22 Julho 2021
Todo assinante de serviços digitais e de telefonia com acesso a informações pessoais deveria estar ciente de que as suas ações não são mais “privadas” – mesmo com os melhores esforços e intenções dos prestadores de serviços.
A reportagem é de Tom Tracy, publicada em Catholic News Service, 21-07-2021. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Essa é a opinião de Brett Robinson, diretor de Comunicações e Estudos de Mídia Católica do McGrath Institute for Church Life, da Universidade de Notre Dame.
Ele conversou com o Catholic News Service à luz dos relatos sobre o escândalo global do spyware de celulares Pegasus, que põe na mira ativistas dos direitos humanos, jornalistas e funcionários do Estado, assim como à luz da renúncia, no dia 20 de julho, do secretário-geral da Conferência dos Bispos dos Estados Unidos (USCCB, na sigla em inglês).
O Mons. Jeffrey D. Burrill renunciou ao seu cargo depois que a USCCB foi contatada pela The Pillar, uma publicação online que cobre a Igreja Católica e fornece notícias e análises, sobre as evidências que a publicação alegou ter “de um padrão de má conduta sexual” por parte do padre.
Em uma longa reportagem postada no dia 20 de julho, a The Pillar disse que coletou informações sobre a suposta má conduta sexual com adultos a partir do uso do celular e do rastreamento de localização do Mons. Burrill.
“O que foi compartilhado conosco não incluía acusações de má conduta com menores. No entanto, a fim de evitar que isso se torne uma distração para as operações e trabalhos da Conferência em curso, o monsenhor renunciou”, disse o arcebispo José H. Gomez, de Los Angeles, presidente da USCCB, em um comunicado.
“A Conferência leva a sério todas as denúncias de má conduta e buscará todas as medidas apropriadas para resolvê-las”, disse o arcebispo.
No caso da empresa israelense de vigilância NSO Group e de seu produto de spyware Pegasus, a ferramenta de vigilância aparentemente licenciada apenas para governos foi usada para se infiltrar em milhares de telefones celulares em todo o mundo, de propriedade de jornalistas, ativistas, políticos, especialistas em saúde pública, executivos e diplomatas.
Uma investigação sobre o Pegasus por parte de um consórcio de mídia global, incluindo o The Washington Post, relatou recentemente que a ferramenta Pegasus pode infectar celulares a fim de recuperar e-mails, registros de chamadas telefônicas, postagens em mídias sociais, senhas de usuários, informações de contato, fotos, vídeos, áudios e histórico de navegação.
Tudo isso supostamente pode acontecer sem que o usuário toque no telefone ou saiba que recebeu uma mensagem hostil.
Embora o produto fosse destinado a agências de segurança governamentais para impedir o terrorismo, ele pode ter sido amplamente usado para fins privados e políticos, levantando profundas questões éticas sobre meios ilegais ou mesmo legais de coleta invasiva de informações.
“Pessoalmente, eu não tenho celular por causa disso”, disse Robinson ao CNS.
“A única forma de garantir a privacidade nessas questões é se abster de fornecer as próprias informações em troca de um serviço digital, seja de um aplicativo de entrega de supermercado, de um aplicativo de banco ou... de um aplicativo de namoro”, disse ele.
Robinson supervisiona os esforços de divulgação do instituto, enquanto realiza pesquisas na interseção entre religião, tecnologia e cultura.
Ele também é o autor de “Appletopia: Media Technology and the Religious Imagination of Steve Jobs” [Appletopia: tecnologia de mídia e a imaginação religiosa de Steve Jobs] e ministrou cursos de Estudos de Mídia na Duquesne University, na University of Georgia, no St. Vincent College e na Universidade de Notre Dame. Ele citou o exemplo da crescente espionagem estatal da China que está sendo usada sobre os seus próprios cidadãos.
“Você pode ver as formas pelas quais os dados de vigilância se tornam um estilo de vida para os cidadãos, uma vez que eles determinam a sua aptidão para o emprego e para o acesso aos serviços públicos”, disse Robinson.
“Esse modelo também está se tornando cada vez mais comum em outros países e seria ingênuo para qualquer um, especialmente para os padres, achar que o seu perfil digital está fora dos limites de terceiros – isso fica claro nos termos e condições de muitos provedores de serviços digitais”, observou ele.
“Presume-se que o acesso de terceiros seja limitado aos anunciantes, mas seria uma suposição ingênua”, acrescentou Robinson, observando que a legislação estadual da Califórnia e da Virgínia está sendo modelada para espelhar as leis de privacidade mais rígidas da Europa, com o seu Regulamento Geral sobre a Proteção de Dados ou GDPR.
Agora seria o momento para os reguladores agirem na proteção dos dados dos usuários e para limitar o alcance dos fornecedores de tecnologia, disse ele, mas é mais difícil de fazer isso em nível federal, porque exigiria que os legisladores assumissem uma posição política tênue que afastaria as grandes empresas de tecnologia que fornecem muito suporte material a políticos e agências governamentais.
“A quantidade de dados de usuários coletados por grandes empresas de tecnologia as coloca na posição de se tornarem um quase-governo que trabalha em conjunto com o Estado administrativo. Talvez sejam necessárias soluções mais radicais, semelhantes à proposta pelo pioneiro da internet Tim Berners-Lee, que defendeu que os usuários sejam proprietários dos seus próprios dados”, disse Robinson.
No caso do Mons. Burrill, acredita-se que o seu paradeiro e o uso de aplicativos de celular foram rastreados por um serviço de análise de dados de terceiros, disponível comercialmente, que identifica a localização do seu serviço de celular.
É um serviço legal, mas não muito conhecido, que o The New York Times detalhou em uma reportagem investigativa de 2019, que rastreou com precisão os movimentos de um celular associado ao então presidente Donald Trump na Flórida e em outros lugares, para ilustrar as capacidades de tais serviços.
A The Pillar, cofundada por J. D. Flynn e Ed Condon, alegou ter “encontrado evidências de que o padre estava envolvido em má conduta sexual em série, enquanto ocupava um papel crucial de supervisão na resposta da Igreja Católica à recente onda de abusos sexuais e escândalos de má conduta”.
“Uma análise dos sinais de dados de aplicativos correlacionados ao dispositivo móvel de Burrill mostra que o padre também visitou bares gays e residências privadas, enquanto usava um aplicativo de conexão baseado em localização, em várias cidades de 2018 a 2020, mesmo enquanto viajava em missão em nome da Conferência Episcopal dos EUA”, afirma a reportagem.
Os dados de sinal de aplicativo disponíveis comercialmente, disse a The Pillar, “não identificam os nomes dos usuários dos aplicativos, mas, em vez disso, correlaciona um identificador numérico único a cada dispositivo móvel que esteja usando aplicativos específicos”.
“Os dados de sinal, coletados por aplicativos depois que os usuários consentem com a coleta de dados, são agregados e vendidos por fornecedores de dados. Eles podem ser analisados para fornecer dados de localização com registro de data e hora e informações de uso para cada dispositivo numerado”, acrescentou.
Steven P. Millies, professor de Teologia Pública e diretor do Centro Bernardin da União Teológica Católica, em Chicago, escreveu um artigo crítico à reportagem da The Pillar sobre o Mons. Burrill, afirmando que, independentemente do que possa ser dito sobre a prática do catolicismo por parte do padre, os investigadores da The Pillar prestaram pouca atenção nos cânones da ética jornalística.
“Como eles conseguiram essa história? O Código de Ética da Sociedade de Jornalistas Profissionais dos Estados Unidos incentiva os jornalistas a ‘evitarem o uso de disfarces ou outros métodos sub-reptícios de coleta de informações’ e adverte que ‘a busca de notícias não é uma licença para (...) a intromissão indevida’”, escreveu Millies.
“Não tenho certeza em que os investigadores da The Pillar acreditam. Tenho a confortável certeza de que, antes de embarcarem em sua ‘investigação’, eles não devem ter pensado no Código de Direito Canônico, que afirma: ‘Ninguém tem o direito de lesar ilegitimamente a boa fama de que outrem goza, nem de violar o direito de cada pessoa a defender a própria intimidade’ [can. 220].”
Daniella Zsupan-Jerome, diretora de Formação Ministerial da St. John’s University School of Theology and Seminary, em Collegeville, Minnesota, disse que a crescente vigilância e o uso de tecnologias de rastreamento não produzirão homens justos e aptos para o ministério, mas, ao invés disso, contribuirão para uma cultura da suspeita e para a perpetuação da falta de confiança na Igreja Católica.
“Por que não investir em processos de formação que insistam em uma cultura da honestidade, da transparência e da integridade de caráter?”, perguntou, acrescentando que, se e quando forem constatadas as falhas morais das lideranças religiosas, é necessário criar espaço para o debate entre os fiéis.
“Infelizmente, muitos de nós já tivemos a experiência de descobrir informações escandalosas sobre um padre ou uma liderança pastoral. É uma experiência chocante, muitas vezes associada a uma sensação de traição, tristeza, luto, raiva, nojo e até mesmo desespero”, disse ela.
“As comunidades que experimentam isso precisam de espaços para conversar, compartilhar honestamente e se reunir para lamentar e chorar pela perda de confiança.”
Além do caso de um padre que supostamente falhou em seus votos presbiterais, os cidadãos comuns que desejam um mínimo de privacidade devem aceitar o fato de que agora isso é impossível, ou devem simplesmente desistir de seus smartphones por uma tecnologia mais simples? Eles devem esperar melhores reformas em torno da privacidade por parte dos legisladores?
“Se alguém deseja a conveniência e o acesso que os celulares permitem, algum nível de invasão da privacidade pode ser tolerável”, disse Robinson, da Universidade de Notre Dame. Os consumidores foram condicionados a “classificar” tudo, desde hotéis e restaurantes até produtos na Amazon, observou ele.
A ideia de que esse sistema de classificação também se aplica a seres humanos pode não parecer mais tão estranha para muitas pessoas, afirmou ele, acrescentando que, de forma mais ampla, a sociedade está testemunhando os espasmos culturais que vêm com qualquer mudança sísmica no ambiente midiático.
Ler livros era uma experiência privada, mas, com o advento do rádio, da TV e do cinema, a ideia de que a nossa privacidade poderia ficar comprometida por sermos assistidos ou ouvidos eletronicamente se tornou mais comum, disse ele.
E os reality shows mostraram que ser assistido pode ser uma forma de entretenimento agradável.
“A internet amplificou essa realidade, e agora existem milhões de pessoas que transmitem voluntariamente os seus momentos mais íntimos para um público invisível. O fato de que isso se tornou lucrativo significa que isso não vai desaparecer tão cedo. A internet é uma ‘televisão transformada em arma’, de modo que haverá danos colaterais”, disse Robinson.
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Casos de hackeamento e rastreamento de celulares expõem a crescente perda de privacidade. Também na Igreja - Instituto Humanitas Unisinos - IHU