Para interromper as descosturas socioambientais e minar as fontes do fascismo territorial na Amazônia. Artigo de Luis Fernando Novoa Garzon, Paula Stolerman Araújo, Maíra Silva Ribeiro e Daniele Severo da Silva

Área de queimada próxima ao rio Rio Branco na Reserva Extrativista Jaci-Paraná, em Porto Velho (RO) | Foto: Christian Braga / Greenpeace

22 Dezembro 2022

O que está em questão hoje, na Amazônia, e particularmente em Rondônia, é a criação paraestatal e paramilitar de dispositivos perpetradores de genocídios e de ecocídios continuados. Não se trata aqui de eventos isolados, mas de um método que reorganiza os processos produtivos sob impulso da máxima rentabilização, apelando para a sintetização de povos e territórios na forma de custos e riscos financeiros.

O artigo é de Luis Fernando Novoa Garzon, professor da Universidade Federal de Rondônia (UNIR), vinculado ao Departamento de Ciências Sociais, tem formação na área de Ciência Política (UNICAMP), é doutor em Planejamento Urbano e Regional pelo IPPUR-UFRJ e coordena o Grupo de Pesquisa “Territorialidades e Imaginários na Amazônia” na UNIR

Eis o artigo.

O que está em questão hoje, na Amazônia, e particularmente em Rondônia, é a criação paraestatal e paramilitar de dispositivos perpetradores de genocídios e de ecocídios continuados. Não se trata aqui de eventos isolados, mas de um método que reorganiza os processos produtivos sob impulso da máxima rentabilização, apelando para a sintetização de povos e territórios na forma de custos e riscos financeiros.

Uma agenda comum, neste cenário, pressupõe desarmar verdadeiras "bombas” instaladas na Amazônia, como o sinal verde para o garimpo e a mineração nas terras indígenas, a regularização de grandes áreas griladas, desembocando no incremento de assassinatos e perseguições de lideranças indígenas, extrativistas e camponesas. Ressalta-se que não pode haver agenda de direitos sem que se garanta a proteção e o respeito aos defensores ambientais de direitos. Cada liderança que tomba, leva consigo acordos organizativos e afetivos, leva consigo um poder social que insurgia em seu corpo rebelado. Os defensores de direitos na Amazônia cumprem uma missão civilizatória ao propor espaços de consulta, participação e também de recusa, registrando violações e cuidando das futuras reparações.

Para incidir no cenário de retomada dos marcos ambientais constitucionais, mais ainda na macrozona de espoliação intensiva batizada como AMACRO (Amazonas. Acre e Rondônia), é fundamental que os povos da floresta e movimentos sociais do campo e da cidade possam construir (e encarnar) um projeto para defender e potencializar a sociodiversidade amazônica – nos seus termos. Consequentemente deve haver centralidade para uma política cultural que promova e faça circular os inesgotáveis imaginários amazônicos, combatendo diuturnamente o racismo e a depreciação das cosmovisões dos povos da floresta.

Do ponto de vista do financiamento, assim como há Fundos voltados prioritariamente para a conservação florestal, como o Fundo Amazônia, deveria haver, com ou sem doações internacionais, um Fundo Socioecológico da Amazônia para gerar espaços de capacitação e de representação interescalar nos territórios de povos e comunidades mais ameaçados. Para reverter as seguidas violações de direitos e os assassinatos e intimidações, é preciso ainda uma intervenção interfederativa e interministerial, com participação da sociedade civil, nos territórios sob ataque mais intensivo das forças empresariais e criminosas conjugadas. Para tanto, novas pactuações são necessárias para abrir espaços de tensionamento e proposição seja em Fóruns Sociais como o FOSPA, Consultas Populares, Tribunais mistos para exigir reparações, Conferências paritárias com poder deliberativo, entre outros espaços.

Ao mesmo tempo, será premissa desta dita “normalização institucional” o fortalecimento prioritário dos órgãos de controle, fiscalização e combate ao crime ambiental e à violação dos direitos humanos que atuam em Rondônia, Amazonas e Acre. Sem o destacamento e o planejamento continuado de operações conjuntas entre Ministério Público Federal e os Ministérios Públicos Estaduais, a Defensoria Pública da União e as Defensorias Públicas Estaduais, as Superintendências do IBAMA e do ICMBIO e a Polícia Federal não será possível investigar e desbaratar quadrilhas em que se mesclam mineração, agronegócio, grilagem, pistolagem e o crime organizado na região.

A identificação e o mapeamento dos territórios e conjuntos de territórios sob ataque mais intensivo é um desdobramento e ao mesmo tempo premissa deste resgate da governança socioterritorial da Amazônia. Será imprescindível atuação interministerial e interinstitucional para realizar operações conjuntas para interromper as descosturas socioambientais que envolvem mosaicos de terras protegidas que estejam sob maior cerco e pressão.

Em Rondônia, um laboratório avançado do agrofascismo, deve ser prioritária a atuação reparadora de direitos em diversos recortes e perímetros. Como poderá ser conferido nos mapeamentos apresentados nas seções seguintes, destacamos alguns dos principais eixos de devastação que estão atravessando o estado, com transbordamentos para o sudeste do Acre, o sul do Amazonas e o norte do Mato Grosso.

Territórios em agonia: o que reverter, como e por onde

A aliança entre grandes grupos econômicos especializados na extração de commodities e os aparatos governamentais, na esfera nacional e subnacional, tem garantido um inédito fluxo de medidas legislativas-governamentais que franqueiam a exploração compulsória de recursos naturais na região amazônica. No caso do estado de Rondônia, as ofensivas concentram-se sobre o que sobrou de Amazônia em um dos estados que mais devastaram esse bioma, e que mais brutalmente perseguiu e acuou os povos originários. O eixo de expansão da BR 364 fez de Rondônia uma extensão longitudinal do Mato Grosso, com fronteiras econômicas em movimento expansivo combinado: atividade madeireira, desmatamento, pecuária extensiva e monocultura da soja. Este eixo de devastação prossegue em expansão no norte de Rondônia e se ramificou aceleradamente a partir de 2018.

No mapa que segue, buscamos sequenciar temporalmente o avanço do desmatamento no Estado de Rondônia em três períodos: de 1988 a 2007 em cor cinza, de 2007 a 2018 em cor vermelha e de 2018 a 2020 em cor rosa. O desmatamento consolidado até 2007 procura delinear o arco do desmatamento nessa região até o início da instalação e implementação dos grandes projetos do PAC – Programa de Aceleração de Crescimento. A marcação em vermelho demonstra como se alarga o eixo de devastação vertebrado pela BR 364 em direção à fronteira com a Bolívia por meio da ramificação das rodovias 425, 420 e 421. Fica nítido como os empreendimentos hidrelétricos de Jirau e Santo Antônio, e seus alongados reservatórios, potencializaram ainda mais esse novo raio do arco do desmatamento. Em rosa, destacam-se as mais recentes áreas incorporadas sob a égide da discursividade bolsonarista do “vale-tudo” na Amazônia. Na porção norte de Rondônia, observa-se como o novo arco de desmatamento expande-se a partir de três focos: 1) a partir do distrito de Abunã, seguindo a BR 364, sentido Rio Branco no Acre; 2) ao longo da bacia do rio Machado (que deságua no rio Madeira) até o distrito de Demarcação, refletindo expectativas da construção da hidrelétrica de Tabajara e da instalação de novos terminais graneleiros na hidrovia Madeira-Amazonas; e 3) no entorno das rodovias 420 e 421 e intensificam-se processos de invasão e desintegração de Territórios Indígenas e Unidades de Conservação, particularmente a TI Karipuna, o Parque Estadual Guajará-Mirim e a Reserva Extrativista de Jaci-Paraná, que são objeto de nossa análise mais detalhada, a seguir.

Mapa 01: Conjunto de ameaças ao corredor de conservação – Rondônia

Mapa 01: Conjunto de ameaças ao corredor de conservação – Rondônia | Fonte: NOVOA GARZON; SILVA (CLACSO, 2020)

A coalizão de poder vigente nas últimas décadas no Brasil, e particularmente no Estado de Rondônia, se reproduz e se alimenta na extensividade e na itinerância da sua elástica fronteira de acumulação. O modo predominante de realização de valor aqui se caracteriza por uma sequência calculada de ofensivas ao setor público, a bens ambientais de interesse difuso e às territorialidades tradicionais, demarcando ausências e presenças, definindo reconhecimentos e responsabilidades condicionados a fidelizações de currais eleitorais e a patamares máximos de retorno e segurança dos investimentos privados.

RESEX Jaci-Paraná: devastação anunciada e consentida

O conceito de Reserva Extrativista (RESEX) surgiu no âmbito de muitas lutas, conflitos e reivindicações por parte de segmentos populacionais que migraram para a Amazônia a partir do final do século XIX, em contato, conflito e intercâmbio com os povos originários, o que fez surgir formas sociais e modos de vida específicos. Um marco histórico para a criação destes espaços destinados à população que dependia do cultivo associado a extração de materiais florestais como a borracha e a castanha foi o 1º Encontro Nacional dos Seringueiros, ocorrido em 1985.

Era a resposta desenhada para impedir o avanço de grilagens, desmatamento e especulação fundiária, que ameaçava a permanência destas populações em seus locais de co-criação e autonomia. O movimento social dos seringueiros trouxe à tona a necessidade de fazer uma “reforma agrária amazônica” em que os recursos florestais fossem compartilhados; daí a ideia de manter-se o usufruto sem a posse individual para que assim fosse evitada a venda de lotes e a concentração fundiária. Este ideário faz parte da formulação de Chico Mendes em torno das Reservas Extrativistas: territorialidades camponesas extrativistas espelhadas nas territorialidades indígenas convergindo para uma aliança dos povos da floresta.

A desenvoltura de Chico Mendes enquanto liderança dos trabalhadores do seringal e dos povos infelizmente não impediu seu assassinato em 1988. Mas a luta prosseguiu embalada em sua memória e dezenas de Reservas Extrativistas foram demarcadas em seringais e demais áreas de coleta extrativista na Amazônia. Em Rondônia o movimento socioambiental em aliança com a Organização de Seringueiros de Rondônia, ambos representados pelo GTA- Grupo de Trabalho Amazônico propôs a criação de 40 Unidades de Conservação no Estado, entre estas se inserem a RESEX do Jaci Paraná e o Parque Estadual Guajará-Mirim.

A problemática da RESEX Jaci-Paraná é, em certa medida, herdeira dos conflitos por terra e da incapacidade dos governos de atuarem de promoverem uma efetiva reforma agrária, considerando as especificidades da região amazônica. Antes da demarcação da RESEX já existiam algumas propriedades e se intencionava direcionar parte da área para a implantação de projetos de assentamento do INCRA, evidenciando uma descontinuidade entre ações de instituições estaduais que deveriam trabalhar em efetiva colaboração para o devido direcionamento das terras públicas.

Difícil não se chocar ao comparar as imagens de satélite da RESEX quando estava plena em sua formação no ano de 1996, e as mais recentes convertida quase praticamente em pastagem e capoeira. Nem mesmo as matas ciliares do rio Jaci e de sua rede de igarapés foi mantida, em função da expulsão dos seringueiros pelos grileiros. A Reserva Extrativista Jaci-Paraná é uma das Unidades de Conservação na Amazônia que mais perderam cobertura florestal na última década. Imagens obtidas, retratadas no mapa que segue, apontam para uma perda de mais de 80% da cobertura original, inviabilizando seus usos sociais e culturais.

Invasões, grilagem e um Estado que trabalha para a normalização da conversão da floresta em pasto, mediante conluios com interesses privados, sufocam aceleradamente a vida de seringueiros e extrativistas tradicionais. O programa de manejo desta Terra Protegida nunca foi efetivamente realizado. Enquanto faltava empenho dos agentes públicos competentes e pessoal da SEDAM para fiscalização, sobravam denúncias da sociedade civil organizada para que fossem retirados os grileiros. O que se viu foi a boiada passando e ficando.

É importante evidenciar que as ações que levaram a substituição de floresta por gado dentro da RESEX Jaci-Paraná não ocorrem de forma isolada, mas representam e ilustram as investidas vitoriosas de agentes do poder público, parlamentares, empresários e redes criminosas que lucram a grilagem, a lavagem de dinheiro e com a expansão do gado nessas áreas formalmente protegidas. A promotora, atualmente aposentada e alvo de seguidas ameaças à sua vida, Aidee Torquato, atestou que a IDARON (Instituto/Agência de Defesa Sanitária Agrosilvopastoril do Estado de Rondônia) sempre procurou dificultar o acesso aos dados acerca do rebanho eventualmente proveniente da área da RESEX, entendendo que essa documentação se tornara inacessível e sigilosa “de fato”, ainda que não “de direito”. O IDARON não poderia autorizar vacinação de gado oriundo de áreas protegidas, mas parece não haver, na esfera estadual, quem possa enquadrá-lo legalmente.

A ausência deliberada do Estado por si já corresponde ao aceno positivo para a invasão das reservas e a desafetação. O que nos chega, sempre em caráter de denúncia e acompanhado de garantia de não divulgação das fontes de informação, é que autoridades estaduais, de diversas esferas, prefeitos, ex-governadores, senadores, vereadores, juízes e outras figuras de vulto público, usufruem de extensas porções dentro da Reserva Extrativista, contando para tanto com o anonimato garantido pela relação com “laranjas”, que reivindicam as posses destas terras.

Nas audiências públicas que visaram “debater” com a sociedade a proposta de redução da RESEX foram ouvidos representantes do movimento socioambiental que se posicionaram veementemente contra a redução proposta. Já os representantes de produtores rurais apenas contam que seus lotes sejam regulamentados, pois é notório que a maior parte da RESEX já está usurpada por grandes propriedades. Sequer os posseiros iniciais vivem ali, sendo o gado manejado por terceiros. Certamente pistas de pouso de aviões, que lá passaram a abundar, não são benfeitorias características de pequenas propriedades rurais.

O território legalmente protegido que deveria estar garantindo um bem público, alé de interesses difusos e de longo prazo, fica refém da política acionada para lucros imediatos, com a manutenção de garantias de famílias que se perpetuam no poder por manobras clientelísticas, pois desde a criação da RESEX, as áreas de manejo comum da floresta foram gradativamente colocadas a baixo por uma rede bem articulada de produtores de gado e grandes frigoríficos.

A colaboração da IDARON ocorre na medida em que permite a vacinação e regulariza o gado proveniente da reserva com as Guias de Trânsito Animal (GTA), o que garante o transporte dos animais para os abatedouros ou demais destinos. Estes animais ficam autorizados com indicação de que sua origem fica fora da circunscrição da área da RESEX mas efetivamente a criação é feita em seu interior. Também há relatos de que os técnicos da agência vacinam o gado dentro da RESEX, o que indica conivência e conluio criminoso. Por ser uma mercadoria voltada para exportação, na forma de carcaça congelada ou de gado vivo, prioriza-se a vacinação de todo o rebanho no estado de Rondônia, não havendo qualquer tipo de ressalva ou veto quanto à origem desses animais.

A devastação quase completa da área aumentou de 60% em 2018 para aproximadamente 80% na RESEX, em 2020. O processo de devastação em uma unidade de conservação não é um processo de simples compreensão e temos que pensar em múltiplos agentes, fatores e redes de poder que perpassam relações que vão desde pequenos agricultores até grandes corporações vinculadas à cadeia da carne.

Após as eleições de 2018, o que era já ocorria passou a ter o apoio do Governo Federal. Passou-se a dificultar mais e mais qualquer tipo de punição aos crimes ambientais e as milícias de Rondônia se sentiram guarnecidas pela milícia que alcançara o poder central. A pressa da Assembleia Legislativa em regulamentar a invasão das terras da RESEX não indica qualquer preocupação com posseiros ou pequenos agricultores, mas sim com a segurança do destino comercial dos rebanhos lá enxertados, e também com o resguardo dos autodeclarados proprietários, incluindo alguns dos próprios ocupantes de cargos de representação pública.

Figura 01: Reserva Extrativista Jaci Paraná

Figura 01: Reserva Extrativista Jaci Paraná | Fonte: Elaboração própria (2022)

A figura acima revela como se deu o processo de inviabilização da RESEX, criada em 1996 e o que se tornou em menos de 11 anos . O resultado final não pode ser prêmio e bônus para grileiros e desmatadores, que ganhariam dessa forma mais motivos para prosseguir pilhando as terras protegidas que restam. Não é cabível fornecer garantias justamente a quem viabilizou as intrusões e sabotou todos os mecanismos de controle disponíveis.

Em um cenário de fortalecimento da governabilidade ambiental no país seria almejável reflorestar e regenerar a RESEX e promover o retorno dos extrativistas que foram expulsos pelos grileiros. A SEDAM deveria multar e exigir dos grileiros que estes pagassem pelos danos sociais e ambientais causados às Reservas Extrativistas e, dessa forma, reiterar a mensagem de que o Governo e a sociedade não mais tolerarão a invasão de áreas protegidas. Faz-se necessário a retomada do debate público acerca do papel das terras protegidas - em meio a processos de incorporação de larga escala - de forma que se vislumbre a destinação de terras, hoje monopolizadas, para a reforma agrária, de modo que se ampliem os assentamentos da agricultura familiar produzindo alimento de qualidade, sem agrotóxicos, com a perspectiva concreta de regeneração ambiental e de reflorestamento com espécies nativas.

A responsabilização dos agentes pelos processos de devastação, que culminaram no desmanche de uma área imensa de florestas, não tem desdobramentos previsíveis. Práticas assimétricas com recursos mandonistas variados, com uso de influência política e econômica, fazem parte desse cenário de incerteza para o conjunto dos envolvidos. Dessa forma, não é pouco pensar que estamos diante de uma situação de exceção permanente em um território de exceção sob controle do agronegócio.

Parque Estadual de Guajará-Mirim: o que se desloca e o que se deslocaliza

A criação do Parque Estadual Guajará Mirim (PES) foi resultante de um processo de luta do movimento socioambiental envolvendo organizações não governamentais (ONGs) e órgãos públicos de Rondônia que discutiram a criação do Corredor Ecológico Binacional Itenez-Mamoré-Guaporé incluindo a criação de várias áreas protegidas nas quais estava inserido o Parque. Infelizmente, os registros sobre a criação do PES ocultam a participação da sociedade civil.

No início da década de 1990, o Decreto Estadual n. 4575/1990 cria o Parque Estadual (PES) de Guajará-Mirim, com área aproximada de 258.813 hectares, localizado nos Municípios de Guajará-Mirim e Nova Mamoré. Contudo, com a Lei Estadual n. 700/1996, que redefine os limites do Parque, a Unidade de Conservação de Proteção Integral passa totalizar 207.148,266 hectares.

Figura 02: Parque Estadual de Guajará-Mirim | Fonte: Elaboração própria (2022)

Os limites do PES de Guajará-Mirim foram alterados novamente, no início da década de 2000, através da Lei Estadual n. 1146/2002. Assim, o Norte do Parque (uma área de 4.906,5825 hectares conhecida como “bico do Parque”) é excluído, e a superfície é ampliada em uma área de 14.325,9920 hectares, totalizando 216.567,6764 hectares. De acordo com esta Lei, na superfície excluída, “excetuada a área que passará a estrada e sua área de servidão” , seria criada uma unidade de conservação e proteção integral.
Sobre a demarcação do Parque Estadual de Guajará-Mirim, em entrevista realizada em 2020, um profissional da Coordenadoria de Unidades de Conservação (CUC) da Secretaria de Estado do Desenvolvimento Ambiental (SEDAM/RO) relatou que, como a Lei Estadual n. 1146/2002 ficou suspensa por um período devido à Ação Civil Pública, a extensão considerada pela CUC sempre incluiu o “bico do Parque”. Porém, com as constantes pressões, resgataram a Lei Estadual n. 1146/2002, e, a fim de atender aos interesses de fazendeiros e sitiantes, reivindicaram que o bico permanecesse fora dos limites da Unidade de Conservação.

Recentemente o Projeto de Lei Complementar de 8 de setembro de 2020 foi aprovado em dois turnos e com emendas na Assembleia Legislativa de Rondônia. No texto original o Parque Estadual de Guajará-Mirim passaria a ter área de 207.148,266 hectares, restabelecendo os limites fundiários previstos na Lei Estadual n.700/1996. Isto porque, segundo a mensagem n.204/2020, deste Projeto de Lei Complementar, enviada pelo Governador Marcos José Rocha dos Santos aos membros da Assembleia Legislativa, a área de 4.906,5825 hectares excluída pela Lei Estadual n.1146/2002 é relevante para fins de preservação e fiscalização ambiental, e a área de 14.325,9920 hectares incluída encontra-se ocupada por diversos grupos sociais.

No entanto, o texto aprovado pelo Parlamento de Rondônia, em abril de 2021, além de barrar a inserção dos 4.906,5825 hectares remove ainda cerca de 40 mil hectares para contemplar a região conhecida como “Terra Roxa”. Para uma representante da Associação de Defesa Etnoambiental Kanindé, instituição responsável pela elaboração do Plano de Manejo do Parque Estadual de Guajará-Mirim, aprovado em 2017, qualquer redução/desafetação requer estudos técnicos que envolvam meio físico, meio biótico e socioeconomia, em conformidade com as legislações vigentes. A proposta de desafetação das Unidades de Conservação descumpre vários pontos da Lei do Zoneamento Sócioeconômico Ecológico de Rondônia, do Sistema Nacional de Unidades de Conservação da Natureza e do Sistema Estadual de Unidades de Conservação. Ademais, o Parque foi criado com recursos de empréstimo do Banco Mundial, sendo a criação e a manutenção das áreas protegidas cláusulas do acordo.

O Parque Estadual de Guajará-Mirim sofre intensa pressão de empresas de grilagem, como se cumprisse papel de estoque de terras para especulação. As entradas não tem por fim apenas a retirada de madeira, mas a consolidação da ocupação da área para desmatar e introduzir gado ilegal a ser legalizado no próximo ciclo de desafetação, convertendo bens públicos em propriedade privada e concentrada. A situação se intensificou ainda mais com a abertura da chamada “Estrada Parque” (conectada a RO-420), no ano de 2014, que vem atendendo aos interesses do agronegócio e do crime organizado e facilita a entrada de invasores dentro da Unidade de Conservação.

A partir dos dados do Projeto PRODES, do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (INPE), é possível visualizar o aumento exponencial do desmatamento no Parque Estadual de Guajará-Mirim e na Terra Indígena Karipuna a partir da abertura da Estrada: a partir de 2014, conforme demonstrado no Gráfico 1.

Gráfico 1: Incrementos de desmatamento acumulado por ano em Unidades de Conservação e Áreas Indígenas localizadas ao norte do Estado de Rondônia (2008 - 2020).

 

Gráfico 1: Incrementos de desmatamento acumulado por ano em Unidades de Conservação e Áreas Indígenas localizadas ao norte do Estado de Rondônia (2008 – 2020) | Fonte: Elaboração própria, 2021 (Adaptado de Terra Brasilis/INPE).

Os limites do PES de Guajará-Mirim foram alterados novamente, no início da década de 2000, através da Lei Estadual n. 1146/2002. Assim, o Norte do Parque (uma área de 4.906,5825 hectares conhecida como “bico do Parque”) é excluído, e a superfície é ampliada em uma área de 14.325,9920 hectares, totalizando 216.567,6764 hectares. De acordo com esta Lei, na superfície excluída, “excetuada a área que passará a estrada e sua área de servidão” , seria criada uma unidade de conservação e proteção integral.

Sobre a demarcação do Parque Estadual de Guajará-Mirim, em entrevista realizada em 2020, um profissional da Coordenadoria de Unidades de Conservação (CUC) da Secretaria de Estado do Desenvolvimento Ambiental (SEDAM/RO) relatou que, como a Lei Estadual n. 1146/2002 ficou suspensa por um período devido à Ação Civil Pública, a extensão considerada pela CUC sempre incluiu o “bico do Parque”. Porém, com as constantes pressões, resgataram a Lei Estadual n. 1146/2002, e, a fim de atender aos interesses de fazendeiros e sitiantes, reivindicaram que o bico permanecesse fora dos limites da Unidade de Conservação.

Recentemente o Projeto de Lei Complementar de 8 de setembro de 2020 foi aprovado em dois turnos e com emendas na Assembleia Legislativa de Rondônia. No texto original o Parque Estadual de Guajará-Mirim passaria a ter área de 207.148,266 hectares, restabelecendo os limites fundiários previstos na Lei Estadual n.700/1996. Isto porque, segundo a mensagem n.204/2020, deste Projeto de Lei Complementar, enviada pelo Governador Marcos José Rocha dos Santos aos membros da Assembleia Legislativa, a área de 4.906,5825 hectares excluída pela Lei Estadual n.1146/2002 é relevante para fins de preservação e fiscalização ambiental, e a área de 14.325,9920 hectares incluída encontra-se ocupada por diversos grupos sociais.

No entanto, o texto aprovado pelo Parlamento de Rondônia, em abril de 2021, além de barrar a inserção dos 4.906,5825 hectares remove ainda cerca de 40 mil hectares para contemplar a região conhecida como “Terra Roxa”. Para uma representante da Associação de Defesa Etnoambiental Kanindé, instituição responsável pela elaboração do Plano de Manejo do Parque Estadual de Guajará-Mirim, aprovado em 2017, qualquer redução/desafetação requer estudos técnicos que envolvam meio físico, meio biótico e socioeconomia, em conformidade com as legislações vigentes. A proposta de desafetação das Unidades de Conservação descumpre vários pontos da Lei do Zoneamento Sócioeconômico Ecológico de Rondônia, do Sistema Nacional de Unidades de Conservação da Natureza e do Sistema Estadual de Unidades de Conservação. Ademais, o Parque foi criado com recursos de empréstimo do Banco Mundial, sendo a criação e a manutenção das áreas protegidas cláusulas do acordo.

O Parque Estadual de Guajará-Mirim sofre intensa pressão de empresas de grilagem, como se cumprisse papel de estoque de terras para especulação. As entradas não tem por fim apenas a retirada de madeira, mas a consolidação da ocupação da área para desmatar e introduzir gado ilegal a ser legalizado no próximo ciclo de desafetação, convertendo bens públicos em propriedade privada e concentrada. A situação se intensificou ainda mais com a abertura da chamada “Estrada Parque” (conectada a RO-420), no ano de 2014, que vem atendendo aos interesses do agronegócio e do crime organizado e facilita a entrada de invasores dentro da Unidade de Conservação.

A partir dos dados do Projeto PRODES, do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (INPE), é possível visualizar o aumento exponencial do desmatamento no Parque Estadual de Guajará-Mirim e na Terra Indígena Karipuna a partir da abertura da Estrada: a partir de 2014, conforme demonstrado no Gráfico 1.


Gráfico 1: Incrementos de desmatamento acumulado por ano em Unidades de Conservação e Áreas Indígenas localizadas ao norte do Estado de Rondônia (2008 - 2020).[5].

Figura 03: Terra indígena Karipuna – Rondônia | Fonte: Elaboração própria (2022)

Em 1994 com o PLANAFLORO – Plano Agropecuário e Florestal de Rondônia, em uma negociação entre FUNAI, INCRA e Governo de Rondônia a Terra Indígena Karipuna perdeu 40 mil hectares o que, segundo esta negociação, serviria para retirar os invasores das terras indígenas Uru-eu-wau-wau (PAD Burareiro) e Mequem para reassentá-los na área Karipuna reduzida. A TI Karipuna foi reduzida e não houve a retirada dos invasores das outras terras indígenas, nem houve reassentamento. Perderam não apenas os karipunas com este truculento precedente.

A Terra Indígena Karipuna foi demarcada com 152.930 hectares em 1997 e homologada pelo Decreto s/nº de 09/09/1998. Esse processo se deu com retalhamentos e reduções prévias. Estas perdas se intensificam com as ameaças e pressões que os Karipuna vêm passando. Podemos detectar ameaças vinculadas à pesca, à caça e à madeira. No que tange a mineração, existem dois processos na região, vinculados à Mineração Silvana Indústria e Comercio Ltda (Minério de Ouro) . A localização do território Karipuna, no meio do eixo de devastação das rodovias 420/421, o deixa ainda mais suscetível de ser tragado pela confluência das estratégias empresariais.

O povo Karipuna, foi primeiramente contactado, segundo relatos do SPI Serviço de Proteção ao Índio em 1940, sem que houvesse maiores informações sobre a presença dos Karipuna na região. Em 1974, a FUNAI cria a Frente de Atração e em 1976 ocorre o contato no Igarapé do Contra, próximo ao Distrito de União Bandeirantes. Segundo os relatos da FUNAI, os Karipuna viviam em 2 malocas grandes, sendo uma no Igarapé do Contra e outra no rio Mutum Paraná. No entanto, essa informação difere dos relatos das lideranças Karipuna, segundo as quais antes do contato o território era composto por 59 aldeias, hoje resta apenas uma.

As pressões foram seguidas e crescentes: grandes empreendimentos do passado e do presente foram sedimentando processos de desterritorialização das terras indígenas de Rondônia por meio de grandes projetos revestidos da ideologia do progresso e desenvolvimento.

A estrada de Ferro Madeira- Mamoré trouxe muito desastre para o nosso povo onde tem poucos relatos sobre isso (...) já matava indígenas porque atrapalhava o desenvolvimento do progresso. (...) Muita doença do vírus, coqueluche, sarampo (...) o vírus no passado e vírus atual, então, muito indígenas morreram no tempo do contato, muitos indígenas morreram durante a ferrovia do diabo, que essa que está escrito da madeira-Mamoré, que os funcionário da empresa mataram muitos indígenas, (...) estupraram as índias (...), morriam eletrocutados (...), são coisas que o meu povo ainda sente muita dores, não é que eu tô apanhando mas emocionalmente, no meu interior, ainda levo chicotadas, ou seja, ainda sinto dores do passado do que tamos vivenciando do futuro. (...). De Karipuna, Adriano [setembro, 2020].

O excerto acima desvela parte das percepções que o povo Karipuna possui em relação aos ataques que historicamente sofreram. O território encontra-se cercado por diversas frentes que atuam contribuindo para o processo de devastação e tomada territorial, os deixando em risco. O grupo que mencionamos expressa de forma explícita suas intenções violentas, para além do desmatamento e queimadas. Desde 2015 tem ocorrido entradas reiteradas no território indígena, gerando instabilidade e insegurança.

Em 2015 foram derrubados (...) o equivalente a dois estádios do Maracanã ou até mais (...). No ano passado (...), o nosso território foi tomado de fogos. Vocês sabem (...), o mundo todo teve os olhos voltados para a Amazônia. (...). O contato foi em 78, em 92 foi a homologação do território. Em 2007 foi se falado em Furnas (...), em 2014 teve aquela alagação imensa (...), os Karipuna até a aldeia foi pro fundo praticamente. (...) Em 2015 começamos a sofre impacto já de grileiro, madeireiro, de garimpeiros. (...) No acampamento terra livre, no abril indígena (...), fizemos essa denúncia e cobramos responsabilidade do poder judiciário e do meio ambiente, (...) Para que protegessem nosso território. (...)”. Idem

Detectamos aqui as confluências dos processos de devastação e como o povo Karipuna percebe as dinâmicas que corroboram para o processo de destruição do seu território. O CAR (Cadastro Ambiental Rural), é um dos documentos exigidos para regularizar a terra, que tem como finalidade contribuir para a regularização da terra, acaba gerando instabilidade em todas as TIs. No caso dos Karipuna, o referido cadastro tem gerado insegurança, é preocupante pois trata-se de área homologada e reconhecida enquanto território que deve ser preservado. Na prática vemos que,

Está liberado no território Karipuna vários lotes de CAR, que é cadastro rural, quem liberou o CAR? (...) não confio mais, é assustador. (...) E tem a madeiras ilegais (...) porque agora tá parado tinha DOF, que é documento que regulamenta que aquela madeira não é ilegal e sim é de uma propriedade provada, né? (...) aí que vem a questão da ameaça (...). Id.Ibid.

Nota-se, um povo que vem tendo os seus direitos violados, sendo pressionado por invasões de madeireiros, garimpeiros, e como podemos constatar, tendo parte de seu território loteado. O CAR – Cadastro Ambiental Rural, que deveria servir como um documento de contribuição para validação dos reais proprietários da terra tem sido utilizado como instrumento de exploração e violação de direitos indígenas, contribuindo para o processo de genocídio da comunidade. Percebemos que as intrusões e ameaças são constantes no território Karipuna, resultam em insegurança permanente do grupo étnico, uma vez que as ameaças chegam por parte dos grileiros, madeireiros, garimpeiros respaldados por validações como CAR e DOF (Documento de Origem Florestal), que chancelam práticas não lícitas dentro dos territórios indígenas.

O território Karipuna está sofrendo pressões de todos os lados, destacando-se a porção Noroeste, que faz divisa com o Distrito de União Bandeirantes e a porção Sul, mais próxima das Unidades de Exclusão do Parque Estadual Guajará Mirim e da Rodovia 421. A cada ano, a terra indígena é aberta de forma ilegal, e vão aumentando de forma gradativa as intrusões. Nos anos 2018 e 2019, a insegurança chegou ao clímax. De acordo com relatos colhidos, não havia mais noite sem medo de chacina. Esse terror manifesto vem erodindo o imaginário dos Karipuna remanescentes. Para um grupo étnico objeto de práticas sistemáticas de extermínio, é preciso considerar como lidar, proteger e se alinhar à condição desses povos resistentes. Mesmo assim, a comunidade se mantém articulada, no sentido intuito de manter seu território e sua memória.

Conclusão

Precisamos contribuir para a construção de uma agenda comum de proteções, salvaguardas e reparações socioambientais, já que as ameaças e violações de direitos ocorrem sistematicamente e em bloco. É necessário identificar em quais coalizões que professam a "defesa da Amazônia" os povos e comunidades tradicionais têm potencial protagônico. Não é cabível falar de defesa da Amazônia sem seus povos. A Amazônia viveu contínuos golpes, especialmente durante a ditadura empresarial-militar, mas que não cessaram, favorecendo oligopólios agropecuários, minerais e de logística. Se por um lado há rejeição geral ao modelo que adota a necropolítica para expandir os negócios, por outro é preciso rejeitar também "soluções verdes" prontas, definidas pelas empresas que apostam em reestruturações tecnológicas “sustentáveis”, conferindo valor ao carbono retido nas florestas ou à biodiversidade contida nelas.

A destruição convencional da natureza por soja, minério e pastos não difere qualitativamente da destruição provocada pela financeirização da natureza. Troca-se tão somente a cesta de produtos a serem exportados, caso não haja o reconhecimento dos direitos territoriais dos povos da floresta e de seu conhecimento tradicional como pilares para qualquer transição social, econômica e ecológica.

Para que seja possível pleitear uma repactuação territorial na Amazônia, é preciso assumir que foi imposta uma guerra assimétrica prolongada por terra, água e território na região. E a pacificação e reparação de tantas violências somadas depende primeiramente da responsabilização dos atores econômicos e políticos que delas se beneficiaram.

Notas

1- A rodovia 421, identificada pela SEDAM, se estende de Ariquemes até as proximidades de Jacinópolis, se fundindo com a rodovia 420.

2- GTGA-UNIR. Seminário “A DesAmazonização de Rondônia e a destruição de Territórios. A situação da RESEX Jaci-Paraná. GTGA- UNIR. Disponível aqui.

3- As áreas de desmatamento destacadas em vermelho correspondem ao período de 2008 a 2017. As áreas de desmatamento destacadas em rosa correspondem ao período de 2018 a 2020.

4- RONDÔNIA. Lei Nº 1146, de 12 de dezembro de 2002. Altera os limites com exclusão e ampliação da superfície do Parque Estadual de Guajará-Mirim, criado pelo Decreto nº 4575, de 23 de março de 1990, e dá outras providências. Assembleia Legislativa do Estado de Rondônia, 12-12-2002.

5- ISA. Povos Indígenas no Brasil - Karipuna de Rondônia. Acesso em 20/10/2020. Disponível aqui.

6- Para mais informações acesse o link.

7- Entrevista concedida ao Grupo de Pesquisa em setembro de 2020.

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