20 Setembro 2023
“O desertor perdeu a fé. Está decepcionado com todas as promessas de paraíso e com os cantos das sereias. Mas ele transforma sua decepção em um gesto ativo. Ele não se limita à amarga resignação, nem procura bodes expiatórios para o seu mal-estar, mas faz da sua retirada uma pergunta: como viver?”
A reflexão é de Amador Fernández-Savater, em artigo publicado por Ctxt, 16-09-2023. A tradução é do Cepat.
Agarra suas entranhas e não solta. Uma inquietação, um ruído de fundo, um mal-estar. A coisa, longe de desaparecer, está crescendo. Apesar das distrações, dos narcóticos e das obstinações. Até não aguentar mais. E isso nos quebra.
Quando quebramos, quebramos. Com um lugar, uma posição, um espaço de reconhecimento. Fugimos como uma peste daquilo que até muito recentemente era talvez o que mais desejávamos. Passou a nos sufocar, aprisionar, asfixiar. O corpo é quem decide: deserção.
A sociedade (falando através da família, dos amigos ou dos parceiros) interpreta traição e fraqueza. Fracassamos, somos um fracasso ambulante. Convida-nos a descansar e a retomar, a voltar e a regressar ao caminho da normalidade.
O desertor faz suas próprias perguntas. Deve fazê-las se não quiser esmorecer diante da sociedade. Por que abandonar, partir, dispersar? A minha deserção é uma capitulação diante dos desafios do meu verdadeiro desejo ou está nascendo um novo desejo que devo ouvir?
A deserção faz perguntas a um mundo que sempre já tem todas as respostas, os caminhos possíveis e os tranquilizantes. Interrompe os automatismos que ingenuamente chamamos de “minha vida”. Quebra os roteiros preparados para nós pela sociedade do espetáculo.
Desertamos para poder pensar e pensamos para poder respirar.
O diagnóstico em todos os lugares é o mesmo: uma epidemia de depressão. Relatórios médicos, pais alarmados e Íñigo Errejón demandam mais psicólogos, cuidados e medicamentos. Os antidepressivos já são os medicamentos mais pedidos nas farmácias.
A pandemia foi um ponto de inflexão. Multiplicou e radicalizou um clima de falta de desejo, apagão libidinal e depressão. Desde então, os fenômenos de deserção da sociedade se generalizaram: abandonar o trabalho ou trabalhar o mínimo possível, não acompanhar as notícias políticas exceto os memes e as risadas, não participar, não criar ilusões...
O “retorno à normalidade” dos desprivilegiados do turismo, da política e dos negócios tem algo de fake, de gesticulação imposta, de fuga para a frente de um vazio de fundo.
O filósofo italiano Franco Berardi Bifo questiona-se no seu mais recente livro [O terceiro inconsciente], em breve disponível em espanhol pela editora Prometeo, sobre a natureza deste fenômeno e propõe a seguinte interpretação: “Não é depressão, mas deserção”. O que é um fenômeno existencial e político é diagnosticado e medicalizado. O que é verdadeiramente anormal é a adaptação a uma sociedade doentia.
A primeira coisa a se fazer, então, é uma mudança de perspectiva. Não ver a deserção como um defeito, mas como um potencial. Não como o que precisa ser explicado, mas como o que explica. Não o que precisa ser resolvido e solucionado, mas o que nos questiona sobre a vida que levamos e a necessidade de introduzir mudanças radicais nela.
A deserção não é resignação, mas busca silenciosa por alguma coisa diferente. Não é uma depressão ou uma queda de ânimo, mas a separação do desejo dos canais estressantes (sucesso, consumo, autorrealização) através dos quais circulava. Não é fuga do político, mas a impugnação da política tradicional que gera nossas vidas sem sequer nos perguntar. O que precisamos é inventar uma politização que cure e uma cura que não isole.
O desertor perdeu a fé. Está decepcionado com todas as promessas de paraíso e com os cantos das sereias. Mas ele transforma sua decepção em um gesto ativo. Ele não se limita à amarga resignação, nem procura bodes expiatórios para o seu mal-estar, mas faz da sua retirada uma pergunta: como viver?
Segundo Bifo, a decepção do desertor afeta o núcleo mais profundo da cultura ocidental: a vontade, a força de vontade, a política como vontade geral, estatal. A história do Ocidente pode ser lida como a substituição uma pela outra das figuras da vontade: Deus pode, a História pode, a técnica pode, a razão pode, o partido pode, o líder pode, o Estado pode...
Pois bem, não, eles não podem. Não se pode. As mudanças forçadas pela vontade – inclusive a vontade revolucionária – apenas semearam mais caos no mundo. Agora é hora de assumir o desamparo, mas de forma ativa, como alavanca.
O desertor não pode mais. Mas ao abdicar das promessas da vontade (“se quiser, você pode”), algo diferente se abre. Entre o poder e a impotência, entre a ilusão e o cinismo, entre a espera e o desespero. O desertor encontra uma nova bússola na sensibilidade. Ao contrário da vontade, a sensibilidade não visa o controle, mas uma maior receptividade: abertura, disponibilidade e atenção ao mundo. Torne-se amigo das coisas e dos seres, em vez de buscar seu domínio.
Enquanto o Ocidente é incapaz de assumir o declínio da vontade, o ocaso do paradigma do controle e do fracasso da política em mudar um mundo muito rápido e imprevisível, o desertor parte da exaustão, mas aprende a saber-fazer com o não saber e o não poder, procurando tecer alianças sensíveis com as forças do mundo em vez da violência das imposições.
O esgotamento da vontade não é depressão, mas deserção de um paradigma e modo de vida.
O portal francês Reporterre, ligado às lutas e movimentos ambientais, publicou recentemente uma extensa reportagem sobre os fenômenos de deserção no país.
Tudo começa com um belo ato de interrupção: na entrega de diplomas da organização AgroParisTech, grande escola técnica do Ministério da Agricultura, oito alunos rejeitaram o título e convidaram seus colegas a abandonarem os “empregos destrutivos” e a ingressarem nos novos movimentos ambientalistas. É necessário, disseram, abrir uma “bifurcação histórica agora”, um novo rumo para o planeta.
As dúvidas sobre o próprio trabalho se espalham por toda parte: para quem ou para que trabalhar? Onde colocar os seus talentos e habilidades? A deserção, que nasceu como um gesto de quebra da disciplina militar, dirige-se agora contra uma nova guerra: a guerra contra os seres vivos. A mobilização de todos os saberes e recursos existentes para sustentar modos de vida que depredam a Terra.
A deserção que Reporterre investiga é consciente, estratégica e organizada. Conhece suas razões e seus propósitos. Os desertores têm um discurso muito sofisticado, organizam encontros para a troca de conhecimentos e experiências e preparam materiais (guias, referências) que podem ser úteis a outros desertores.
Mas esta deserção é também uma política da pergunta: como não cooperar com o sistema de produção destrutivo? Como sustentar materialmente esse gesto de não colaboração? Como permanecer abertos à sociedade e não criar novos guetos impotentes? Como ampliar a deserção e facilitar para quem não tem os meios?
Mathieu Yon, que deixou o emprego para se estabelecer como horticultor orgânico na região do Drôme, explica num testemunho muito forte que a deserção passa primeiramente pelo trabalho sobre si mesmo. Cada pessoa deve encontrar o seu próprio “sentimento de existir”, a sua relação única e singular com o mundo. Enraizar materialmente a própria percepção e o próprio corpo, deixando de ver e se ver a partir das narrativas que circulam por aí.
Diante da desmaterialização generalizada da vida através das telas, diante da homogeneização do desejo nesta sociedade supostamente individualista, Yon fala da deserção como aterrissagem: encontrar formas de exibir o próprio sentimento de existir, através do qual “o corpo arde em contato com o real”, que não danifiquem a terra. “A coisa mais difícil”, diz Mathieu Yon, é “prender a respiração, o fogo, parar de contar lorotas para si mesmo”.
O desafio da deserção não é o instante, mas a continuidade e a duração: como habitar o mundo como desertores?
A deserção é um gesto adequado apenas para privilegiados? Ou seja, para quem tem condições de deixar um emprego, uma posição, um lugar de reconhecimento. Será apenas um “gesto radical” acessível aos cidadãos do Norte global?
Pode-se pensar que sim, mas o escritor argentino Diego Valeriano encontra a deserção na vida das margens da cidade de Buenos Aires e dedica-lhes uma espécie de canção trágica em seu livro Deserción, inclusión y muerte.
Valeriano foi educador popular de rua nos bairros das periferias de Buenos Aires, mas também ele foi acometido pelo mal-estar. A sua missão tinha algo insuportavelmente assistencial, desigual e instrumental. O “trabalho social”, altamente programado, automatizado e burocratizado, oferece a inclusão social às crianças de rua em troca de lhes roubar toda a sua energia vital.
Essa vitalidade avassaladora e selvagem dos meninos é o que comove e desorienta Valeriano. Aqueles que menos têm, de quem menos se espera, são, na verdade, os mais vivos, os que melhor sabem viver sem nada, os que mais riquezas – de cumplicidades, de saberes práticos – têm. Os únicos que poderiam sobreviver a um apocalipse zumbi.
Os jovens desertam das máquinas estatais que os assistem ao preço de suprimir a sua autonomia e liberdade de movimento, de apagar a sua centelha e graça. Às vezes desertam através do silêncio (“o silêncio evita a ‘psicologiada’, a caridade, o boné. Torna-os invisíveis”). Às vezes através da passividade (“aprender a evitar promessas que são apenas boas notícias para quem promete”). Às vezes através da dissimulação (“mantêm um espaço próprio para se movimentar, mas fazem certas brincadeiras para continuar andando”).
A inclusão dói. Participar das oficinas, aceitar os trabalhos de merda, ser escravo do subsídio. A inclusão asfixia e queima. “Fazer fila bem cedo, preencher o formulário, baixar o aplicativo, falar a língua morta dos empregadores do Estado, acompanhar seu tempo, abaixar a cabeça”. Ser incluído para estas vidas é aceitar se tornar trâmite.
Deserta-se para caminhar. Os rapazes se movem, perambulam, derivam. Escapam do tempo-norma, do tempo-sala de aula, acompanhado e julgado. Aprendem a contornar todos aqueles que impedem o movimento: policiais, burocratas, estetas dos pobres. Todos aqueles que atenuam e mutilam as potências de caminhar, de partilhar, de aventurar-se.
Anda-se entre amigos. O vínculo entre os meninos desertores e Valeriano é a amizade. Informal, igualitária, não vigilante. A amizade é do que precisam para sustentar a deserção à vida-norma: um amor desapegado de controle, sem julgamentos, sem perguntas inquisitoriais, sem necessidade de explicações. Amizade e não caridade, solidariedade vertical ou assistência.
Entre amigos procura-se entender. A deserção que caminha é uma forma de continuar a fazer perguntas. Não perguntas educadas, especulativas, formuladas com a cabeça, com suas citações e bibliografia, mas perguntas feitas com o intestino, formuladas com os pés, correndo riscos. “Caminhar juntos para entender o que é a vida, não a sua vida, essa vida chata que já julgamos de antemão, mas a vida. Esta nossa, a de todos, aquela que não entendemos”.
Deserção difícil no sul do Sul global: demasiado intensa, demasiado exposta, demasiado precária. Insustentável, destinada a não durar, mas que deixa nos corpos as marcas de uma “verdadeira vida” vivida no caminhar comum. É isso que finalmente se “entende sem entender” entre amigos e que Valeriano conta neste livro explosivo.
E na Espanha? Existem sinais de deserção que podemos perceber, ouvir, atender?
Chegou às minhas mãos um comunicado de um grupo anônimo de estudantes de Antropologia que se autodenominam Komum. O título já provoca leitura: ‘A antropologia em dissolução’.
Contam-me que o distribuíram no primeiro dia do recente congresso anual de antropologia tentando desestabilizar alguns dos automatismos deste tipo de eventos acadêmicos, para abrir espaço para outras perguntas.
O texto é escrito com um misto de agressividade e ternura. Uma ternura que rejeita, uma rejeição que abraça. Um tom bem diferente dos manifestos clássicos dos grupos de vanguarda: sem superioridade, com dúvidas, cheio de humor e ironia. O próprio texto se apresenta como um takeo, um gesto efêmero e em movimento, cambiante e habitado por contradições, que não quer perdurar ou tornar-se monumento, mas antes provocar algo aqui e agora.
O texto começa, novamente, com a decepção. Decepção com a promessa da Antropologia, das Ciências Sociais em geral, do conhecimento e do conhecimento crítico, aliás. É preciso parar de nos enganar e de contar lorotas: o potencial de todas elas foi neutralizado na junção entre mercado, academia e abandono. A adaptação dos conhecimentos à lógica do lucro. A mentira do discurso moralmente puro do cientificismo acadêmico. E a terrível opção pelo tédio e a indiferença.
O texto fala da Antropologia, de onde vem a afetação específica de quem escreve, mas o seu alcance é geral: pode tocar e desafiar todos nós que fazemos das palavras um estilo de vida e desejamos que as ideias voltem a ser perigosas. Não existe fora, não existe alternativa utópica à junção entre mercado, academia e sujeição. Como viver dentro e contra? Como resistir, através da linguagem, ao seu achatamento comunicativo e acadêmico (redes sociais e papers)?
A proposta do Komum é chegar verdadeiramente a um FIM. Radicalizar o esgotamento das Ciências Sociais e acelerar o seu fim, na confiança de que esta dissolução irá libertar as potencialidades capturadas pela sua forma institucionalizada. Matar a Antropologia para que seus poderes revivam. Dissolução como deserção.
Como operar esta dissolução? Através do encontro. “O encontro sempre foi a prática antropológica por antonomásia. Paradoxalmente, é hora de resgatá-lo para acabar com a Antropologia”. O encontro em igualdade, contra a separação do sujeito (quem sabe) e do objeto (conhecido). O encontro de todos os que têm aversão às práticas extrativistas que fazem dos mundos investigados meios de carreira e negócio. O encontro como amizade cúmplice entre desertores: uma aposta, uma viagem compartilhada, sem garantias. O texto é um apelo ao encontro.
Nos últimos anos, a mudança tem sido tentada a partir de baixo, concentrando e mobilizando energias a partir de praças e ruas. Fez-se uma tentativa de cima, entrando nos espaços fechados da política profissional, para modificar as leis. Ambas as tentativas se depararam com sérios limites.
Na sua quietude apenas aparente, a deserção é uma forma de continuar buscando saídas para uma situação sem saída. Nem por cima nem por baixo, mas através da fenda. Sem ilusões a vender, nem rendições a cumprir. Primeiro vem um mal-estar no corpo: um tremor, uma vacilação dos sentidos. Depois, uma rejeição: um ligeiro movimento, um distanciamento. Por fim, a possibilidade de outro percurso: um caminhar juntos, uma nova amizade.
“Sei que nada sei”, disse um dos primeiros desertores de que temos notícia. Isso nunca o impediu de buscar o encontro, a conversa, de continuar perambulando, perguntando. A amizade que tudo entende sem entender nada.
FECHAR
Comunique à redação erros de português, de informação ou técnicos encontrados nesta página:
A deserção como crise de sentido. Artigo de Amador Fernández-Savater - Instituto Humanitas Unisinos - IHU