"O cristianismo, como sequela Christi, tem as promessas do futuro. Devemos dizer sem ênfase, mas com confiança, embora concordando que ainda não sabemos sob quais modalidades, que o cristianismo pode existir “de outra maneira”, de acordo com o desejo de uma voz de teólogo francês particularmente perspicaz, a de Ghislain Lafont, quando se expressou recentemente em uma obra testamentária. Esse “de outra maneira” certamente implica mudanças firmes e devastadoras em matéria de antropologia, de eclesiologia ou mesmo de teologia moral", afirma
Anne-Marie Pelletier, teóloga e biblista francesa, professora do Collège des Bernardins e vencedora do Prêmio Ratzinger 2014. Ela foi a primeira mulher a ganhar o Prêmio Ratzinger. Em 2017, ela foi convidada pelo Papa Francisco para compor as meditações da Via Sacra em Roma.
O Papa Francisco nomeou Anne-Marie Pelletier como participante da nova Comissão de Estudo sobre o Diaconato Feminino.
Anne-Marie Pelletier, proferirá a conferência 'A crise do cristianismo hoje. Uma abordagem na perspectiva das mulheres" no XXI Simpósio Internacional A (I) Relevância Pública do Cristianismo num mundo em transição", no dia 13-10-2021.
A tradução é de André Langer.
Começarei por agradecer-lhes calorosamente o convite para aventurar esta manhã uma palavra sobre um assunto tão colossal: explorar os desafios que o cristianismo enfrenta hoje e inventariar os recursos que tem à sua disposição para suportar a provação e, espero, ter a confiança para poder enfrentá-los.
De antemão, gostaria de dizer o lugar a partir do qual falo com vocês. Minha análise será a de uma cristã que fala desde a Europa, mais precisamente da França, país onde a palavra “crise” ressoa nos dias de hoje com um tom particularmente dramático, já que neste dia 05 de outubro foi divulgado o relatório da Ciase – Comissão Independente sobre Abusos Sexuais na Igreja – que, ao longo de praticamente três anos, ouviu vítimas de abusos e crimes perpetrados contra menores desde 1950. O balanço é assustador, o terremoto é considerável para a Igreja da França, e evidente para a Igreja Católica.
Também falarei como mulher, uma vez que esta referência foi incluída no convite. Na verdade, estou convencida de que devemos aspirar a uma palavra dual, que combine as vozes de mulheres e homens, sem colocá-las em competição. Mas também estou convencida de que existe um problema específico e grave das mulheres no catolicismo.
Este problema é parte da crise: é uma das fontes dos escândalos expostos e, portanto, da perda de credibilidade da palavra cristã no mundo atual. Isso também significa, paralelamente, que uma abordagem resoluta desta questão das mulheres pode muito bem fazer parte da resposta à crise.
Não esqueçamos que esta é a experiência das sociedades humanas: existe uma forte correlação entre a situação das mulheres numa sociedade e o estado de saúde dessa sociedade. Onde quer que os direitos das mulheres sejam reconhecidos e respeitados, onde quer que partilhem as responsabilidades exercidas pelos homens, é todo o corpo social que se encontra envolvido numa dinâmica de progresso. Isso, evidentemente, deve valer para a Igreja.
Finalmente, acrescento que as Escrituras apoiarão constantemente o meu argumento. “Alma da teologia”, como nos lembra o Concílio, são também da antropologia. É a partir delas, em ressonância com a nossa presente problemática, que é possível discernir os caminhos de um futuro do cristianismo.
Minha exposição consistirá em três tempos.
O primeiro questionará a realidade da crise, destacando seletivamente algumas de suas dimensões.
O segundo buscará jogar luzes sobre as fontes dessa crise, pois identificar as raízes de um problema é uma forma de começar a resolvê-lo.
Por fim, defenderei uma pertinência atual do cristianismo, vinculada a recursos que acredito serem de plena atualidade. Esses recursos autorizam a considerar a crise como krisis, uma oportunidade de discernimento crítico, que abre para uma lucidez portadora de uma promessa e de um futuro.
Este diagnóstico pode ser formulado com números e estatísticas. Num país como a França, essas estatísticas demonstram a ruptura na cadeia de transmissão da fé e, correlativamente, uma verdadeira hemorragia, que esvazia internamente a Igreja Católica. Assim, o colapso da prática dominical não parou de se intensificar, os batizados estão em queda livre, os seminários diocesanos estão fechando, as ordenações sacerdotais são cada vez mais escassas.
Em todos os lugares, observa-se um envelhecimento espetacular dos católicos praticantes, do clero, bem como das comunidades monásticas, cujos noviciados estão desesperadamente vazios, ou mesmo das ordens religiosas. A pandemia evidentemente acentuou essas evoluções, e mais ainda, provavelmente, o escândalo dos abusos e crimes sexuais, que leva a um processo vertiginoso de desfiliação (diz-se ser “rebatizado”) em algumas antigas terras cristãs. As mulheres são as primeiras a serem afetadas por este movimento de afastamento da instituição eclesial.
Apesar dos discursos que celebram as mulheres, multiplicados pelo magistério, segundo o modelo da Mulieris Dignitatem, muitas se afastaram, desesperadas por verem a instituição trancafiá-las em estereótipos irremediavelmente masculinos, persistir numa lógica de controle do seu corpo e mantê-las ainda e sempre sob a autoridade sacerdotal, sem vontade de reconhecê-las e ouvi-las, obcecada pela preocupação de mantê-las afastadas do serviço do altar e da administração dos sacramentos. Na medida em que as mulheres estavam especialmente no princípio da transmissão, é concebível que sua deserção tenha efeitos decisivos.
Na verdade, a cultura cristã tornou-se para muitos, na sociedade em que vivo, uma memória muito incerta, algo exótico ou uma simples opção no grande mercado das crenças. O fosso não parou de aumentar entre os progressos sociais e o discurso antropológico e moral do magistério. Se a análise ainda evocava, há alguns anos, um cristianismo que se tornava minoritário, depois marginal, devemos falar hoje de sociedade descristianizada, “a-cristã”. Encontramo-nos em meio a uma impressionante “exculturação” (Danièle Hervieu-Léger), que leva à ignorância e, finalmente, à indiferença. Como por um movimento irresistível, a herança cristã está se evaporando. E é obviamente bastante dramático que a Igreja seja novamente notícia por conta justamente dos abusos e dos crimes de pedofilia cometidos dentro dela, nos últimos anos. Esta visibilidade é bastante calamitosa, e podemos pensar que tal notícia representa um golpe final na relação de muitos católicos com a Igreja.
Mas gostaria de acrescentar uma outra visibilidade problemática do cristianismo, que me parece ser uma dimensão significativa da crise atual. Quero falar sobre a forma como ela é solicitada e instrumentalizada em um número crescente de discursos políticos que se afirmam ser “a defesa dos valores cristãos”, que ressoam ruidosamente nos noticiários do mundo, ainda que emanem de personalidades cujo pensamento e ação contradizem frontalmente o Evangelho. Deixo que cada um e uma mencione, em particular, os nomes dos políticos e movimentos de extrema-direita envolvidos.
Às vozes dos populismos, devemos associar aquelas vozes de pensadores às vezes violentamente anticristãos – como este autor francês de um Tratado de Ateologia, grande sucesso de livraria – que se propuseram a brandir a bandeira dos “valores cristãos”, que declaram essenciais para a sobrevivência da identidade nacional. A manipulação fraudulenta consiste em se apropriar dos símbolos cristãos para transformá-los em marcadores culturais-identitários convocados para apoiar políticas iníquas, pelo menos em contradição com o Evangelho. Nas últimas semanas, durante a sua viagem à Hungria e à Eslováquia, o Papa Francisco advertiu que há incoerência e impostura neste posicionamento.
O filósofo Emmanuel Lévinas alertou neste sentido: “O religioso que se perverte é pior do que o religioso que desaparece”. Este é, de fato, um pensamento familiar a toda a tradição bíblica. Desde o início das Escrituras, a mentira espiritual é exposta como fonte do mal. Desde o Gênesis, a manipulação desastrosa da Palavra de Deus é tematizada através da figura da serpente, uma hermeneuta mentirosa da consigna divina dirigida a Adão. E a palavra dos profetas de Israel volta incansavelmente a este tema (Is 5,20; 28,15). A ignorância da verdade que ressoa no Evangelho de João – “o diabo... é mentiroso e pai da mentira” (Jo 8,44) – pode muito bem ter relação com a atual crise do cristianismo. Quero dizer que a visibilidade manipulada e perversa do cristianismo pode muito bem ser tão preocupante e mortífera quanto seu desaparecimento em sociedades de tradição cristã.
A primeira margeia o registro do julgamento – um julgamento aliás plural, com uma conotação fortemente dramática. A segunda invoca a observação de um tempo novo no qual o cristianismo deve aprender a viver.
No primeiro caso, o processo se aplica, primeiramente, ao mundo contemporâneo, fruto de um lento deslizamento – desde a época clássica, e particularmente na época do Iluminismo – numa descristianização que agora está chegando ao seu ponto de não retorno com a secularização de nossas sociedades. Essa secularização é descrita como fundamentalmente antinômica ao cristianismo, na medida em que se baseia na rejeição de toda heteronomia, que consagra o homem na posição de soberania sobre a natureza e de um domínio sempre crescente, o que o torna árbitro da vida e, mesmo agora, da identidade dos sexos.
Este mundo secularizado, que não está apenas em ruptura com o cristianismo, mas que perdeu até mesmo a sua memória, se tornaria até mesmo seu inimigo, a menos que os cristãos se adaptem a ele alienando sua identidade. Assim, a crise atual é evocada como o efeito de uma série de abandonos, pelos quais a Igreja teria se esvaziado e assinado seu fim. Desta forma, na França, o historiador Guillaume Cuchet culpa o abandono da cultura da prática obrigatória, a crise do sacramento da penitência ou mesmo a crise da pregação dos fins últimos, como tantos motivos que explicam “Como nosso mundo deixou de ser cristão?”, segundo o título de um livro de 2018, com o subtítulo: “Anatomia de um colapso” que é completado em 2021 com “O catolicismo ainda tem futuro na França?”. Entre os fatores desestabilizadores, vemos ocasionalmente mencionadas as transformações que afetam há várias décadas a condição das mulheres em nossas sociedades. O fato de que o estatuto das mulheres pudesse mudar representaria uma ameaça ao cristianismo. Uma declaração que não deixa de ser escandalosa, sugerindo que existiria uma aderência de princípio ao cristianismo com a inferiorização das mulheres que dominou amplamente sua tradição até agora.
No princípio desta problemática polêmica, que amplia cada vez mais o fosso entre as sociedades e o cristianismo, surge, pois, a convicção de que é o mundo circundante que está em crise, afetado pelo que a Igreja muitas vezes denuncia como “cultura de morte”. Com a conclusão de que o cristianismo está condenado a existir como contracultura. É evidente que este discurso é fortemente abalado hoje, quando uma série de sucessivas revelações nos obriga a reconhecer que esta “cultura de morte” é também uma realidade dentro da Igreja.
Durante anos, os abusos de poder destroçaram pessoas, onde mulheres foram abusadas por predadores que escondiam seus crimes sob extravagâncias pseudoespirituais, onde a pedofilia destruiu vidas para sempre. Isso ocorreu até 1998 na Irlanda das Magdalene laundries, essas “casas para mães e bebês” administradas por congregações católicas, que eram lugares de infortúnio para as crianças e suas mães – “filhas-mães” que se pretendia arrancar da prostituição. Essa “cultura de morte” reinou de muitas outras maneiras nas sociedades cristãs.
A crise é, portanto, também, e pode ser principalmente, uma realidade interna. Este é o fato óbvio que não pode mais ser contornado hoje, em um momento em que estrondosos colapsos afetam a instituição. Para o leitor das Escrituras, eles não deixam de evocar o juízo que Deus pronuncia sobre a iniquidade. Repetição justa e necessária daquilo que os cristãos vivem como crise na atualidade. Nesse sentido, é obviamente essencial não se esquivar da provação e concordar com uma posição resolutamente crítica.
No entanto, isso não deve levar a negligenciar outra forma de interpretar a crise. Ouço a questão que consiste em uma constatação simples e essencial: o mundo no qual o cristianismo existiu – social e culturalmente hegemônico –, o mundo cujas mentalidades e práticas ele informava, simplesmente não existe mais. Este mundo foi varrido pela grande reviravolta tecnológica, portanto também mental e antropológica, que, durante várias décadas, atingiu o planeta. Assim desenraizado de seus fundamentos culturais tradicionais, o cristianismo hoje se encontra desestabilizado, num desconforto extremo, o que o faz temer por sua sobrevivência. A menos que comece a perceber que a provação desta conjuntura pode lhe dar a oportunidade de um renascimento.
Esta é a convicção defendida recentemente pelo cardeal Josef de Kesel (1), arcebispo de Malinas-Bruxelas, em um livrinho muito sugestivo no qual nos convida a reconhecer que é antes de mais nada a mudança radical que está ocorrendo em nossas sociedades que modifica a situação do cristianismo. E isso de uma forma que não é necessariamente lamentável. Doravante, escreveu o cardeal, é possível compreendermos que “o cristianismo não pressupõe que o mundo em que vive também seja cristão” (p. 22). Devemos, portanto, sem medo, consentir que a cultura moderna secularizada seja a situação normal na qual o cristianismo deve cumprir sua missão hoje (p. 93). Pondo de lado as questões da reconquista ou da recristianização, lembrando que a coincidência entre a Igreja e o mundo não é uma realidade histórica, mas escatológica (p. 103), o cardeal Kesel nos convida a pensar sobre a existência da Igreja hoje segundo o modelo bíblico da eleição. Assim como aquele “pequeno rebanho”, de que fala o Evangelho de Lucas (Lc 12,32), chamado – como Israel – a viver entre as nações, como sacramento de Cristo. Ao fazer isso, encontramos também nós algo do sabor da primeira Igreja, nesta novidade do Evangelho em que teve de se inventar e em que nós mesmos hoje devemos nos reinventar.
Dietrich Bonhoeffer, já nos anos quarenta do século passado, antecipava essas visões com espantosa perspicácia, a partir da experiência da descristianização que fez durante os últimos dias de sua detenção na prisão de Tegel. A constatação se impôs a ele: as fórmulas tradicionais da fé haviam deixado de falar por si mesmas, não ressoavam mais entre os seus companheiros de prisão. A evidência o impressionou: o tempo da religião tinha se cumprido. “Estamos entrando em uma era totalmente não religiosa”, escreveu ele em uma carta de agosto de 1944 a Eberhard Bethge.
Em semelhante mundo arreligioso, que não deixa de ser o “mundo amado por Deus”, enfatizou Bonhoeffer, o cristianismo como religião só poderia ser apagado. Descobriu-se então a urgência – mas também a feliz possibilidade – de inventar novos caminhos para um “cristianismo não religioso” que testemunhasse o Evangelho de outra maneira que no passado. As cartas que desenvolvem esta reflexão não falam de crise, dramatizando a ideia de um colapso. Antes, permitem-nos perceber a graça de um momento, de um kairós, onde se abre a possibilidade de redescobrir Cristo e a experiência da transcendência para além das expressões teológicas tradicionais desgastadas. “O ‘ser para os outros’ de Jesus, eis a experiência da transcendência”, escreveu Bonhoeffer na época. E acrescenta: “Crer é participar deste ser de Jesus”. De agora em diante, também a figura da Igreja deve ser reconfigurada, partindo da convicção de que “a Igreja só é Igreja quando é para os outros”, participando “das tarefas profanas da vida da comunidade humana, não a dominando, mas ajudando-a e servindo-a”.
Uma vez que o que chamamos de “crise” é reconhecido como krisis e kairos, vinculados a uma mutação de todo o nosso mundo, devemos ser capazes de imaginar uma nova forma de aliança entre o Evangelho e aqueles a quem se dirige, a partir de novas modalidades de contato e de troca, onde a herança cristã poderá continuar a frutificar.
Com base nessa garantia, gostaria de fazer menção a duas contribuições possíveis do cristianismo para a “saúde” de nossas culturas. Uma diz respeito à função crítica inerente à tradição bíblica; a outra diz respeito ao modo como o cristianismo ensina a colocar como princípio do universal da comunidade humana – humana communitas, diz o Papa Francisco – o consentimento à diferença.
Começo pela função crítica. Na verdade, defendo que um recurso do cristianismo de particular relevância para o tempo presente consiste na energia crítica que perpassa suas Escrituras e que permeia a revelação. A Bíblia é uma mensagem de esperança, a começar por ser um excepcional analisador crítico. Deste modo, já está fazendo um trabalho libertador. É notável, de fato, que a revelação inclua um trabalho de verdade, onde a Palavra de Deus age como aquela espada de dois gumes de que fala a Carta aos Hebreus, que “penetra até dividir alma e espírito, articulações e medula” (Hb 4,12).
Sabemos que ao longo de todo o drama bíblico o desdobramento do plano de salvação de Deus está associado a um desvelamento das perambulações e impasses da história humana, da exploração dos recônditos ocultos da psique, onde o homem se esconde de si mesmo e pretende fugir de Deus. Nesse sentido, a revelação recai duplamente sobre Deus e sobre o homem. Em ambos os casos, traz uma lucidez inacessível ao homem por seus próprios meios. E esta é uma atualidade de capital importância nas culturas contemporâneas, que têm uma inegável capacidade de cegueira quando se trata de identificar os artifícios do desejo, os reais motivos das pretensas generosidades e, claro, as armadilhas escondidas por nossos novos conhecimentos e nossos novos poderes.
Desde o seu início, o livro bíblico preocupou-se em sondar o coração humano, manifestando-o a si mesmo sob uma luz espectral. Com um acento estranhamente contemporâneo, ressoa rapidamente a falaciosa promessa da serpente, “sereis como deuses”, esquecendo-se de que, pela criação, o homem já é “imagem de Deus”. E a transgressão de Gênesis 3 retorna, em escala coletiva, com o relato de Babel, que mobiliza um imaginário surpreendentemente atual. O resto da história, a dos patriarcas, depois a da realeza, nunca cessará de subverter as representações que o homem se faz do sucesso, do poder e dos apoios que pretende dar-se com a posse de terras ou com a obtenção de descendentes. Aí as hierarquias sociais serão constantemente abaladas por escolhas divinas que as ignoram, desconsiderando sistematicamente, por exemplo, os direitos de primogenitura.
Da mesma forma, o livro do Eclesiastes desqualifica sistematicamente todas as seguranças que a sabedoria humana dá a si mesma. De uma ponta a outra do corpus bíblico, a questão da idolatria volta com uma inquietante insistência, até este ponto extremo da revelação evangélica: então, diante de Cristo em sua Paixão, Deus se faz reconhecer para além de qualquer previsibilidade (“o que os olhos não viram, o que os ouvidos não ouviram...”) e a verdade do homem é exposta no paradoxal “Eis o homem”, declaração feita a propósito do homem das dores que era Jesus.
É notável que este julgamento anti-idolátrico que a Bíblia instrui tenha como ponto de aplicação não apenas as nações pagãs, mas o próprio Israel, em toda a narrativa do êxodo, como em toda a pregação dos profetas. Sinal de que toda a condição humana é afetada pela pulsão idolátrica. Sinal de que a humanidade se sente sempre tentada a mentir, o que a faz adorar a obra de suas mãos e a projeção de seus desejos.
Daí a eminente e contínua atualidade das Escrituras, mesmo em meio a um mundo que deixou de ser cristão, mas que mesmo assim permanece concernido pelas ilusões da vontade de poder, lutando com este Deus que descartou, mas que não obstante permanece presente como o Grande rival. Daí a salubridade desta parte inalienável da herança cristã: as Escrituras capazes de revelar as errâncias que assombram, hoje como ontem, a vida das pessoas e dos povos. Isso não significa, é claro, que os cristãos devam brandir suas Escrituras como procuradores de outros, em uma postura que é a tentação de uma contracultura.
A primeira necessidade é que eles próprios se submetam ao teste crítico da Palavra que eles reivindicam. E Deus sabe se a conjuntura eclesial exige que eles se coloquem hoje sem se esquivar do julgamento de Deus que deve produzir a verdade na Igreja. Este trabalho crítico interno é a condição para que a energia crítica da revelação bíblica seja capaz de alcançar e operar, de fora, as culturas modernas e pós-modernas, que carecem gravemente de heteronomia e correm o risco de perder-se nas lógicas da cegueira – a Bíblia fala de endurecimento –, o que poderia ser fatal para o nosso mundo atual.
Por fim, acrescentarei outra singularidade do cristianismo, que assume particular significado no mundo contemporâneo. Ela tem a ver com o fato de que a tradição cristã – ao prolongar a tradição bíblica – sugere e promove um universal que faz do encontro com o outro seu princípio constitutivo, o que tem como mola propulsora a aquiescência à alteridade.
Eu me explico. Sabemos que a última mensagem do Papa Francisco aos cristãos e, além disso, à humanidade deste tempo, é um apelo universal à fraternidade, Fratelli tutti. Ao fazê-lo, ele traz o cristianismo de volta ao seu centro, se quisermos ouvir o ensinamento da 1ª Carta de São João, que relembra o quanto “amar a Deus” e “amar o irmão” estão necessariamente implicados, de sorte que um não pode ser feito sem o outro. Em outras palavras, em registro cristão, a fraternidade é uma realidade de conteúdo místico. Isso não a impede de estar em consonância com uma aspiração muito sensível a todos os humanos. Os povos sonham com a harmonia e a fraternidade. Desde o final do século XVIII, ela está vinculada à universalidade dos Direitos Humanos.
No entanto, o Papa Francisco observou na Carta Humana Communitas, mesmo antes da Fratelli Tutti, que esta continua a ser “a promessa não cumprida” da nossa modernidade. Como se por efeito de uma fatalidade perniciosa, o mundo globalizado fosse mais do que nunca um mundo fraturado, que multiplica as fronteiras, ergue muros, faz para si um espantalho do outro, que deve ser reprimido, assimilado ou destruído. Os nacionalismos são exacerbados a ponto de reativar os padrões dos totalitarismos do século XX. A obsessão pelo mesmo tende a regular os reflexos individuais e as políticas dos Estados. A autopreservação a todo custo torna-se a bandeira dos partidos políticos de sucesso. Ao mesmo tempo, nas sociedades mais prósperas, o individualismo regula cada vez mais as aspirações e as reivindicações, estabelece a medida do bom e do mau, para além de qualquer outra consideração ética. É por isso que a crise é um conceito que também se aplica à vida das sociedades secularizadas.
Ora, é precisamente neste ponto que uma especificidade preciosa e salvadora do discurso cristão pode se manifestar. Ela pode ser formulada com as palavras de Paul Beauchamp – exegeta e grande voz do mundo jesuíta – afirmando que, passo a citá-lo, “o verdadeiro universal realiza-se através do encontro, e não da semelhança”. Esta é uma verdade, de fato, que é assumida e ensinada em toda a tradição bíblica. Desde o início da revelação, a diferença – que abre à relação – está associada à criação e à vida. Sendo condição do encontro, a diferença é ao mesmo tempo o lugar dos maiores desafios enfrentados pela condição humana. Lembramos que o drama teológico da eleição, que estrutura a história da revelação, está diretamente ligado ao problema do fracasso da relação tematizado pelos onze primeiros capítulos do Gênesis. Se Abraão é eleito, singularizado, é para que seja possível, a longo prazo, romper o impasse da hostilidade entre os homens e Deus, dos homens entre si. Nesse sentido, Abraão é “eleito para todos” (Paul Beauchamp), para que um dia as “famílias da terra” sejam abençoadas com a bênção que ele recebeu e que se reconheçam mutuamente.
A partir disso, a história bíblica se desdobra como uma longa série de negociações do encontro com o outro. Encontro muitas vezes ameaçador, como atestam as tribulações políticas de Israel. Possivelmente, também, próximo, útil ou edificante, em uma série de encontros com estranhos ou estrangeiros, cuja narrativa valoriza a história como marcos para o cumprimento da promessa. O relato evangélico, por sua vez, é perpassado pela questão da inclusão do outro na salvação trazida por Cristo. Muito diferente, porque não se trata de escolher o próximo, mas de fazer-se o próximo do outro. No entre si de Israel os praticantes, os coletores de impostos, os samaritanos e até mesmo os pagãos fazem sua irrupção. Assim se verifica esta outra proposição de Paul Beauchamp: “O amor divino realiza-se naquilo que acontece entre os homens em relação à sua diferença”. E o Papa Francisco prega pelo exemplo, quando traz em seu avião, ao retornar do campo de refugiados da ilha de Lesbos, três famílias muçulmanas, correndo o risco de ouvir a seguinte objeção: por que não escolheu famílias cristãs? Ou ainda quando assinou, em Abu Dhabi em 2019, o “Documento sobre a Fraternidade Humana em prol da Paz Mundial e da Convivência Comum”, um texto escrito a quatro mãos com o imã de Al Azhar, Al-Tayeb. Esta versão da fraternidade, sem condições nem exclusividades, pode muito bem ser uma contribuição específica do cristianismo para a vida do mundo contemporâneo. Ela faz ressoar a radicalidade do Evangelho, que é a condição sine qua non – Jesus previne a respeito no Sermão da Montanha – do Decálogo, que marca os novos tempos.
O que não nos deve impedir de reconhecer que homens e mulheres, ignorantes ou afastados de Cristo, sejam hoje testemunhas desta fraternidade, quando acolhem o estrangeiro, visitam o prisioneiro, alimentam o faminto, cuidam de múltiplas maneiras da carne do outro no pedido de ajuda. A cena do juízo final em Mateus 25 nos ensina a reconhecê-los como aqueles a quem Jesus interpela, chamando-os de “benditos de meu Pai”, que ele acolherá nas moradas celestiais. O testemunho dado pelos cristãos desta fraternidade do exterior pode muito bem fazer parte da sua missão dentro e a serviço de um mundo muitas vezes tomado pelo ceticismo, pelo desânimo e até pelo niilismo. À chantagem do mal, um discípulo do Ressuscitado deve ser capaz de opor a força maior de uma bondade que é o resplendor da imagem de Deus na humanidade, este selo divino presente em todo ser humano, quaisquer que sejam as formas como ele se comunica com Cristo.
Se é verdade que o teste da alteridade deve ser apoiado pela fraternidade genuína, se é verdade que a diferença deve ser reconhecida como energia da vida, é impossível não enfrentar a questão da diferença dos sexos. No entanto, ela enfrenta uma questão que permanece dramaticamente insolúvel dentro do catolicismo. Sabemos muito bem como é difícil administrar adequadamente a relação entre homens e mulheres. Assim como sabemos o quanto uma forma muito deficiente de encarar a sexualidade – desde os primeiros séculos do cristianismo – causou estragos precipitando a crise atual. A dominação masculina na Igreja Católica é claramente um problema de justiça. Mas, como realidade estrutural da instituição, também tem a ver com os escândalos que chegam aos noticiários. A afirmação paulina de Gálatas 3,28 que proclama que, em Cristo, pela graça do batismo, “já não há mais homens e mulheres” permanece sempre programática. Porque, se essas palavras não significam o desaparecimento da diferença entre o homem e a mulher, anunciam, por outro lado, a saída da confusão que o pecado introduz nessa diferença. Portanto, elas significam, acima de tudo, a novidade do Evangelho. Não enfrentar esta verdade é hoje, mais do que nunca, um fator de escândalo e de crise nas sociedades atentas à relação entre os sexos. Por conseguinte, a credibilidade do discurso cristão está diretamente vinculada a uma transformação resoluta da relação da Igreja com o feminino.
O caminho de reflexão que lhes propus sugeriu, espero, que existe uma atualidade continuada do cristianismo para o mundo atual. A novidade evangélica permanece intacta. É preciso inclusive dizer que esta novidade aguarda a sua recepção, tanto é verdade que, no fundo, nós ainda ouvimos muito pouco o Evangelho com sua potência crítica, sua força libertadora e recuperadora. Nesse sentido, devemos ousar acreditar e dizer que o cristianismo, como sequela Christi, tem as promessas do futuro. Devemos dizer sem ênfase, mas com confiança, embora concordando que ainda não sabemos sob quais modalidades, que o cristianismo pode existir “de outra maneira”, de acordo com o desejo de uma voz de teólogo francês particularmente perspicaz, a de Ghislain Lafont, quando se expressou recentemente em uma obra testamentária. Esse “de outra maneira” certamente implica mudanças firmes e profundas em matéria de antropologia, de eclesiologia ou mesmo de teologia moral. Oxalá, possamos consentir com isso! Isso seria fazer da “crise” a abertura para um novo tempo de acolhimento do Evangelho na história do cristianismo.
1.- Cardeal Josef de Kesel. Foi et religion dans une société moderne. Paris: Salvator, 2021.