06 Junho 2023
Depois de quebrar os códigos da economia clássica, graças entre outras coisas a um modelo baseado em preços muito agressivos, plataformas como Netflix ou Uber finalmente adotarão as práticas de outrora? O ex-secretário de Estado para Assuntos Digitais e ex-parlamentar do La République en Marche! (LREM) de Paris Mounir Mahjoubi, cofundador do mercado Eversy, explica os desafios que essas plataformas enfrentam hoje.
A entrevista é de Lou Fritel, publicada por Marianne, 29-05-2023. A tradução é do Cepat.
A plataforma Uber poderá passar a cobrar dos seus passageiros a partir de agora pelo “tempo que demora para chegar”. A gigante do streaming Netflix está impedindo o compartilhamento gratuito de contas em 100 países. Por que essas empresas, que se destacaram apostando em uma política do “menor custo” para o consumidor, estão se afastando desse modelo?
Bem, porque muitas dessas empresas mentiram sobre seu valor. Os consumidores – franceses, europeus ou norte-americanos – foram levados a acreditar que poderiam obter um serviço de quatro estrelas pagando três vezes menos. Todos achavam que era normal, quando na verdade não era. Mas alguém tinha que pagar por isso. E quem pagou? Em parte os fundos de investimento e, sobretudo, os próprios motoristas, o que era inaceitável.
Com a Netflix, estamos em uma economia de conteúdo. Também aqui, para sobreviver, as plataformas de streaming bateram forte com preços bem agressivos. Mas se você olhar para os players tradicionais do setor, como o Canal+ na França, eles garantem que o preço permite que a empresa sobreviva no longo prazo. A Netflix enfrenta agora grandes investimentos e, portanto, precisa aumentar seu faturamento. Você pode se dar ao luxo de aumentar os preços agora porque os consumidores são cativos e a concorrência não está no mesmo nível. Podemos discutir se isso é aceitável ou não, o fato é que pode encorajar as pessoas a pagar.
No entanto, embora essa política tenha funcionado nos Estados Unidos, não foi conclusiva na Espanha, onde o número de assinantes aumentou muito pouco. Os assinantes do Canal+ pagam muito, logo eles se perguntam antes de se comprometer. Não nos perguntamos sobre o Netflix. Mas a 15 euros por mês, está começando a parecer meio pacote de telefone. Se continuar a subir, os consumidores vão começar a se perguntar. De qualquer forma, estamos em um ponto em que a economia de plataforma encontra a economia do mundo real.
Frequentemente associamos essas duas empresas à Telsa e ao Airbnb, todas as quatro compartilham o acrônimo NATU. O que seus modelos têm em comum?
Tudo o que têm em comum é uma abordagem macroeconômica. São “love brand”, ou seja, marcas que as pessoas gostam. Elas são importantes em sua vida. Mas os modelos de negócios dessas empresas não têm nada em comum. O Uber é um grupo de trabalhadores de plataforma, a Netflix é um grupo de trabalhadores de conteúdo e o Airbnb é o mais representativo dos “marketplaces”. Para este último, o elo comum com os outros dois é o preço. Da mesma forma como para a Netflix e o Uber, só agora descobrimos o verdadeiro custo do serviço, o verdadeiro preço das coisas.
Plataformas como o Airbnb ou o Abritel cobram dos proprietários comissões extremamente altas, que variam entre 20% e 30%, sem que isso seja indicado em seu sítio na internet. Embora os proprietários tenham aumentado o número de dias de aluguel, sua rentabilidade caiu. Para o inquilino, ao entrar no Airbnb, o preço no início é anunciado sem comissões e inflado no final. No entanto, o valor do serviço desta plataforma deveria ser para o proprietário e para o cliente.
O Airbnb fez uma grande pesquisa com seus usuários, que o criticaram por falta de transparência nos preços. Após esta consulta, o chefe da plataforma, Brian Chesky, prometeu acabar com esta prática. No entanto, ainda se recusa a exibir claramente a porcentagem da comissão na página inicial. Mas muitos proprietários acreditam que não têm outra escolha. Os locatários gostam desta marca. Todas essas plataformas criam dependência e isso não é aceitável. Um agente como o Airbnb, que detém a maior fatia do mercado, quase toda ela com a concorrente Abritel, cobra taxas astronômicas, embora nem mesmo pague impostos na França.
Os consumidores também devem se perguntar: estão obtendo uma boa relação qualidade-preço?
É uma pergunta difícil. Empresas como a Heetch estão tentando introduzir maior transparência, especialmente para mostrar como o dinheiro dos compradores é distribuído. Muitas vezes as pessoas pensam que o Canal+ está fora de moda, mas a plataforma tem razão em apontar que há custos que não podem ser reduzidos, que não há trabalhadores que trabalham de graça. Embora às vezes seja desagradável de ouvir, está fazendo um favor ao consumidor.
Depois de terem quebrado os códigos do mercado, estes retrocessos das plataformas são sinônimo de retorno a uma economia “tradicional”?
Como eu dizia antes, as plataformas estão voltadas para a economia real, já que os investidores não subsidiam mais sua conquista. Estes costumavam dar dinheiro em quantidade suficiente para absorver seus déficits. Hoje, essas empresas são grandes demais para venderem com prejuízo. Elas têm que mostrar que ganham dinheiro. Em segundo lugar, as leis de vários países atacaram a precariedade no trabalho dos seus trabalhadores. Isso criou novos limites.
Voltando aos “marketplaces”, por enquanto não baixaram os preços porque ainda não encontraram obstáculos. A concorrência pode ser um obstáculo? Em todo caso, não podemos aceitar que intermediários desse porte tirem tanto dos consumidores.
Não há também uma mudança nos hábitos de consumo e no desejo de uma parte da população de se afastar da “uberização” da sociedade?
Cuidado com o termo “uberização” da sociedade. Penso que o fato de ter serviços sob demanda pode ser muito bom, mas a questão é como os trabalhadores são pagos e tratados. As pessoas querem mais serviços e plataformas sob demanda. Nossas vidas estão cada vez mais fragmentadas e são cada vez mais complexas. Em um ambiente urbano, quando se é uma mãe solo com dois filhos, pedir comida em casa é muito prático se puder pagar, é preciso reconhecer que é um luxo.
Mas o que está errado – e denunciei isso durante meu último ano na Assembleia Nacional em 2021 – é o tratamento dado aos trabalhadores por algumas plataformas de entrega. Nós elaboramos uma tabela classificatória que mostrava que algumas empresas tinham 90% de contratos por tempo indeterminado para seus entregadores, enquanto outras adotavam uma política de hiperprecarização. Os agentes franceses não eram exemplares, e as empresas estrangeiras às vezes eram muito mais virtuosas, algumas até comprando as bicicletas de seus trabalhadores. Não é o fim da “uberização”, mas o fim da ficção do luxo gratuito.
Deixe-me dizê-lo de outra forma: os consumidores não estão exigindo uma economia mais virtuosa em matéria de direitos trabalhistas?
Claro. Leva algum tempo para entender como funciona um setor, pelo menos dez anos. Agora que todos entenderam este setor, muitas pessoas, especialmente aquelas que podem pagar, se perguntam sobre seu impacto social. Isso afeta o mercado. Somente no setor de entregas a domicílio, uma empresa após a outra está quebrando e apenas as gigantes permanecem. É de se esperar que elas serão mais virtuosas.
A Deliveroo não teve uma classificação muito boa no nosso relatório, mas hoje é um pouco melhor em relação aos seus entregadores. Do ponto de vista puramente econômico, creio que a empresa tem interesse em continuar. Simetricamente, a Getir estava muito bem posicionada e tinha um modelo viável. Isso lhe permitiu comprar várias de suas concorrentes menores, cujo modelo era mais precário. A Getir acabou com esse modelo. A integração de todas estas empresas levou a uma reorganização judicial do grupo como um todo, obrigando a uma reorganização dos empregos [a Getir anunciou na semana passada que estava estudando um plano de demissão para 900 pessoas na França], mas em torno de contratos por tempo indeterminado.
A economia do menor custo não é mais uma opção, precisamos de uma normalização e de mais transparência. Mas esse processo não acabou. Não será amanhã que vamos pagar o preço justo, e esse dia não será necessariamente agradável para os consumidores. Às vezes, isso significará pagar mais quando há seres humanos envolvidos. Pelo contrário, quando a plataforma for 100% automatizada, o consumidor necessariamente teria que pagar um preço menor: isso seria o mais justo.
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“Não é o fim da uberização, mas o fim da ficção do luxo gratuito”. Entrevista com Mounir Mahjoubi - Instituto Humanitas Unisinos - IHU