06 Junho 2022
“O verdadeiro poder não nasce das urnas, nem está nos parlamentos ou nos governos, mas longe da visibilidade pública, no capital financeiro ultraconcentrado, no 1% invisível que controla os meios de comunicação, as forças armadas e a polícia, governos de qualquer nível e, sobretudo, os grupos narco-paramilitares ilegais que redesenham o mundo”, escreve Raúl Zibechi, jornalista e analista político uruguaio, em artigo publicado por La Jornada, 03-06-2022. A tradução é do Cepat.
Colômbia, Equador e Chile nos mostram processos recentes relativamente semelhantes. Governos da direita neoliberal foram alvos de grandes revoltas populares de longa duração, que abriram brechas na dominação e colocaram em xeque a governabilidade. O sistema político respondeu canalizando a disputa para a arena institucional, com o beneplácito e o entusiasmo da esquerda.
Durante as revoltas, as organizações de base se fortalecem e novas são criadas. No Chile, mais de 200 assembleias territoriais e mais de 500 cozinhas comunitárias surgiram em Santiago quando a pandemia foi declarada. No Equador, cria-se o Parlamento Indígena e dos Movimentos Sociais, com mais de 200 organizações. Na Colômbia, surgem dezenas de pontos de resistência e territórios livres onde os povos criam novas relações entre si.
Os resultados da opção institucional costumam se tornar visíveis algum tempo depois, quando o poder dos levantes começa a se dissipar e quase não restam organizações de base. O Parlamento equatoriano não funciona mais. As assembleias chilenas enfraqueceram em quantidade e participação. O mesmo acontece na Colômbia.
O caso do Chile é o mais dramático, pois todo o poder da revolta foi logo neutralizado com a assinatura de um acordo para uma nova Constituição, embora saibamos que o objetivo final era tirar a população das ruas, porque é a principal ameaça para o domínio das elites econômicas e políticas.
O Chile é o único desses três países em que o processo eleitoral coroou alguém que disse representar a revolta, o atual presidente Gabriel Boric. O que mais se poderia pedir? Um jovem que foi ativo no protesto estudantil e que faz parte da nova esquerda agrupada em torno do Apruebo Dignidad.
É a maior decepção que se possa imaginar, para quem apostava em uma mudança gerida de cima para baixo na garupa dos protestos. Foi Boric quem assinou o pacto com a direita e o centro, com a classe política elitista, para convocar a assembleia constituinte. Foi ele que repetiu várias vezes que as coisas mudariam com seu governo e prometeu desmilitarizar o território mapuche, Wallmapu.
Dois meses depois de assumir a presidência, decidiu estabelecer um estado de exceção naquelas terras. Assim como fez Sebastián Piñera, o presidente da direita odiado por metade do Chile. Assim como fizeram todos os governos anteriores, incluindo, é claro, o regime de Pinochet.
O estado de exceção é dirigido contra o ativismo mapuche que recupera terras e sabota empresas extrativistas que destroem a mãe terra. Dirige-se especialmente contra a Resistência Mapuche Lavkenche (RML), a Coordenação Arauco-Malleco (CAM) e a Libertação Nacional Mapuche (LNM), bem como contra as organizações autônomas de resistência territorial.
A ocupação militar da Araucanía atende ao pedido de caminhoneiros e proprietários de terras. Para Héctor Llaitul, líder da CAM, é a plena expressão da ditadura militar que nós, os mapuches, sempre sofremos; enquanto a RML considera que Boric deixou as novas políticas repressivas nas mãos do Partido Socialista, com o aval do crime organizado.
Vale acrescentar que a área econômica foi entregue a um dos mais destacados defensores do neoliberalismo e da ortodoxia econômica, Mario Marcel. Não haverá mudanças. Apenas maquiagem. A popularidade de Boric despencou: 57% o desaprovam, apenas dois meses depois de assumir o cargo.
O Chile não é a exceção, mas a regra. Algo similar acontece no Equador, embora tenha sido eleito para presidente o direitista Guillermo Lasso. Na Colômbia, infelizmente, o movimento social ficou preso nas urnas ao desorganizar seus próprios territórios urbanos. Algumas reflexões:
Um: a política eleitoral depende muito mais do marketing do que de programas e propostas. Assim como o consumismo é uma mutação antropológica (Pasolini), o marketing eleitoral remodela de cima para baixo os mapas e as condutas políticas.
Dois: o poder, o verdadeiro poder, não nasce das urnas, nem está nos parlamentos ou nos governos, mas longe da visibilidade pública, no capital financeiro ultraconcentrado, no 1% invisível que controla os meios de comunicação, as forças armadas e a polícia, governos de qualquer nível e, sobretudo, os grupos narco-paramilitares ilegais que redesenham o mundo.
Três: os governos eleitos não podem – no caso hipotético de tentarem – tocar os interesses dos verdadeiros poderes e dos poderosos. Eles estão protegidos por vários exércitos, estatais e privados, por um sistema judicial opaco e pela grande mídia.
Quatro: trata-se de tomar outros caminhos, não de insistir naqueles que já sabemos que levam apenas a relegitimar o que já existe e enfraquecer os outros mundos que nascem. Não se trata de disputar o poder deles (nem sua saúde, nem seus meios, nem sua educação), mas de criar o nosso. E defendê-lo.
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A estéril ilusão da mudança de cima para baixo. Artigo de Raúl Zibechi - Instituto Humanitas Unisinos - IHU