24 Julho 2021
“Uma forma de entender que a mudança climática é uma crise espiritual é que muitos cristãos compartimentalizam suas relações com Deus de sua relação com o mundo natural. Esse tipo de separação artificial, que pode ser motivada por uma visão distorcida de que o 'sagrado' é diferente do 'secular' ou o 'sobrenatural' do 'natural', leva muitos a excluir uma reflexão espiritual séria sobre a interconexão do 'clamor da terra' e 'clamor dos pobres'”, escreve Daniel P. Horan, franciscano, cátedra Duns Scotus de Espiritualidade na Catholic Theological Union, em Chicago, onde é professor de Teologia Sistemática e Espiritualidade, em artigo publicado por National Catholic Reporter, 21-07-2021. A tradução é de Wagner Fernandes de Azevedo.
Como todas as ameaças individuais e coletivas para a segurança, o claro e presente perigo de uma mudança climática global é, também, tanto uma crise espiritual quanto uma crise existencial.
Até agora, neste verão, o mundo testemunhou uma série de perturbadoras catástrofes relacionadas ao clima que por si só são chocantes, e se consideradas em conjunto deveriam causar medo nos corações e mentes de todos nós.
Incluído nesses terríveis eventos estão as ondas de calor recorde no Pacífico Norte, nos Estados Unidos e Canadá, matando mais de 100 pessoas; os incêndios ainda mais precoces no Oeste dos EUA; secas devastadoras em muitas partes dos EUA, enquanto em outras partes há “chuvas de monções”; e as horríveis enchentes na Alemanha e Bélgica que destruíram comunidades e mataram pelo menos 165 pessoas.
O que é significativo sobre eventos assim não é que – eles estão ligados à mudança climática global, uma vez que esta já foi constatada cientificamente. Mas o que é comum a esses eventos é que dominaram nossas manchetes de jornais nas últimas semanas e que estão afetando muitas das mais prósperas comunidades e nações do mundo.
Os que insistiram em negar a realidade e falsear as afirmações que a mudança climática é real ou que é algum timo de farsa política são os que tem, até agora, vivido dentro de um contexto de luxo e conforto isolados dos severos fatos do mundo de hoje. Enquanto isso, bilhões de pessoas não tiveram o privilégio de tal ignorância intencional, uma vez que os pobres globais têm suportado o fardo do fenômeno climático mais extremo por décadas e continuam a sofrer de uma maneira impensável para os cidadãos do chamado “Primeiro Mundo”.
Em “Laudato Si', sobre o cuidado da Casa Comum”, o Papa Francisco identificou precisamente essa desigualdade global no que diz respeito às consequências das mudanças climáticas:
“As mudanças climáticas são um problema global com graves implicações ambientais, sociais, econômicas, distributivas e políticas, constituindo atualmente um dos principais desafios para a humanidade. Provavelmente os impactos mais sérios recairão, nas próximas décadas, sobre os países em vias de desenvolvimento. Muitos pobres vivem em lugares particularmente afetados por fenômenos relacionados com o aquecimento, e os seus meios de subsistência dependem fortemente das reservas naturais e dos chamados serviços do ecossistema como a agricultura, a pesca e os recursos florestais. Não possuem outras disponibilidades econômicas nem outros recursos que lhes permitam adaptar-se aos impactos climáticos ou enfrentar situações catastróficas, e gozam de reduzido acesso a serviços sociais e de proteção”.
Ele continuou descrevendo o surgimento de uma nova e dolorosa crise humanitária que está inextricavelmente ligada à mudança climática global – o aumento de migrantes ambientais e refugiados. O Papa explica:
“Por exemplo, as mudanças climáticas dão origem a migrações de animais e vegetais que nem sempre conseguem adaptar-se; e isto, por sua vez, afeta os recursos produtivos dos mais pobres, que são forçados também a emigrar com grande incerteza quanto ao futuro da sua vida e dos seus filhos. É trágico o aumento de emigrantes em fuga da miséria agravada pela degradação ambiental, que, não sendo reconhecidos como refugiados nas convenções internacionais, carregam o peso da sua vida abandonada sem qualquer tutela normativa. Infelizmente, verifica-se uma indiferença geral perante estas tragédias, que estão acontecendo agora mesmo em diferentes partes do mundo. A falta de reações diante destes dramas dos nossos irmãos e irmãs é um sinal da perda do sentido de responsabilidade pelos nossos semelhantes, sobre o qual se funda toda a sociedade civil”.
Esta última parte, sobre a indiferença que milhões de homens e mulheres demonstram em relação à mudança climática em geral e suas consequências desastrosas para nossos semelhantes, está no cerne do que estou chamando de crise espiritual. Acredito que o que torna a mudança climática global uma crise espiritual para muitos se reflete em pelo menos três grandes falhas que os cristãos e muitas pessoas de boa vontade demonstram.
O primeiro é o fracasso em reconhecer nossa interconexão inerente. Francisco fala sobre isso em termos da frase “ecologia integral”, que é a ideia de que “tudo está interligado”. Isso se aplica tanto ao mundo não humano quanto ao mundo humano na era da globalização.
O fato de tantas pessoas estarem sofrendo em uma escala que é inimaginável para a maioria dos cidadãos abastados do mundo, e ainda assim pouco ou nada ser feito e a maioria das pessoas não se importar, representa um claro fracasso. Francisco diz em Laudato Si': “É preciso revigorar a consciência de que somos uma única família humana. Não há fronteiras nem barreiras políticas ou sociais que permitam isolar-nos e, por isso mesmo, também não há espaço para a globalização da indiferença”.
Diante de crises humanitárias massivas, as nações ricas estão colocando “fronteiras e barreiras” cada vez maiores para nossos irmãos e irmãs que estão morrendo. O fato de que tantos fiéis que se identificam a si mesmos possam continuar a se considerar cristãos fiéis, ao mesmo tempo que exibem tal indiferença insidiosa, é de fato uma crise espiritual.
A segunda falha decorre dessa indiferença. É a inação individual e coletiva, que inclui o fracasso em abraçar o que o papa chama de “conversão ecológica” necessária para começarmos a ver o mundo de uma nova maneira. A maior parte do mundo rico não consegue sequer reunir a energia necessária para cuidar. E isso é indicativo de uma crise espiritual porque é inerentemente pecaminoso.
Lembro-me do que o teólogo jesuíta James Keenan, do Boston College, disse em seu livro “Moral Wisdom: Lessons and Texts from the Christian Tradition” (“Sabedoria moral: lições e textos da Tradição Cristã”, em tradução livre) sobre a definição central de pecado. Ele escreveu que o pecado é “falhar em amar” nossos irmãos e irmãs.
Ele explica: “Nosso pecado geralmente não está no que fizemos, nem no que não pudemos evitar, nem no que tentamos não fazer. Nosso pecado é geralmente onde você e eu estamos confortáveis, onde não sentimos as necessidades do irmão”.
O pecado, de acordo com Keenan, tem muito a ver com operar de uma posição de força e conforto, o que leva à complacência. No contexto da mudança climática global, não há pessoas mais fortes, confortáveis e complacentes do que os globalmente ricos que só agora parecem estar experimentando os primeiros gostos de nosso fracasso em se preocupar em amar uns aos outros e ao planeta. O pecado exige arrependimento e conversão. O pecado ecológico exige o mesmo, o que é necessário agora mais do que nunca.
A terceira falha é a concepção estrita da maioria das pessoas do que deve ser incluído na oração. O mal da mudança climática global e o sofrimento de muitos não mudará meramente por nossa oração isolada. Mas é importante reconhecer que a oração é chave para conversar e vivência da nossa vocação cristã. Uma forma de entender que a mudança climática é uma crise espiritual é que muitos cristãos compartimentalizam suas relações com Deus de sua relação com o mundo natural.
Esse tipo de separação artificial, que pode ser motivada por uma visão distorcida de que o “sagrado” é diferente do “secular” ou o “sobrenatural” do “natural”, leva muitos a excluir uma reflexão espiritual séria sobre a interconexão do “clamor da terra” e o “clamor dos pobres”.
À medida que as coisas continuam a piorar, vidas humanas e não humanas continuam a ser ameaçadas e mortas, e as decisões devem ser tomadas por indivíduos e comunidades, não podemos ignorar a dimensão espiritual da crise climática em nosso meio. Na verdade, como Francisco nos lembra regularmente, tudo está interligado, e isso inclui não só a vasta comunidade de criação da qual você e eu fazemos parte, mas também inclui o que trazemos para a oração e o que dela flui em termos de ação
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A mudança climática global é também uma crise espiritual. Artigo de Daniel Horan - Instituto Humanitas Unisinos - IHU