11 Junho 2022
São novos cristãos aqueles que estão combatendo na Ucrânia. É um novo cristianismo aquele que está se produzindo na guerra. Damo-nos conta disso cada vez mais à medida que os olhos se acostumam com a escuridão desta guerra.
O comentário é de Sergio Ventura, jurista italiano, em artigo publicado no caderno La Lettura, do jornal Corriere della Sera, 05-06-2022. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
A transformação, naturalmente, não aparece nitidamente. O cristianismo do futuro se delineia no claro-escuro. Sua luz parece fraca como uma lampadazinha fluorescente recém-ligada. Afinal, os novos cristãos estão sendo feitos enquanto os anfíbios estão afundando na lama, no lodo da urgência e da força maior, enquanto tudo parece antigo e provisório.
Para compreender, o caderno La Lettura dialogou à distância com o metropolita de Kiev, Epifânio, chefe da Igreja Ortodoxa Ucraniana reconhecida há três anos pelo patriarca ecumênico de Constantinopla como independente, “autocéfala” no jargão do direito canônico ortodoxo.
As perguntas e as respostas escritas foram discutidas com Dmytro Vovk, especialista internacional em liberdade religiosa, e traduzidas por ele do inglês ao ucraniano e vice-versa.
Epifânio é o homem na fronteira, um novo cristão por opção e por necessidade, líder dessa Igreja independente, mas vinculada ao destino do povo a partir do qual começa esse novo cristianismo. O metropolita não concorda com a ênfase sobre 2019, o ano do tomos, o documento que reconhece a autocefalia: “Não se deveria começar a partir de 2019, mas pelo menos a partir de 1917, quando a luta pela independência da Igreja na Ucrânia começou imediatamente após a queda dos Romanov”.
A Igreja dos novos cristãos tem sabor de opressão, de luta pela libertação: “O caminho foi longo. A ocupação espiritual de Moscou durou mais de três séculos”. A invasão russa amplifica o senso do caminho, exige um selo divino: “Estamos na nossa casa, estamos construindo a nossa Igreja Ortodoxa Ucraniana autocéfala na terra que nos foi dada por Deus para que cuidemos do nosso rebanho”.
A dúvida de que a virada de 2019 tenha aumentado as tensões se torna uma pergunta. O metropolita não deixa espaço: “A forma como a questão está posta corresponde à falsa narrativa espalhada pela Rússia”. A contraposição ao Patriarcado de Moscou fica ainda mais explícita quando se pergunta o que os ortodoxos poderiam ter feito para evitar a guerra. Se a cúpula da Igreja russa, na terminologia técnica ortodoxa “os hierarcas” “se sentissem parte da Igreja de Cristo e não de um departamento religioso a serviço do Kremlin, se vivessem de acordo com o Evangelho e testemunhassem a verdade, não seriam um instrumento ideológico do poder russo”. A independência em questão não é apenas a das Igrejas, mas também a do Estado.
Se observamos a ele que a união de Estado e Igreja típica dos países ortodoxos parece ainda mais problemática hoje devido à guerra, Epifânio rebate que “nenhuma Igreja pode renunciar às relações com o Estado” e, como ele está dialogando com um jornal italiano, devolve a questão ao remetente: “O centro da Igreja Católica, o Vaticano, é em si mesmo um Estado e constrói relações com outros países como um Estado”.
Depois, ele toma outro caminho: “Nós não temos esse status e não o buscamos”. Para ilustrar “a diferença que importa”, ele recorre mais uma vez ao contraexemplo russo: “A Igreja pode ser uma instituição independente que dialoga com o governo e é leal em relação ao Estado, ou pode ser dependente, subordinada ao governo, parte da máquina de propaganda do regime, como se vê na Rússia, onde a Igreja é um dos tentáculos do polvo agressivo”.
O esquema se repete sobre o patriotismo cristão: “A Igreja não rejeita o patriotismo sadio porque este se baseia na principal virtude cristã: o amor”. No entanto, “o uso do patriotismo, até mesmo cristão, pela Rússia é certamente equivocado, é uma manipulação culpável”, porque “o patriotismo é amor pela pátria, não pela dominação do Estado”. Portanto, devem ser diferentes a relação com o Estado ucraniano, o próprio Estado, a identidade do povo, do Estado e da Igreja como um todo.
Para Epifânio, o problema com a Rússia está “na nossa própria identidade, na nossa própria existência”, não nos tomos de 2019. “Para Putin, a Ucrânia não existe, a nação ucraniana não existe, e, portanto, não podemos ter uma Igreja independente. Além disso, Putin não suporta o sucesso do povo ucraniano, do Estado e da Igreja na construção de um país europeu moderno”.
É assim que funciona o negativo e o positivo sobre a independência entre Igreja e Igreja, sobre a independência da Igreja em relação ao Estado e, ao mesmo tempo, sobre a necessidade do Estado, sobre o patriotismo saudável e sobre uma identidade moderna e europeia. Essas são as palavras-chave dos novos cristãos, sobre os quais Kiev e Moscou são iguais e contrários: ambos zelosos da sua terra e do rebanho correspondente, ambos em lado opostos no mundo, os ucranianos rumo ao espaço liberal “moderno e europeu”, os russos rumo ao espaço conservador pós-moderno e global.
O teste, a última palavra-chave, é a unidade. Epifânio não faz concessões aos ortodoxos ucranianos que permaneceram com o Metropolita Onofre na Igreja Ortodoxa Ucraniana ainda sob Moscou. Onofre quase imediatamente uniu a sua voz à das comunidades religiosas ucranianas ao condenar a invasão e recentemente anunciou medidas destinadas a facilitar as relações. Epifânio é cético: “Não vimos passos significativos para romper os laços institucionais com o Patriarcado de Moscou, nem assistimos a uma verdadeira condenação da posição criminosa de Kirill Gundyaev e de outros hierarcas que abertamente justificam e abençoam a agressão russa contra a Ucrânia”.
A lista de acusações é longa: “Não houve uma condenação da ideologia praticamente fascista do ‘mundo russo’” e, em vez disso, “houve numerosos casos de assistência aos ocupantes por parte do seu clero, enquanto as nossas atividades foram definidas como ‘subversivas’, ‘sabotadoras’ e consideradas ‘uma das razões da invasão militar da Ucrânia’”.
A primeira unidade, aquela entre cristãos ortodoxos, é para Epifânio aquela que faltou antes da invasão e que talvez teria dissuadido Moscou: “Se a ortodoxia ucraniana estivesse unida em torno do trono de Kiev, Putin não teria esperado encontrar apoio na Ucrânia”. Na fase atual, é sobretudo “a unificação dos ortodoxos na Ucrânia” que “certamente acontecerá” e que “já está em curso”.
Antes da invasão, lembra o metropolita, 15% de toda a população ucraniana expressavam confiança na Igreja sob Moscou e 38% na Igreja independente. Em março, a confiança na Igreja de Onofre já havia caído para 4%, enquanto a da sua Igreja chegava a 52%. “As paróquias deixam a jurisdição do Patriarcado de Moscou e se unem a nós”, acrescenta, “afinal, o patriarca ecumênico estabeleceu que na Ucrânia todos os ortodoxos pertencem à única Igreja autocéfala”.
A unidade como objetivo e a unificação como processo são decisivas para os novos cristãos. A liberdade, nessa perspectiva, é a melhor aliada e a pior inimiga, e Epifânio sublinha a sua vontade “de que o processo de unificação ocorra de forma consciente e voluntária”.
O positivo ucraniano e o negativo russo divergem ainda mais sobre a liberdade religiosa. “Os regimes repressivos sempre lutam pelo controle completo de todas as esferas da vida”, explica Epifânio. “O totalitarismo não existe pela metade, então não é de se surpreender que não haja liberdade religiosa na Rússia. Agora não há nenhuma liberdade lá”. Em vez disso, “para nós na Ucrânia o totalitarismo é inatural e totalmente inaceitável, e isso demonstra mais uma vez que somos povos diferentes”.
Da liberdade, voltamos à unidade: “Cristãos, muçulmanos, judeus, pagãos e ateus defendem juntos a sua pátria na Ucrânia”, escreve Epifânio e acrescenta: “Nós nos demos um organismo único: o Conselho Pan-Ucraniano de Igrejas e Organizações Religiosas, que inclui representantes de 90% das comunidades religiosas na Ucrânia”. A unidade dos ortodoxos em uma única Igreja corresponde à unidade dos fiéis em um único conselho, cujas decisões, especifica o metropolita de Kiev, “são tomadas exclusivamente por consenso”.
Independência, patriotismo, identidade, depois unidade e liberdade são o perfil do novo cristianismo mobilizado e militarizado que se forja nas trincheiras. Na frente, o inimigo. Sobre Onofre, Epifânio é seco: “Não temos relações especiais, não nos encontramos com frequência, apenas por ocasião de eventos oficiais do Estado. Até agora, nos oito anos desde a sua entronização, ele evitou todo diálogo e continua fazendo isso”.
O patriarca de Moscou é mencionado apenas pelo nome e sobrenome, Kirill Gundyaev, para lhe negar a dignidade patriarcal. Nas saudações pascais, Epifânio convidou a “plenitude da ortodoxia” a condenar “as suas palavras e as suas ações”, porque “ninguém pode segurar o cálice e o cetro pastoral com mãos ensanguentadas”.
Instado a esse respeito, Epifânio responde que “a primeira condenação que um cristão deveria temer por tais ações, e com mais razão um hierarca da Igreja, é o julgamento de Deus”. O julgamento das Igrejas, no entanto, é necessário: “Qual será a forma e o procedimento, o tempo dirá”.
No entanto, ele lembra que, na segunda metade do século XVII, um sínodo dos patriarcas do Oriente liderado pelo patriarca ecumênico “condenou o patriarca russo Nikon e o despojou da sua dignidade”. Além disso, “o veredito do povo sobre as ações de Kirill Gundyaev já chegou”. As comunidades na Ucrânia deixam Moscou “principalmente devido à posição anticristã do seu líder”.
O inimigo, no entanto, é todo o Patriarcado de Moscou: “Os responsáveis pela ideologia criminosa do ‘mundo russo’ acenderam o fogo da guerra e, com lábios falsos, abençoaram abertamente carnífices e assassinos em nome de Deus e da Igreja”. Portanto, “condenar esses crimes, condenar a transgressão das leis de Deus e do homem não é apenas um direito, mas também um dever moral de cada pessoa, especialmente dos cristãos”.
Para Epifânio, “não se trata mais das sutilezas do direito canônico ou das discussões históricas, mas do bem e do mal como tais e da escolha de cada um: você está com Deus ou com o diabo?”.
Nas destruições, na fuga, nas violências e nos lutos da guerra, na “ferida viva que continua sangrando”, o metropolita vê o retorno “do império do mal”, como o presidente Reagan chamou a União Soviética. Epifânio diz estar geralmente aberto ao diálogo, mas censura os europeus por uma “política de relações com Moscou” que se revelou “um completo fracasso”, porque “criou a ilusão da invencibilidade e da impunidade no agressor russo”.
O julgamento também é severo sobre a Via Sacra do Papa Francisco do dia 15 de abril passado. A enfermeira ucraniana e a estudante de medicina russa que carregaram a cruz juntas, escreve Epifânio, pareciam totalmente despropositadas, pois os russos adotam a narrativa dos “povos irmãos” e “equiparam a vítima e o agressor”.
Os novos cristãos nascidos dos conflitos precisam de ideias claras sobre o inimigo, porque o experimentam mimetizado, infiltrado. No seu trabalho entre as sombras, eles se apoiam na convicção de que Deus age na história. Hoje não pode haver “cooperação” com os russos, especifica Epifânio, mas “a providência de Deus corrige o mal e dirige tudo para o bem”, e quando “a política, a sociedade e o ambiente eclesial mudarem, uma Igreja russa renovada poderá antecipar a arrependimento da Rússia por todos os crimes cometidos, também na Ucrânia”.
Imersos na realidade, presos à eficácia, os novos cristãos vivem de fé. Epifânio confirma que houve “ações perigosas” contra ele, “diversas pessoas foram presas e alguns dispositivos de rastreamento foram encontrados”. Não é o suficiente. “Como cristãos, devemos lembrar as palavras dos salmos”, conclui: “Se o Senhor não protege a cidade, em vão vigia a sentinela”.
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O novo cristianismo da Ucrânia - Instituto Humanitas Unisinos - IHU