23 Abril 2024
Ato em Copacabana foi mais fraco do que se pensava, mas expôs com mais nitidez o ímpeto eleitoral da direita – e sua tática para outubro. Há tempo de evitar a ameaça, mas o governo e os partidos progressistas precisam mudar sua atitude.
O artigo é de Glauco Faria, publicado por Outras Palavras, 22-04-2024.
Glauco Faria é jornalista, ex-editor-executivo de Brasil de Fato e Revista Fórum, ex-âncora na Rádio Brasil Atual/TVT e ex-editor na Rede Brasil Atual. Co-autor do livro Bernie Sanders: A Revolução Política Além do Voto (Editora Letramento). Leia outros artigos no Substack.
O bolsonarismo realizou um novo ato público neste domingo (21), em Copacabana, no qual houve uma quase repetição das falas e do conteúdo mostrado em outro evento, o da Paulista, em 25 de fevereiro. Mas também chamou atenção, desta vez, uma atenção mais pronunciada para as eleições municipais.
Não que o assunto tenha passado batido no ato da Paulista. Na ocasião, Michelle Bolsonaro buscou legitimar a união entre religião e política e seu marido falou que “[em] 2024 temos eleições municipais. Vamos caprichar no voto, em especial, para vereadores.” Ali a fala do ex-presidente evidenciava uma das prioridades táticas da extrema direita e do campo conservador: eleger o máximo possível de candidatos à Câmara Municipal neste ano.
O objetivo, por meio da eleição de vereadores, é fazer das Câmaras municipais um lugar para ecoar as mensagens de cunho moralista que agradam suas bases e preparar um salto para 2026. Daqui a dois anos, além das eleições para as assembleias estaduais e Câmara dos Deputados, haverá duas vagas para o Senado na disputa de cada estado. E é nesta casa que o bolsonarismo sonha com uma ampliação da sua presença, até para possibilitar a instauração de eventuais processos de impeachment para ministros do Supremo Tribunal Federal (STF).
Uma mostra dessa disposição foi um fato incomum para um evento realizado no Rio de Janeiro: uma pré-candidata a vereadora de São Paulo ter sido apresentada por Bolsonaro. A cubana Zoe Martínez, ex-comentarista da rádio Jovem Pan, é tida como possível puxadora de votos para o PL chegar a uma bancada de dez vereadores na capital paulista, meta ousada que tornaria a legenda possivelmente a maior bancada da casa.
Mas além disso, o ato do Rio deu a vez aos pré-candidatos a prefeito. Sete deles puderam associar diretamente sua imagem à de Bolsonaro, em um ambiente festivo, que será explorado nos próximos dias nas redes sociais do segmento. Alguns, como Alexandre Ramagem (PL-RJ), Bruno Engler (PL-MG), Gustavo Gayer (PL-GO) e Éder Mauro (PL-PA), são parlamentares que, mesmo se forem derrotados no processo eleitoral, voltam a seus mandatos de deputado federal com mais projeção e já despontariam como possíveis candidatos a cargos maiores (no próprio Senado, por exemplo) em 2026.
A mobilização foi menor do que se esperava, com pico de aproximadamente 33 mil pessoas, segundo grupo de estudos da USP que estimou a presença de 185 mil na Paulista em fevereiro. Ainda assim, é importante não cometer o erro de subestimar a capacidade de mobilização do extremismo brasileiro. Atos presenciais criam um vínculo mais forte e ajudam a impulsionar as ações no meio digital.
Foi uma manifestação política com um forte viés eleitoral, pelos pré-candidatos que estavam ali e pelo reforço das pautas que são caras ao bolsonarismo. Isso mostra um cuidado e uma organização em relação às eleições municipais que não houve em 2020. À época, Bolsonaro se via com a popularidade em xeque por conta da condução do combate à pandemia e manifestações e reuniões públicas – um ativo do grupo desde que a direita deu as caras nas ruas – não eram possíveis. Isso fez com que o resultado nas urnas não correspondesse ao sucesso de 2018. Agora, a história pode ser outra.
Não só existe uma atenção maior ao pleito como os temas cultivados pelo bolsonarismo têm encontrado ressonância e destaque no Legislativo, em especial na Câmara dos Deputados onde a hostilidade do presidente da Casa, Arthur Lira (PP-AL), em relação ao governo Lula abre espaço para que tais parlamentares ganhem voz.
A tradição política aponta que as eleições municipais têm um caráter distinto das gerais. Nelas, em condições normais, os problemas do dia a dia, de interesse local, têm uma influência muito maior do que os vieses ideológicos poderiam indicar. As conexões com lideranças de bairro também contam muito na escolha de um candidato. Mas o Brasil viu nos últimos anos um movimento grande de “invasão” de pautas de cunho moralista, muitas imaginárias como a questão da “ideologia de gênero” nas escolas, ganharem corpo. E são questões que podem passar a ter importância local.
Além disso, como Michelle Bolsonaro fez questão de mostrar em seus dois discursos na Paulista e em Copacabana, denominações neoptencostais terão ainda menos pudores para tentar vincular voto e religião.
Se em 2022 foi possível (e necessária) uma frente ampla para derrotar o bolsonarismo, que não economizou meios e recursos para vencer as eleições presidenciais, já se sabia que a repetição disso nas eleições municipais seria impossível. O conflito de interesses locais divide alguns partidos internamente e entre legendas distintas isso se torna ainda mais relevante.
Do outro lado, como os atos bolsonaristas mostram, existe uma concertação em torno de nomes e de pautas que mobilizam o segmento. Já a esquerda, além de contar com poucas articulações em nível local que sejam suprapartidárias (como ocorre em São Paulo, por exemplo), tem hoje dificuldades em unificar bandeiras que agreguem e tenham poder de estimular a participação.
Em seus primórdios, uma estratégia do PT para marcar território e ganhar projeção como partido era lançar candidaturas em todas as capitais, mesmo sem chances de vitória, estratégia que foi reproduzida em parte pelo PSOL em sua origem. Isso reforçou a identidade da legenda e criou uma marca, projetando nomes que, mesmo derrotados, lançaram-se em voos mais altos adiante.
Hoje o contexto é diferente, o PT tem o governo federal e uma relação complicada com o Legislativo nacional. Parece às vezes sem rumo. Além disso, a amplitude ideológica das alianças dá as caras em parte das disputas pelas prefeituras – o que amarra, nestes casos, a atuação da legenda. Mas isso não precisa levar os partidos de esquerda a se apresentarem sem horizonte político, como se coubesse aos prefeitos, em meio à crise civilizatória, apenas administrar burocraticamente a máquina dos municípios. É possível apresentar visões nítidas sobre as mudanças necessárias no espaço urbano e no país. Mesmo em cenários nos quais os candidatos não são favoritos (e talvez principalmente aí), vale pautar temas caros à esquerda, ainda que enfrentem barreiras do ponto de vista eleitoral, mas que possam dar norte à militância e impulsionar a eleição de vereadores. E, assim como faz o bolsonarismo, a esquerda deveria dar dimensão nacional ao debate destes temas.
Desde 2022 a extrema direita consegue ter o poder de agenda pública mesmo sem estar no poder federal. Não fazer o enfrentamento é cavar um buraco que vai erodir nas eleições de 2026. É possível fazer esse embate de forma estratégica, de acordo com o lugar e o cenário. Mas é preciso articular diferentes forças do campo e planejar. Os extremistas já colocaram seu bloco na rua.
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Desafio do bolsonarismo e o papel da esquerda. Artigo Glauco Faria - Instituto Humanitas Unisinos - IHU