22 Mai 2023
As águas do Evros, na fronteira turca, arrastam os corpos inchados de quem não teve sucesso, passar por aí é o único caminho que resta para a Europa, enquanto Atenas ergue seu muro.
A reportagem é de Letizia Tortello, publicada por La Stampa, 20-05-2023. A tradução é de Luisa Rabolini.
Cadáver A.1, gaveta 15. O que resta de um homem está escrito em uma folha de plástico branca presa no fundo do saco azul, onde estão os pés: número de identificação 1019/27/270. Não há nome, esse homem é "Ninguém", ninguém jamais saberá sua história ou o nome do país para o qual sonhava fugir. Ele se afogou sem receber ajuda, porque não sabia nadar, nas águas geladas entre a Grécia e a Turquia, aquela porta da nossa casa para a qual todos fecham os olhos. O rio Evros, armadilha de morte. No necrotério do hospital público de Alexandroupoli, o professor Pavlos Pavlidis é o último que os olha no rosto esses fantasmas, migrantes esquecidos, hoje em sua maioria jovens entre 20 e 25 anos, em busca de um emprego.
“Este era um jovem, eu me lembro”, conta ele, abrindo a geladeira. Cadáver A.1 está aí desde meados de outubro do ano passado. É um dos vinte corpos sem vida de requerentes de asilo conservados na estrutura sanitária. Foram para o fundo com todas as suas muitas roupas umas em cima das outras, porque nos botes de três metros por três compartilhado com outras 10 pessoas, não se pode levar malas. Apenas uma bolsa, uma carteira de plástico com cigarros, alguns euros, e remédios, um amuleto da sorte. O rio os engole.
"Os encontramos mesmo depois de semanas”, continua o legista. Inchados da cabeça aos pés, desfigurado pela água doce e pelos peixes, muitos nem têm mais rosto. Os mais equipados têm um colete salva-vidas, mas não ajuda em nada. Em vez disso, aqueles que morreram de hipotermia sim, ainda podem ser reconhecidos, o frio não mudou suas características. E depois tem os objetos pessoais: uma corrente, uma pulseira com o coração e a bandeira da Síria, um prendedor azul como aquele que sai das caixas que Pavlidis tem debaixo da mesa. Pertenciam a uma migrante de 12 anos, que morreu em 16 de abril do ano passado. Ao despi-los do que carregam no corpo, é mais fácil proceder com o protocolo de identificação: primeiro tira-se a fotografia, depois coleta-se o DNA, se possível as impressões digitais, para reconstruir o país de origem. Nesse ponto, se entra em contato com a embaixada e se espera que algum parente tenha acompanhado a viagem e os esteja procurando.
Os migrantes de Evros pagam 1.000 euros a traficantes para atravessarem o rio que leva para o resto da Europa. Nesse canto da Grécia que no mito antigo era a terra dos deuses, Orfeu e Dionísio, e do herói Spartacus, e que hoje é a fronteira entre dois estados com relações diplomáticas muito tensas até algumas semanas atrás. Quando houve o terremoto, brotou a solidariedade e uma espécie de apaziguamento eleitoral.
Ancara irá às urnas na próxima semana, Atenas é chamada às urnas amanhã, para renovar o Parlamento. O slogan da campanha eleitoral é "muro". Da esquerda de Syriza à Nova Democracia, a imigração é traduzida com a doutrina da segurança e do fechamento das fronteiras. “Ninguém na Grécia quer ouvir falar de direitos humanos e do problema dos imigrantes, só interessam os salários, a reforma das aposentadorias e a crise social”, explica Lefteris Papagiannakis, chefe da ONG Human Rights 360, que opera no Evros e recebe continuamente relatos de migrantes à deriva, espancados, despidos, forçados a partir, barrados. A polícia grega patrulhas 24 horas por dia, tal como a Frontex, em nome da UE.
“Essas pessoas não têm nenhum documento com elas, os jogam no mar, porque quando entendem de onde você vem, mandam você para casa com mais facilidade”, comenta o professor Pavlidis. Alto, seco, blazer, gravata e calça jeans, o rosto marcado pelas tantas desgraças que teve que presenciar, nos vinte e três anos de serviço no hospital de Alexandroupoli. “Sim, faço tudo sozinho, claro”. Desde 2000, recuperou e analisou 670 cadáveres. Apenas do lado grego, porque não há colaboração com os colegas turcos.
No ano passado, foram 63. Desde o início de janeiro, com o avanço do muro que Atenas está construindo à sua custa para barrar as entradas, “encontramos 11”. Mas eles não morreram de hipotermia, com temperaturas chegando a -18° no inverno. Nem mesmo afogados. “Eles morreram em um choque frontal, um acidente de trânsito – explica -, enquanto tentavam fugir dos guardas”.
Se o Cadáver A.1 é o mais velho nas gavetas dos "senhores ninguém" que chegaram sem vida da Turquia, a menina dos prendedores azuis é a última vítima do rio Evros. Data de 16 de abril do ano passado. Ela estava em fuga da Síria, com outros cinco homens, talvez parentes. Os migrantes daquela guerra, nos últimos meses, diminuíram. Costumam vir mais do Afeganistão, Paquistão, Irã, Iraque, Curdistão, Marrocos, Somália.
Sakis Attanasios, um pescador de 43 anos de Evros, conhece rosto por rosto as pessoas desesperadas que trilham essa rota mortal. Ele mora lá, no meio das curvas do rio em uma cabana de madeira e zinco, com o cachorro, o pai e o ajudante. Ele nos leva em um longo passeio em seu barco. Ele é a triste enciclopédia das tragédias: sabe como mudam as rotas que os contrabandistas obrigam a seguir quem parte. E as ilustra para nós: “Antigamente os traficantes chegavam de Atenas para atuar como barqueiros, hoje não. Hoje eles entregam à pessoa um pedaço de papel, um bote que vira se você se mexer, falam onde a água é rasa para empurrá-lo com a mão, os fazem zarpar ao amanhecer, alguns demoram até dois dias para atravessar, se escondem nas ilhotas com medo de serem pegos”. Se sobreviverem a esse inferno, recebem outro link com uma localização no Google Maps no celular, onde podem encontrar um carro roubado e continuar a viagem. Se chegarem até Atenas, então, enviarão um vídeo aos familiares, no qual declaram que estão vivos, e que podem fazer a transferência aos traficantes.
Quantas vezes lhe pediram ajuda, Sakis? “Sempre – ele nos conta, com um olhar resignado, oferecendo-nos um café grego, muito parecido com o turco -, gritam "help!". Mas tenho que seguir as regras, chamar a polícia, esperar dez minutos, depois colocá-los no barco e entregá-los. Caso contrário, me acusam de tráfico de seres humanos”.
Os 37,5 quilômetros dos 140 do muro ainda a serem concluídos – três metros de altura, em aço, inacessíveis, a cada 200 metros um torreão com câmeras térmicas – reduziram as entradas em 80%. Mas quando não é o rio que mata, há outra coisa na fronteira do Evros: “Uma menina acabou debaixo de um trem - conta o professor Pavlidis -. Ela caminhou pelos trilhos. No Paquistão, os trens andam devagar, pensavam pular neles. O destino provavelmente era a Alemanha. O sonho europeu se chocou às fronteiras da humanidade, no necrotério de Alexandroupoli.
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Grécia: o rio da morte - Instituto Humanitas Unisinos - IHU