08 Outubro 2016
"A Trindade evoca um Deus cujo ser é caracterizado por um movimento eterno em direção a nós em um amor redentor. No entanto, LaCugna também insiste que a Trindade nomeia o nosso movimento em direção a Deus", escreve Richard Gaillardetz, professor de teologia sistemática católica na Boston College, em artigo publicado por National Catholic Reporter, 03-10-2016. A tradução é de Isaque Gomes Correa.
Eis o artigo.
Foi a um ministro leigo a quem primeiro recorri para buscar um doutorado em teologia. Eu já havia trabalho na igreja como assessor pastoral em diversos ministérios. As oportunidades de lecionar e escrever que estas experiências me proporcionaram são o que me conduziu a dar sequência aos estudos doutorais na Universidade de Notre Dame.
Na época, eu estava interessado em explorar a interseção entre teologia moral e eclesiologia, e aguardei com expectativa a oportunidade de estudar com o padre jesuíta Richard McCormick, o padre Richard McBrien e o padre dominicano Thomas O’Meara. Foi somente depois de chegar na Notre Dame que fui apresentado a uma jovem estrela deste corpo docente, Catherine Mowry LaCugna.
Logo após a minha chegada em South Bend, no estado de Indiana, o meu orientador acadêmico sugeriu que eu me inscrevesse no seminário doutoral de LaCugna sobre a Trindade. Fiz a inscrição com certa relutância. LaCugna era brilhante e essa experiência poderia ser um tanto intimidadora. Além disso, eu tinha um interesse muito raso em teologia trinitária. Eu associava reflexões sobre a Trindade com um modo mais abstrato, metafísico de reflexão teológica, uma maneira bastante distanciada de meus interesses em teologia moral e eclesiologia.
Felizmente, fiz o curso e um mundo emocionante de insights teológicos se abriram diante de mim. Durante o semestre, LaCugna ensaiou os principais temas que apareceriam em sua obra mais importante – “God for Us” [Deus para nós, em tradução literal] – publicada em 1991. O livro estabeleceu a autora como uma figura importante na teologia católica, mas o seu grande compromisso seria apenas parcialmente realizado, na medida em que iria sucumbir ao câncer em 1997 aos 44 anos.
O seu livro, que li imediatamente após ser publicado, ampliava os temas que tanto tinham me cativado naquele seminário. O meu envolvimento com a sua obra instigou nada menos do que uma conversão intelectual, na medida em que descobria a doutrina mais “prática” da religião cristã.
Como tantos cristãos, há tempos eu considerava a Trindade como uma das mais arcanas das doutrinas da Igreja, um problema aritmético insolúvel. (Como pode 3=1?). Conforme Karl Rahner escreveu em seu livro “The Trinity”:
“Os cristãos, apesar da sua profissão de fé ortodoxa na Trindade, são praticamente ‘monoteístas’ no concreto da sua vida religiosa. Poderíamos arriscar a afirmação de que, se o dogma trinitário tivesse de ser eliminado como falso, a maior parte da literatura religiosa poderia, neste processo, permanecer quase inalterada”.
Num nível mais básico, quando a Trindade dava forma à imaginação religiosa popular, ela funcionava em um nível mais simplista, sugerindo “dois homens e um passado” no céu.
Em círculos mais acadêmicos, a marginalização da doutrina da Trindade era menos óbvia; todavia, o poder da doutrina por vezes ficava obscurecido por uma tradição neoescolástica árida que operava por meio de uma névoa abstrata de noções, procissões, missões e relações trinitárias.
A obra de LaCugna foi de encontro a ambas as tendências enganadoras do catecismo popular (por exemplo, usando o trevo ou os três estados da água para explicar a doutrina) e do esoterismo intelectual da tradição neoescolástica.
Para LaCugna, a Trindade nomeia como Deus é para nós. Ela nos recorda que, enquanto vivenciamos os relacionamentos como algo que ou estamos entrando ou estamos nos retirando, Deus não entra em relações. Com efeito, Deus não tem absolutamente relações; Deus é relacionamento perfeito. “Deus é essencialmente relacional”, escreve a autora.
Mais do que isso, se Deus é relacionamento perfeito, e nós somos criados à sua imagem, então a doutrina da Trindade está preocupada com a nossa vida também. Somos convidados pela graça divina a entrar neste modo de relação amorosa que define o próprio ser de Deus.
A primeira parte de sua obra magisterial representava uma rica exploração da tradição cristã – oriente e ocidente –, posto que demonstrou como, ao longo dos séculos, a Trindade recuou de sua centralidade inicial para as margens teológicas da tradição cristã. Foi a experiência cristã inicial da ação salvadora de Deus via Cristo e no Espírito, não via reflexão abstrata, que deu existência à doutrina trinitária, insiste ela.
A Trindade evoca um Deus cujo ser é caracterizado por um movimento eterno em direção a nós em um amor redentor. No entanto, LaCugna também insiste que a Trindade nomeia o nosso movimento em direção a Deus.
Noutras palavras, a Trindade tinha tanto a ver com doxologia (o louvor a Deus) quanto o tinha com a soteriologia (salvação). É o Espírito Santo em ação em nossos corações que nos leva a orar e adorar enquanto nos unimos com Cristo no ofertar louvor a Deus.
A dimensão doxológica da Trindade não se limita ao culto formal, público. A liturgia é uma prática ritual de um modo de vida doxológico. Damos glória (doxa) a Deus vivendo a relação certa com Deus e com as criaturas divinas. O louvor é o que nos permite superar a nós mesmos, a entrar na lógica do “transbordar-se”: aquele movimento dinâmico em direção a Deus e aos outros caracterizado por um tipo de autoesquecimento. Esse viver doxológico não nos afasta das obrigações para com os demais; uma vida de justiça e solidariedade funda-se na nossa comunhão com o Deus trino.
Dentro desse horizonte teológico, o pecado revela-se como uma perversão da relação correta ou, como provocativamente coloca LaCugna, “o pecado (...) é a ausência de louvor”.
Finalmente, o livro de LaCugna me ajudou a pensar sobre o meu próprio campo de estudo, a eclesiologia, com um olhar renovado. Ela escreve:
“Assim como a doutrina da Trindade não é um ensinamento abstrato sobre Deus à parte de nós, mas um ensinamento sobre a vida de Deus conosco e com a nossa vida com os demais, a eclesiologia não é o estudo de uma Igreja abstrata, mas um estudo do encontro real de pessoas em uma fé comum e em uma missão comum”.
O batismo é a iniciação à vida trina de Deus, “que é indispensável da vida de Deus com cada criatura ao longo do tempo – passado, presente e futuro”. A participação nessa vida trina é mediada através da vida da Igreja.
A própria LaCugna foi influenciada pela obra de Yves Congar e pelo teólogo ortodoxo oriental John Zizioulas, os quais articularam uma teologia trinitária da Igreja como uma comunhão de pessoas. A Igreja é chamada, muito embora ela tão frequentemente não consegue viver esse chamado, a ser a nova “casa do Reino de Deus” que oferece uma forma radicalmente nova de experiência humana em Cristo.
LaCugna gostava da recuperação que fez o Concílio Vaticano II das bases trinitárias da Igreja. “A Igreja peregrina é, por sua natureza, missionária”, ensina o Concílio em Ad Gentes (Decreto sobre a Atividade Missionária da Igreja, 1965), visto que “[ela] tem a sua origem, segundo o desígnio de Deus Pai, na ‘missão’ do Filho e do Espírito Santo”.
A autora via essa dimensão trinitária na sacramentalidade da Igreja; a Igreja é para ser uma representação/incorporação visível da vida do Cristo Ressuscitado. O compromisso dela para com uma visão inteiramente relacional da Igreja possui implicações em nosso entendimento do ministério da Igreja.
Por séculos, a Igreja Católica tem lutado contra uma compreensão demasiado legalista de tais realidades eclesiais como ministério e poder. Temos concebido a ordenação como a atribuição de “poderes” discretos a indivíduos autônomos, os quais então exercem esses poderes sobre os fiéis. Entretanto, LaCugna insiste na prioridade do batismo, não da ordenação, com o sacramento decisivo para a constituição da Igreja. É o batismo que introduz o crente na relação eclesial fundamental, o discipulado cristão.
Por sua vez, a ordenação atrai o crente para uma nova relação eclesial dentro da comunhão eclesial, uma relação dedicada ao serviço público na Igreja. É somente quando a liderança ministerial for compreendida desse modo que poderemos esperar superar o pecado do clericalismo.
LaCugna nos deu um relato profundamente contemplativo, convincente e eminentemente pastoral do Deus trino que vem a nós como Verbo e Espírito e que nos conduz para dentro da comunhão divina através da vida da Igreja. A visão que a autora tem de Deus é a de que ele é, no coração do ser divino, Deus para nós.
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Trindade: a relação amorosa define o próprio ser de Deus - Instituto Humanitas Unisinos - IHU