13 Janeiro 2022
"Graças à corajosa ousadia de Eny Moreira e numerosos parceiros de sua ideia, no Brasil e no exterior, esse terrível capítulo de nossa história ficou documentado para que o véu sombrio do arbítrio não seja jamais esquecido. 'Brasil – Nunca Mais!'".
O artigo é de Walter Altmann, Pastor emérito da IECLB - Igreja Evangélica de Confissão Luterana no Brasil, professor associado de Faculdades EST, de São Leopoldo, RS, ex-pastor presidente da IECLB e ex-moderador do Comitê Central do CMI – Conselho Mundial de Igrejas. Autor de Lutero e libertação: Releitura de Lutero em perspectiva latino-americana. 2ª ed. revista e ampliada. São Leopoldo: Sinodal, EST, 2016.
Faleceu no dia 4 de janeiro a advogada Eny Raimundo Moreira, notável defensora de presos políticos durante a ditadura militar instaurada pelo golpe de 1964. Frei Betto escreveu um emocionante e contundente texto a partir da perspectiva de quem se encontrava preso. A coragem que aquela jovem advogada demonstrou na visita aos presos de Presidente Venceslau, SP, no Natal de 1972 é algo que precisa ser conhecido pela juventude dos dias de hoje. Frei Betto deixa isto muito claro. No presente texto desejo me reportar a outro aspecto importante, a ligação de Eny Moreira com o CMI – Conselho Mundial de Igrejas, num projeto que haveria de se tornar conhecido pela designação de "Brasil: Nunca Mais".
Ainda nos anos 1970 Eny Moreira, como advogada dedicada à defesa de presos políticos e, assim, sabedora das atrocidades que eram cometidas contra os presos nos porões da ditadura, teve uma ideia audaciosa e, claro, perigosa, tanto para ela mesma quanto para quem à sua ideia aderisse. Conseguindo a disposição de outros advogados de sua confiança no sentido de colaborar com uma ação inédita, esboçou o projeto de copiar os autos dos processos militares contra os presos, em que havia relatos das torturas sofridas, para assim salvaguardar essas cópias no exterior.
Em busca de apoio, ela procurou uma entidade de direitos humanos em Paris. Esta recomendou que ela contatasse o Conselho Mundial de Igrejas – CMI. Ela seguiu então para Genebra, sede do CMI, onde se encontrou com o Secretário Geral do Conselho, Reverendo Dr. Philip Potter (1921-2015), nascido na ilha de Dominica, no Caribe, terceiro secretário geral da entidade e primeiro negro a ocupar o importante cargo, o qual abraçou a causa, condicionando o apoio a uma cobertura ecumênica no Brasil. Esta foi obtida com o coordenador do projeto na pessoa do Reverendo Jaime (Jim) Wright, missionário norte-americano presbiteriano no Brasil, cujo irmão, Paulo Wright, fora deputado estadual em SC e um dos que colaborou na organização dos pescadores naquele estado. Paulo é um dos opositores do regime militar que continua, até hoje, na lista de desaparecidos da ditadura. A segunda figura central desse projeto foi o Cardeal Dom Paulo Evaristo Arns que colocou a Arquidiocese de São Paulo no apoio decisivo ao projeto e local de salvaguarda provisória da documentação.
Assim, os advogados que abraçaram a causa esboçada por Eny Moreira, passaram a consultar os arquivos militares, aos quais tinham acesso como advogados de defesa de presos sendo processados. (Mesmo aquele regime ditatorial pretendia dar auras de processo pretensamente democrático.) Esses advogados pesquisavam durante o dia nos arquivos militares e, ao final do expediente, solicitavam e recebiam autorização para levar arquivos para terminarem a consulta em casa e os retornarem na manhã seguinte. Aí, em secreto, passaram a fotocopiar freneticamente os arquivos durante a noite. Esse esquema foi utilizado por largo tempo, sem que suscitasse desconfiança dos agentes brasileiros. Um verdadeiro milagre!
De tempos em tempos, Charles (Chuck) Harper, presbiteriano, nascido no Brasil, filho de missionários norte-americanos, então encarregado da área dos direitos humanos no CMI, viajava ao Brasil (e a outros países latino-americanos, também sofrendo sob ditaduras militares). Nessas ocasiões trazia consigo os recursos necessários para o suporte financeiro do projeto e obtidos junto a agências protestantes apoiadoras das causas dos direitos humanos. Harper recebia então as cópias já efetuadas, levando-as consigo a Genebra. Por razões mais do que óbvias, tudo teve que ser efetuado no mais estrito sigilo, seja no Brasil, seja no exterior. Por inevitavelmente envolver bom número de pessoas, não ter vazado nada não deixa de ser outro milagre!
Além de numerosos documentos que foram confiados a uma organização especializada em Chicago, nada menos de doze extensos volumes de documentos foram assim resguardados nos arquivos do CMI e serviram de base, para que Frei Betto e o jornalista Ricardo Kotscho redigissem uma seleção, publicada pela Editora Vozes, em 1985, logo após a redemocratização do Brasil, tornando-se de imediato o livro então mais vendido no Brasil.
Em 2011, no contexto de um projeto esboçado pelo procurador regional da república em São Paulo, Marlon Alberto Weichert, e a organização Armazém Memória, de digitalização desse acervo, organizou-se em São Paulo um evento do que ficou caracterizado como "repatriação" dessa documentação. Nessa ocasião, o então secretário geral do CMI, o norueguês Pastor Dr. Olav Fykse Tveit, e eu, nesse período moderador do Comitê Central do CMI, fizemos a entrega de uma cópia desse acervo ao então procurador geral da república, Roberto Gurgel. Registre-se que as cópias originais seguem em Genebra. Para grande decepção minha, nem a presidenta Dilma Roussef, ela própria que fora presa política e torturada, nem qualquer de seus ministros ou ministras, compareceu ao evento. Ainda assim, o evento foi concorrido e teve ampla cobertura da imprensa.
Graças à corajosa ousadia de Eny Moreira e numerosos parceiros de sua ideia, no Brasil e no exterior, esse terrível capítulo de nossa história ficou documentado para que o véu sombrio do arbítrio não seja jamais esquecido. "Brasil – Nunca Mais!"
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Eny Raimundo Moreira e o Conselho Mundial de Igrejas - CMI - Instituto Humanitas Unisinos - IHU