Minas. A maior parte dos integrantes são jovens pertencentes a famílias muito prestigiosas da elite política mineira. Esse período probatório deles na faculdade, no café, a iniciação literária, frequentando a Livraria Alves, é um período que vai articulando “vocações”, porque não são realmente vocações, mas possibilidade de articulação profissional com os clãs familiares a que pertenciam. O que aparece na fortuna crítica do modernismo mineiro com o Grupo Estrela é mais o momento da mocidade, probatório, de formação na universidade, que tem os primeiros empregos. Muitos deles voltam às cidades de origem para advogar por um ou dois anos antes de retornar à capital, de modo que eles todos têm um padrão de carreira.

O Grupo Estrela, portanto, refere-se ao momento da mocidade, não ao momento, digamos assim, da maturação do projeto, em que uma parte se especializa na atividade política e outra na intelectual. Esses que se especializam na atividade intelectual dependem de posições públicas no serviço público como funcionários para sobreviver.

 

 

IHU – Quais foram as circunstâncias biográficas e sociais que levaram Drummond a ocupar cargos públicos desde sua juventude?

 

Sergio Miceli – É uma elite em que a pessoa só pode funcionar se tem acesso aos escalões superiores do serviço público. Não há nenhuma possibilidade de participar dessa elite se não estiver dentro desses espaços, incluindo escalões administrativos como subsecretários ou secretários, redatores, homens de confiança dos secretários de Estado ou como homens de confiança de representantes da elite mineira central. Não há nenhuma possibilidade de pertencer à elite sem, digamos assim, cumprir o itinerário básico que o Drummond e seus colegas cumpriram.

O caso do Drummond é mais peculiar e mais interessante, sob um certo ponto de vista, porque ele era o mais destituído de trunfos, não pertencia a uma família politicamente importante. O pai dele teve uma projeção municipal em determinado momento, mas nunca pertenceu a um clã político. O pai dele, por exemplo, nunca teve postos prestigiosos na política estadual de Minas. A maioria dos integrantes do Grupo Estrela é parente de famílias prestigiosas ou com um tesouro de influências, nas suas respectivas cidades, sendo parentes de pessoas que ocuparam cargos de relevo na política estadual. Há aí uma diferença importante.

Não obstante, por conta da proteção de alguns do Grupo Estrela que entraram na política, em especial o [Gustavo] Capanema, o Drummond conseguiu acesso aos escalões superiores como homem de confiança. Capanema, que era parente de Francisco Campos, foi viabilizando para Drummond uma sobrevivência na elite política, que facultou tempo e recursos para ele produzir a poesia que ele fez.

 

 

IHU – Aliás, como a “escolha” de Drummond pela poesia teve a ver com o fato de ele não ter cursado Direito, mas Farmácia?

 

Sergio Micelli – Nos anos 1930, quando Drummond estreia, é um momento marcado na literatura brasileira pelo romance social com Érico Verissimo, Graciliano Ramos, José Lins do Rego, Rachel de Queiroz e com o romance introspectivo em Minas, Lúcio Cardoso, Cyro dos Anjos etc. O que quero dizer com isso é que o romance é o gênero dominante, que comercialmente, não somente literariamente e de recepção crítica, faz sucesso. O “normal” – ainda que não haja nada normal nunca – seria que esse grupo que amadureceu uma década após a primeira geração modernista de São Paulo, que praticou a poesia, se dedicasse mais à ficção em prosa que à poesia.

Eu faço uma hipótese de que a orientação de Drumond para a poesia tem algumas razões. Uma delas é o fato de que ele acabou adotando como mentores Mário de Andrade e Manuel Bandeira, que eram dois poetas de grande envergadura, como obra pessoal, mas não só isso: eram dois poetas que tinham um domínio e um manejo notáveis da história literária brasileira.

Bandeira fez a organização de todas as antologias da Poesia Simbolista, da Poesia Parnasiana e do Alphonsus de Guimaraens. O Mário de Andrade era um polímata que se dedicava desde a arte erudita às artes plásticas, transitava em muitos domínios. Portanto, eles tinham um repertório que o Drummond jamais possuiu, mas esses eram os mentores do modelo dele.

Acompanhando a correspondência, especialmente com o Mário de Andrade, vai-se percebendo como são os altos e baixos, os prós e contras do autodidatismo de Drummond. Como ele não teve uma formação literária e uma formação superior humanística — a formação literária, à época, se dava na faculdade de Direito —, ele teve que fazer das tripas coração para virar autodidata e investir no autodidatismo. Todo o conhecimento de história literária dele se dá através das sugestões dos mentores, da leitura da obra dos mentores e das dicas que estes deram para que ele fosse montando seu próprio repertório. Não há nenhuma possibilidade de se tornar um escritor da estatura do Drummond sem controlar o repertório da tradição.

 

 

IHU – Como compreender as relações de Drummond com políticos, inclusive conservadores, em perspectiva com sua obra, marcada por um caráter social?

 

Sergio Miceli – As gerações não têm muito como escolher seus parceiros, porque a socialização das elites brasileiras é o que é — como é mostrado no livro. O Drummond tem dois “roteiros de experiência” que são decisivos para o tino político e de como esse tino político se converte em expressão poética.

O primeiro é a experiência que ele tem como homem de confiança, redator, funcionário público graduado que assistiu a todas as refregas e lutas políticas no interior da política mineira — no momento em que ele transitava do final da mocidade para os primeiros anos como funcionário e como escritor. Então, ele teve essa experiência de assistir a um embate entre as facções que se digladiavam no controle do estado mineiro, do Partido Republicano Mineiro – PRM e do jornal do PRM. Esse é o primeiro elemento de formação política da perspectiva dele.

Nesse primeiro momento, ele viveu a derrota da eleição do Getúlio Vargas, a Revolução de 1930, com o revertério que foi a deposição do governo Washington Luís e a ascensão do Vargas, um governo provisório, a Constituinte de 1934 e o Estado Novo. Logo, ele assistiu a todas as negociações que a elite mineira teve que fazer para sobreviver no novo condomínio e no novo regime que estava se montando pós-República Velha. Isso é uma experiência decisiva para ele.

A outra vivência é a experiência política que derivou das provações, agruras e dificuldades durante o Estado Novo — é claro que o Drummond estava a par das torturas, dos exílios, das prisões e das perseguições, que eram particularmente fortes em estados como Pernambuco, por exemplo. Então, ele assistiu de dentro, como uma figura de estatura dentro do Estado Novo, assim como muitos outros intelectuais que também trabalhavam no Regime.

Juntando essa experiência aos anos de guerra (Segunda Guerra Mundial), se forma outro componente decisivo no contexto em que ele enuncia essa poesia de interesse social, investimento de uma linha realmente interessada e que aparece em O sentimento do mundo e n’A rosa do povo.

 

 

IHU – Em uma carta endereçada a Mário de Andrade, Drummond classificou o presidente Getúlio Vargas - na ocasião, candidato - de “pobríssimo”. Mais tarde ele seria o chefe de Gabinete de Gustavo Capanema. Como compreender as complexidades entre sua visão e o gesto pragmático de assumir o cargo?

 

Sergio Miceli – Essa carta a que você se refere é de um momento em que ele ainda está meio fora do jogo. Então, quando você está fora do jogo, está fora sob todos os pontos de vista. Inclusive, você conhece os personagens mais de ouvir dizer do que por experiência própria ou representações de terceiros. A elite mineira estava muito dividida com as candidaturas. Tanto assim que houve um grande racha, e foi um racha decisivo da elite política mineira, em 1929, de quem ficava com ou contra o Vargas.

A carta a que a pergunta se refere é em um momento, como disse, em que ele estava fora do jogo e, como se pode imaginar, não tinha a consciência crítica de quem interviria na questão política, como alguém que estava enxergando tudo do alto. Claro que essa visão mais ampla não era possível e tudo isso era mais revelador do isolamento dele do que de seus trunfos.

Na medida em que ele vai se enfronhando na luta política no Estado – quando começa a trabalhar com o Capanema na Secretaria de Educação e depois na de Segurança – ele vai se dando conta de quais são os desafios políticos que aquela elite está enfrentando. E, claro, que aí, por mais que ele tenha reservas a esse ou aquele político, vai acabar fazendo o jogo que o núcleo dele, que estava aliado na política mineira, incumbiu ele de fazer. Não tinha saída.

 

 

IHU – Por fim, Drummond e Mário de Andrade nutriram profunda amizade, tanto que o poeta mineiro convenceu o escritor paulista de se mudar para o Rio de Janeiro. Quais são as semelhanças e diferenças entre esses dois ícones do modernismo no Brasil?

 

Sergio Miceli – Eles tiveram que lidar com uma conjuntura de renovação estética e literária que eles compartilharam durante décadas – e essa correspondência é prova disso. Agora, essa correspondência também tem um momento de fricção e de afastamento, que é por ocasião da Revolução de 1932. Mário vai ficar aliado aos paulistas e o Drummond vai estar aliado aos mineiros e ao Governo Vargas.

Essas correspondências praticamente silenciam durante um ano. Esse momento é o de separação, porque são itinerários políticos divergentes. Quando Mário perde o cargo de secretário no Departamento de Cultura em São Paulo e todo o grupo político ao qual ele estava alinhado cai com a ascensão de Vargas, não vai para o Rio só convidado pelo Drummond. Ele vai também convidado pelos escritores que já estavam no ministério e que queriam a ajuda dele, como Rodrigo Mello Franco e outros meninos que estavam lá.

Há diferenças gritantes entre Mário e Carlos, quer dizer, essas diferenças têm a ver com um domínio tão decisivo na vida de todo mundo, que passa pela sexualidade e vai até as orientações e filiações políticas. Foi uma relação muito próxima e decisiva para Drummond, mas também muito tensa para ambos a partir de divergências e orientações políticas conflitantes.

Além disso, como sugiro no livro, eu acho que também Drummond se incomodava um pouco com, digamos assim, o modo de ser, de se exprimir, de se expressar, de se conduzir do Mário. Era um modo muito mais solto, mais independente, menos elite mineira.

 

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