20 Mai 2023
Regrar conteúdos pode ser fútil, sem um passo a mais. País precisa desenvolver suas próprias plataformas intermediárias e de aplicativos – e deixar de depender das Big Techs. É possível, como mostram a China e as iniciativas na Saúde.
O artigo é de César Bolaño, professor titular aposentado da Universidade Federal de Sergipe e voluntário junto do Programa de Pós-graduação em Economia (PROPEC-UFS), publicado por Outras Palavras, 12-05-2023.
No último 25 de abril, o Comitê Gestor da Internet do Brasil realizou um seminário, em Brasília, por ocasião do lançamento de consulta pública sobre regulação de plataformas digitais. Participaram representantes do governo, da academia, do empresariado e do chamado terceiro setor, formando um painel bem representativo do debate atual sobre o tema na sociedade civil brasileira. Duas temáticas gerais dominaram as apresentações: a polêmica ideia de regulação de conteúdos, que é sem dúvida o grande norte dos argumentos pró e contra a regulação hoje no país, e a perspectiva de defesa da concorrência.
Ambos problemas são importantes, mas meu objetivo aqui é sinalizar uma terceira ordem de questões que deveria estar no centro do debate, ligada à necessidade premente de um novo projeto nacional de desenvolvimento. A título de comparação, irei me referir, muito brevemente, ao emblemático caso chinês, mas também ao notável programa relativo ao Complexo Econômico-Industrial da Saúde, desenvolvido por uma ampla rede de pesquisadores brasileiros. Não estou tratando, neste texto, do PL 2630, em discussão no Congresso. Minha tese é que a regulação das plataformas no Brasil deveria ser pensada, desde o início, em termos das possibilidades de solução de problemas sociais urgentes e de promoção, ao mesmo tempo, de alternativas para o desenvolvimento.
Em primeiro lugar, é preciso diferenciar o fenômeno técnico das redes e plataformas, derivado da revolução microeletrônica e informática – que remonta à reestruturação produtiva que se seguiu à crise estrutural dos anos 1970 – daquele das empresas que têm hoje um papel preponderante na economia da internet. Quando um laboratório, por exemplo, se associa a uma determinada plataforma vacinal, passa a integrar uma rede de produção de conhecimento, no interior da qual seus pesquisadores compõem o trabalhador coletivo, para usar a expressão de Marx, responsável pela busca de soluções para um determinado problema de saúde pública. Este é o lado material da coisa: a organização do trabalho em rede através de plataformas e não necessariamente de empresas de plataforma. Estas são empreendimentos que visam apenas explorar as potencialidades de lucro que aquele tipo de organização da produção enseja. No primeiro caso, trata-se do desenvolvimento das forças produtivas, no segundo, das relações de produção, que se dividem também em dois tipos: a relação fundamental capital-trabalho, estabelecida no nível microeconômico, e a relação de compra e venda dos produtos ou serviços, definida no plano da realização do valor das mercadorias, no mercado.
Trata-se de uma distinção importante, tendo em vista o atual sucesso, em certos meios acadêmicos, da confusa noção de prossumidor proposta pelo futurólogo norte-americano Alvin Tofler. Sem entrar aqui no debate (ver Bolaño & Vieira, 2014), a existência desse tipo de interpretação se explica pelo fato de que a internet e as plataformas digitais unificam em boa medida as formas de controle do trabalho e da sociedade, constituindo mecanismos comuns de gestão empresarial e de vigilância em massa. Do ponto de vista da regulação, trata-se, de um lado, concretamente, no caso brasileiro hoje, sob o comando de um governo de esquerda, de restaurar, no mínimo, em condições extremamente adversas, os mecanismos de defesa dos trabalhadores, destruídos ao longo do período neoliberal, especialmente após o golpe de 2016. Um problema ainda mais complexo se considerarmos as particularidades dos novos processos produtivos mediados por plataformas. Apenas para citar um exemplo, não é trivial identificar os interesses dos trabalhadores autônomos espoliados por plataformas como o Uber e aqueles dos trabalhadores assalariados das chamadas plataformas industriais, na classificação de Srnicek (2018), embora sejam todos eles, parte da “classe que vive do trabalho”, para usar a expressão de Ricardo Antunes (2007).
No que diz respeito ao consumidor, ao usuário, o grande debate concentra-se hoje nas plataformas publicitárias, como Google e Facebook. São tomadas como paradigma, quando de fato são casos particulares, ainda que obviamente de grande interesse, seja pela magnitude do fenômeno, seja pela sua importância na consolidação do novo sistema global de cultura, que subsume a velha Indústria Cultural do século XX. Este sistema potencializa as funções publicidade e propaganda que a definem como setor particular do capital monopolista cumprindo um papel chave na legitimação do sistema de dominação, enquanto instrumento de manipulação e controle social. Um aspecto distintivo do novo sistema global de cultura, surgido do desenvolvimento da internet, das plataformas e redes sociais, é a interatividade, característica reivindicada historicamente pelos defensores da democratização dos meios de comunicação. Ainda que a interatividade realmente existente não corresponda à demanda – sujeita que está, por um lado, a um tipo de mediação algorítmica a serviço dos proprietários das plataformas ou, por outro, à ação estratégica de grupos antidemocráticos –, o afã de regulação dos conteúdos pode ser mais um problema que uma solução.
Mas há outras plataformas ainda, de venda de produtos, digitais ou não, plataformas especializadas, de diferentes tipos de serviços, inclusive financeiros, de logística, enfim, o que se vive hoje é um processo complexo de plataformização geral da economia que não permite pensar em uma regulação “de plataformas” como um conjunto e isolada da política econômica e da política social. Assim, já vimos que, no caso do trabalho, não se trata simplesmente de regulação de plataformas, mas de recuperação (para não dizer ainda avanço) das conquistas históricas da classe trabalhadora, o que por certo evidencia já a necessidade de um projeto nacional de desenvolvimento. Por outro lado, o caso das plataformas publicitárias remete à velha questão da regulação ou do controle social dos meios de comunicação de massa, o que se relaciona também à questão do desenvolvimento, se pensarmos, por exemplo, na velha discussão sobre os limites à competitividade sistêmica no setor cultural-comunicacional, dada a concentração da produção audiovisual nacional. A tese aqui defendida é que é possível definir um marco regulatório geral, segmentado em função das determinações de ordem material e formal referidas acima, subordinado a uma lógica comum de desenvolvimento econômico e social.
Nesse sentido, adoto aqui a taxonomia recentemente apresentada por Van Dijk (2022), que classifica as plataformas em três níveis, utilizando a metáfora de uma árvore que, à medida que cresce, vai alterando a configuração de suas partes constitutivas e as relações entre elas. As raízes representam o hardware, dispositivos e protocolos que constituem a infraestrutura material, enquanto o tronco é formado pelas plataformas intermediárias que oferecem serviços de identificação ou login, sistemas de pagamento, serviços de mensagem, redes sociais, mecanismos de busca, serviços de publicidade, redes de varejo e lojas de aplicativos. Aí se encontram os grandes players globais norte-americanos, conhecidos como GAFAM (Google, Apple, Facebook, Amazon, Meta-Facebook) e chineses, conhecidos como BAT (Baidu, Alibaba, Tencent). Finalmente, “os ramos representam as aplicações setoriais construídas sobre serviços de plataformas na camada intermediária (tronco) e habilitadas pela infraestrutura digital (raízes)” (Van Dijck, 2022, p. 28) e incluem os serviços de notícias, mobilidade, saúde, educação, finanças etc. Ao contrário das empresas situadas no tronco, estas formam uma multidão em expansão que outros autores, como Neto, Chiarini e Ribeiro (2022), citando ampla bibliografia, definem utilizando o sugestivo nome de platform-dependent business.
Se no tronco encontramos empresas que, embora individualmente, segundo Van Dijck, não sejam fundamentais para o conjunto das atividades da internet, juntas “constituem o núcleo do poder das plataformas ao mediarem infraestruturas, usuários e setores sociais” (Van Dijck, 2022, p. 28), os ramos são constituídos de “complementadores atomizados cuja existência só é vital se agregam valor à plataforma” (Neto, Chiarini e Ribeiro, 2022). Entenda-se aqui por agregação de valor a ampliação dos chamados efeitos de rede. Nesta parte da nossa árvore é onde encontraremos as empresas nacionais de plataformas, cumprindo (gostosamente) a sina do capital periférico, a serviço do grande projeto global de retomada da hegemonia norte-americana, formulado nos idos do governo Reagan no plano macroeconômico, político e militar, mas completado, no concernente à política industrial, pelo projeto das infraestruturas globais da informação do governo Clinton. A inserção do capital nacional nesse processo foi resultado da política dos sucessivos governos brasileiros que, ao contrário dos chineses, não tiveram qualquer preocupação com a autonomia tecnológica e cultural, como defendia Furtado (1978).
No que se refere à economia da saúde brasileira, no entanto, o resultado parece ter sido muito diferente, graças à criação do SUS, a tradição do movimento sanitarista e o desenvolvimento da pesquisa em saúde pública que permitiram ao país, por exemplo, apresentar-se como um caso exemplar de disponibilização universal da vacina contra a covid-19, mesmo com a desastrosa gestão da pandemia pelo ministério da Saúde sob o comando do general Pazuelo. Nessas condições, o projeto do Complexo Econômico-Industrial da Saúde (CEIS) citado acima, coordenado pela Fundação Oswaldo Cruz, pode servir de inspiração. Assim, “a dinâmica global da indústria de vacinas evidencia o espaço social onde se dá concretamente a tensa relação da dinâmica capitalista com o mundo da vida. À luz da perspectiva do CEIS, as assimetrias globais na geração de conhecimento e produção associadas à assimetria no acesso da população global às doses de vacinas revelam a configuração de uma nítida relação de centro-periferia na área de saúde” (Gadelha, 2022, p 5). O projeto visa não apenas dar resposta aos desafios imediatos do sistema de saúde, mas, considerando-o como complexo industrial, que envolve pesquisa acadêmica de ponta, indústrias de base mecânica e química e serviços de saúde capilarizados, sobre a base de uma transição tecnológica profunda – que se relaciona diretamente com a economia das plataformas (Bolaño & Zangelini, 2023) –, tomá-lo como elemento central de um projeto nacional de desenvolvimento vinculado à satisfação de prementes necessidades sociais.
Nesse sentido, o ministério da Gestão e da Inovação em Serviços Públicos apressou-se em reconstituir o Grupo Executivo do Complexo Econômico-Industrial da Saúde (GECEIS), criado em 2008 e desativado no governo Bolsonaro, o qual seguiu a mesma perspectiva do governo Temer de neoliberalização do setor de saúde, que incluía a cessão de informações públicas por meio da criação de um sistema aberto chamado Open Health, “um repositório de dados assistenciais e de saúde de todos os brasileiros, coletados a partir de um prontuário eletrônico; e um ‘cadastro positivo da saúde’, com dados financeiros sobre os beneficiários de planos” (Fraga & Rocha, 2022). Ao contrário, no relançamento do GECEIS, a ministra Esther Dweck, prometeu reforçar o poder do Estado como indutor da inovação e desenvolvimento produtivo. É nessa perspectiva que a regulação das plataformas deveria também ser pensada.
A metáfora da árvore representa um sistema em que os dados, como a água e o ar, são coletados e circulam pelos três segmentos à medida que o conjunto se desenvolve. “As empresas que operam várias plataformas nos três níveis têm maior poder operacional, fortificando sua posição no tronco e desenvolvendo e consolidando seu poder de controle sobre o sistema (Van Dijk, 2022, p. 29). Os proprietários de plataformas intermediárias, as Big Five norte-americanas, ocupam a posição de maior poder, reforçado por processos de integração vertical, intersetorialização, infraestruturalização e pela interdependência que dificulta o papel dos reguladores, pois o restrito conjunto dos regulados compõe-se, no final das contas, de “concorrentes coordenados”, formando um oligopólio global altamente concentrado. Ora, os agentes reguladores nacionais de países periféricos, como o Brasil, enfrentarão, nessas condições, mais que dificuldades, um verdadeiro bloqueio, que redunda em grave prejuízo à soberania, na medida em que a infraestruturalização significa, em última instância, que esse setor intermediário, sob o domínio de agentes privados estrangeiros, controla um bem público que deveria, por princípio, do ponto de vista da regulação da concorrência, ser ofertado diretamente pelo Estado ou por empresa incumbente, sujeita a obrigações de serviço público.
Mas essa situação, longe de anômala, é a regra em nível mundial, com uma exceção de grande relevo, como é o caso da China, que acabou por colocar as plataformas digitais no centro de seu vigoroso e bem sucedido projeto nacional de desenvolvimento, como parte de uma estratégia de autonomia tecnológica, que a alçou à condição de principal desafiante do poder econômico e industrial norte-americano. Sem entrar nos detalhes do caso chinês, vale citar apenas que, em 2019-2020, quando as plataformas do país já haviam atingido, em função das políticas de estímulo anteriores, grandes proporções, colocando-se na condição de poderosos concorrentes globais do oligopólio norte-americano, o governo passou a adotar um approach “regulatório”, baseado em três elementos. “Primeiro, o Estado restringiu os serviços financeiros oferecidos pelas plataformas. Depois, fortaleceu sua agência antimonopólios e abriu investigações antitruste em todas as grandes companhias de plataforma por comportamento anticompetitivo. Em terceiro lugar, o Estado ampliou sua supervisão sobre o controle de dados pelas plataformas” [1]. Ou seja, o Estado transitou da política anterior de estímulo e do que podemos chamar negligência benigna para outra de regulação da concorrência, visando evitar não apenas as concentrações de poder de mercado, mas também o potencial desestabilizador das políticas nacionais de desenvolvimento que as plataformas vinham adquirindo, inclusive em relação ao sistema financeiro estatal. Por isso, por exemplo, em março de 2021, o presidente Xi Jinping declarou que “todas as atividades financeiras envolvendo companhias de plataforma ‘devem ser postas sob supervisão financeira’” (idem, citando Zhang, 2021).
Assim, a regulação econômica fica subordinada ao projeto de desenvolvimento e aos interesses nacionais. No Brasil, ao contrário, predomina até agora um enfoque liberal, que aceita a condição monopolista das cinco grandes norte-americanas, concentrando o debate regulatório em torno do conteúdo ou, na melhor das hipóteses, da regulação dos processos de trabalho em empresas como o Uber que, diga-se de passagem, não são mais que capitais estrangeiros que sugam para o exterior uma massa de mais-valia produzida internamente. Isso graças à propriedade de uma plataforma técnica de mediação de serviços que poderia ser facilmente desenvolvida no país, mobilizando a inteligência nacional, pequenas e médias empresas atuantes em nível local, cooperativas, prefeituras etc. O apoio e organização desse tipo de empreendimento e de todo o setor das plataformas nacionais situadas nos ramos da árvore de Van Dijck envolve políticas de regulação, no sentido mais amplo do termo, vinculadas às políticas de ciência, tecnologia e inovação na área das tecnologias da informação e comunicação.
Mas o passo decisivo em direção da autonomia cultural, elemento chave para a superação da dependência, só poderia ocorrer, neste caso, no momento em que a produção nacional, como a chinesa, atingisse o tronco da árvore. É nesse sentido que os responsáveis pela regulação, ao lado dos gestores de ciência e tecnologia, deveriam dirigir sua criatividade sociológica e institucional, mobilizando a cultura política, como a define Furtado, segundo a boa interpretação de Octavio Rodriguez (2009). Trata-se, como deve estar claro, de uma perspectiva de longo alcance – inclusive no que se refere à segurança nacional, à defesa contra as chamadas guerras híbridas e outros temas que têm animado o debate político brasileiro nos últimos anos – que deveria estar subordinada a um projeto nacional que a burguesia brasileira não parece ter a capacidade (ou o interesse) de liderar.
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[1] - Na versão original: “First, the government curbed financial services provided by the platforms. Second, the government strengthened its antimonopoly agency and opened antitrust investigations into all the major platform companies for uncompetitive behavior. Third, the government increased its oversight of the platforms’ control over data”.
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Regulação de plataformas para um projeto nacional de desenvolvimento. Artigo de César Bolaño - Instituto Humanitas Unisinos - IHU