21 Dezembro 2021
O diálogo de Francisco com quatro invisíveis (uma mulher vítima de violência, uma sem-teto, um jovem escoteiro e um detento) transmitido pelo canal italiano Mediaset: “É muito grande o número de mulheres espancadas, abusadas em casa, até pelo marido. O problema para mim é quase satânico”. Ele também definiu a superlotação nas prisões como um “muro desumano”. E sobre o Natal: “Façam festa, deem presentes, mas não se esqueçam de Jesus, é Ele quem vem”.
A reportagem é de Antonio Sanfrancesco, publicada em Famiglia Cristiana, 20-12-2021. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Quatro “invisíveis” frente a frente com o Papa Francisco em Santa Marta. Um diálogo transmitido em horário nobre pelo Canale 5 na noite desse domingo e coordenado pelo vaticanista Fabio Marchese Ragona, no qual o pontífice abordou vários problemas ligados às violências, à pobreza, às consequências da pandemia, à vida dos presos.
Participaram do encontro Giovanna, uma mãe que ficou sem trabalho e com uma vida familiar feita de violência; Maria, uma sem-teto; Maristella, uma escoteira de 18 anos de quem a pandemia tirou a vontade de se alegrar; Pierdonato, um ex-detento em prisão perpétua que cumpriu 25 anos de prisão. É um encontro de sabor quase familiar, simples.
O papa não foge das perguntas, mesmo das incômodas.
A Giovanna, que pergunta como fazer para recuperar a dignidade, o papa, depois de definir como “quase satânico” o problema das violências contra as mulheres, responde: “É humilhante, muito humilhante. É humilhante quando um pai ou uma mãe dá um tapa na cara de uma criança. É muito humilhante, e eu sempre digo: nunca deem um tapa no rosto. Como é possível? A dignidade é o rosto. Essa é a palavra que eu gostaria de retomar, porque, por trás disso, está a sua pergunta: resta dignidade em mim? Qual é a minha dignidade depois de tudo isso, qual é a dignidade das mulheres espancadas, abusadas? Vem à minha mente uma imagem ao entrar na basílica à direita, a Pietà de Nossa Senhora, a Nossa Senhora humilhada diante do filho nu, crucificado, malfeitor aos olhos de todos. Essa é a mãe que o criou, totalmente humilhada. Mas ela não perdeu a dignidade. E olhar para essa imagem em momentos difíceis como o seu, de humilhação e no qual você sente que está perdendo a dignidade, olhar para essa imagem nos dá força... Olhe para Nossa Senhora, permaneça com essa imagem de coragem”.
Francisco diz com muita clareza: “É muito grande o número de mulheres espancadas, abusadas em casa, até mesmo pelo marido. O problema para mim é quase satânico”.
Maria pergunta ao papa por que a sociedade é tão cruel com os pobres. E Francisco responde: “Você fala de crueldade. É isso, essa é a bofetada mais dura da sociedade contra vocês, ignorar o problema alheio... Nós estamos entrando em uma cultura da indiferença, em que tentamos nos afastar dos problemas de verdade, da dor da falta de moradia, da falta de trabalho. Com esta pandemia, os problemas até aumentaram, porque aqueles que oferecem dinheiro em empréstimo estão batendo à porta: os usurários. Um pobre, uma pessoa que tem necessidade cai nas mãos dos usurários e perde tudo, porque eles não perdoam. É crueldade em cima de crueldade. Digo isso para chamar a atenção das pessoas para não serem ingênuas. A usura não é a saída do problema, a usura traz novos problemas para você”.
O papa, então, perguntou à mulher se, quando ela encontra uma pessoa que está pior, vai lhe dar uma mão. E, depois da resposta afirmativa de Maria, acrescentou: “Quando se está na dor, entende-se a profundidade da dor. Tente sempre olhar os problemas de frente, porque haverá alguém que está pior do que você e que precisa do seu olhar, que você o ajude a seguir em frente”.
Mariastella, depois, perguntou como ela pode, na sua idade, ter uma relação com Deus e mantê-la: “No confinamento”, disse o pontífice, “tudo vai à prova, até a relação com Deus... A relação com Deus não é uma coisa linear que sempre vai bem. A relação com Deus tem crises, assim como toda relação de amor em uma família... Tome o Evangelho. No próprio Evangelho é a palavra de Deus que vai lhe organizar mais uma vez. Tenho medo dos pregadores que querem curar a vida em crise com palavras, palavras, palavras. A vida em crise é curada com a proximidade, a compaixão, a ternura. O estilo de Deus. Isso é o Evangelho que lhe dá. Para alguns, pode parecer um pouco estranho, mas se você me dissesse: ‘Padre, irritar-se com Deus é pecado? Dizer: ‘Senhor, não te entendo...’. É um modo de rezar! Muitas vezes, nós nos irritamos com o pai, com a mãe. As crianças se irritam com os pais porque estão pedindo mais atenção. Não tenha medo se você se irritar com Deus, você deve ter a liberdade do filho diante de Deus. Quando você se irrita com o pai e a mãe não é bom, mas você sabe que o pai e a mãe te amam. Você se irrita com Deus porque isto ou aquilo não está certo, mas você sabe que ele te ama e não se assusta, porque Ele é pai e sabe como podemos reagir, nós que somos todas crianças diante de Deus. Você deve ter a coragem de dizer ao Senhor todos os sentimentos que vêm a você. Evangelho nas mãos e coração pacificado”.
Em seguida, a jovem escoteira abordou a questão das consequências da Covid para os jovens, perguntando ao papa como criar uma relação saudável, feita de contato e de experiências. “No confinamento”, disse Francisco, “você sentiu falta do contato com os amigos e as amigas, com a família, porque não podia sair, e talvez a escola não estava funcionando. Nós precisamos do contato, do contato face a face, mas temos uma tentação que é a de nos isolarmos com outros métodos, por exemplo, entrar em contato apenas com o celular, as amizades do celular, a falta de diálogo concreto. Você aprendeu com essa situação que o diálogo concreto não pode ser compensado pelo diálogo online, que existe algo mais.”
Falando do hábito dos jovens de usar o celular de modo sempre compulsivo, Francisco acrescentou: “Se você quiser usar o celular, use-o, mas isso não tira de você o contato com as pessoas, o contato direto, o contato para ir juntos à escola, ir passear, ir tomar um café juntos, um contato real e não virtual. Porque, se deixarmos de lado o contato real, acabaremos nós também líquidos ou gasosos, sem consistência, sempre online, e a pessoa online carece de ternura”.
Depois, dirigindo-se ainda a Giovanna: “A Covid colocou todos nós em crise. Uma forma para sair da crise é se amargurar, e uma amargura muitas vezes é acabar com tudo. O número de suicídios aumentou muito com a crise. Uma saída é dizer: ‘Vou acabar com tudo’, mas que acontece quando não temos mais a força para resistir na crise e transformamos a crise em conflito. A crise é aberta, o conflito lhe fecha”.
Pierdonato pergunta como é possível curar as feridas dos detentos que estão ainda mais sozinhos em tempos de pandemia, e Francisco explicou: “A pandemia faz isso, deixa você sozinho... E ainda o problema da superlotação das prisões: a superlotação é um muro certamente, não é humano! Qualquer condenação por um delito cometido deve ter uma esperança, uma janela. Uma prisão sem janela não está certo, é um muro. Uma cela sem janela não está certo. Uma janela não necessariamente física, uma janela existencial, uma janela espiritual. Poder dizer: ‘Eu sei que vou sair, sei que posso fazer isto ou aquilo’. É por isso que a Igreja é contra a pena de morte, porque, na morte, não há janela, lá não há esperança, fecha-se uma vida. Há esperança do outro lado, mas aqui não há. Por isso, a prisão deve ter uma janela”.
O papa, então, contou a experiência de um preso não crente que trabalhava com madeira. Um visitante o aconselhou a ler o Evangelho. “Ele recebeu o Evangelho, começou a ler alguns pedacinhos. ‘No meu coração, aconteceu uma coisa, caiu aquele muro que eu tinha na minha frente, ele se abriu’. E, como era um bom trabalhador com a madeira, fez isto (o papa mostra a escultura em madeira feita pelo prisioneiro) e me disse: ‘Esta é a minha experiência desde que eu conheci Jesus’. Isso o tornou um preso que viu que, com Jesus, o muro caía e havia uma janela da vida.”
Pierdonato também perguntou se há esperança para quem quer uma mudança. Francisco respondeu com a frase da Bíblia: “A esperança nunca decepciona”. E acrescentou: “Há uma obra de que eu gosto muito, que diz o contrário: na Turandot, diz-se que a esperança sempre decepciona. Em vez disso, eu lhe digo: a esperança nunca decepciona. Há Deus, não em órbita, mas Deus ao seu lado, porque o estilo de Deus é proximidade, compaixão e ternura... Deus está com cada um dos prisioneiros, com qualquer pessoa que passa por dificuldade... Você não disse, mas você saiba no fundo do seu coração que você está perdoado e que você tem aquela esperança que não decepciona... Por isso. posso lhe dizer uma coisa: Deus perdoa sempre, Deus perdoa sempre... A nossa força está na esperança desse Deus próximo, compassivo e terno, terno como uma mãe. Ele mesmo diz isso, e é por isso que você tem essa esperança. Obrigado pelo seu testemunho”.
A Maria, que pergunta o que é possível fazer para que o coração das pessoas se abra aos pobres, Francisco respondeu: “Quando você olha no rosto de um pobre, o seu coração muda, porque você chegou ao ‘sacramento do pobre’ ou, melhor, ‘sacramental’... Porque o olhar de pobre lhe muda. Essa cultura do descarte não é só com os pobres, com as pessoas que passam necessidade: quantas vezes em uma família existe aquela realidade de descartar os velhos, descartar os avós... Quando, automaticamente, em uma certa idade, você procura uma casa de repouso para colocar no depósito – não no repouso, no depósito – o seu velho, os avós, você revela algo de impiedoso... Mandamos para fora aquilo que não nos agrada, e isso também ocorre às vezes desde o início da vida: muitas vezes, vem um filho (e se diz): ‘Não, vamos devolvê-lo, porque é um problema para nós’. E assim a sociedade, quando adoece, começa a descartar os pobres. Mas temos que lutar contra isso”.
Antes da conclusão do diálogo, o papa dirigiu-se diretamente aos telespectadores para desejar os votos de Natal e perguntou: “O que você pensa sobre o Natal? Que eu tenho que sair e comprar isto, aquilo... Tudo bem, mas o que é Natal? É uma árvore? Uma estátua de uma criança com uma mulher e um homem ao lado? Sim, é Jesus, é o nascimento de Jesus. Pare um pouco e pense no Natal como uma mensagem de paz. Eu lhes desejo um Natal com Jesus, um verdadeiro Natal. Isso significa que não podemos comer? Que não podemos fazer festa? Não, façam festa, comam de tudo, mas façam isso com Jesus, isto é, com a paz no coração. E a todos vocês que me ouvem, desejo-lhes um feliz Natal. Façam festa, deem presentes, mas não se esqueçam de Jesus. O Natal é Jesus que vem, Jesus que vem para tocar o seu coração, Jesus que vem para tocar a sua família, que vem para você, para a sua casa, para o seu coração, para a sua vida. É fácil conviver com Jesus, ele é muito respeitoso, mas não se esqueça dele. Feliz e Santo Natal a todos. E rezem por mim!”.
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“A violência contra as mulheres é quase satanismo. Irritar-se com Deus também é um modo de rezar”, afirma o papa - Instituto Humanitas Unisinos - IHU