20 Julho 2021
"A necessidade de uma reconciliação litúrgica, fortemente introduzida pelo Concílio Vaticano II na consciência e no corpo eclesial, deve abandonar a estratégia do 'estado de exceção', que tem caracterizado a Igreja desde 2007 até hoje, e deve trilhar e retomar o percurso de uma única forma ritual, que assume plenamente todas as linguagens da celebração. Precisamente este caminho resulta claramente descortinado pelo MP Traditionis custodes, bem como pelas palavras claras com que a Carta aos Bispos do Papa Francisco especifica as suas intenções e motivações, para superar toda tentação de 'anarquia de cima' e restaurar a experiência litúrgica para a riqueza de sua tradição, comum e popular, como desejado pelo Concílio Vaticano II", escreve Andrea Grillo, teólogo italiano e professor do Pontifício Ateneu Santo Anselmo, em artigo publicado por Come Se Non, 19-07-2021. A tradução é de Luisa Rabolini.
Com uma definição fulminante, 14 anos atrás Gianfranco Zizola havia percebido com singular lucidez o efeito que o SP teria produzido no corpo eclesial: "anarquia de cima". Quando uma instituição absolutiza a relação subjetiva com o "sagrado", situando-a fora da história, acaba por desagregar a si mesma. Não é difícil identificar o "princípio sistemático" desta decisão: aparece claramente não no MP de 2007, mas na "carta aos bispos" que o acompanhava. Estava escrito: "Aquilo que para as gerações anteriores era sagrado, permanece sagrado e grande também para nós, e não pode ser de improviso totalmente proibido ou mesmo prejudicial".
Gostaria de tentar esclarecer a fragilidade sistemática desse princípio, que alguns hoje ressaltam para criticar a sábia decisão com que o Papa Francisco pôs fim a esta tendência anárquica.
Prossigo em três etapas: esclareço brevemente a história, ilustro alguns efeitos "imprevistos" e tiro algumas conclusões sistemáticas em perspectiva.
Resumo por pontos o essencial desta história recente:
a) O Papa João XXIII, em 1960, avaliando o que fazer, hesitou: tinha que implementar as reformas que Pio XII já havia preparado, ou devia aguardar o desenrolar do Concílio, que ele já havia convocado? Decidiu proceder à revisão do Missal tridentino, mas de forma provisória. O Concílio teria fixado os altiora principia com base nos quais a reforma seria realizada. E assim nasceu o texto provisório do Missal Romano de 1962.
b) O Concílio, nos n. 47-58 da Sacrosanctum concilium, estabelece explicitamente as linhas fundamentais da reforma da ordo missae, que será realizada e aprovada em 1969. E por isso, pede para modificar profundamente, para integrar amplamente, para implementar e enriquecer estruturalmente o rito de 1962.
c) Paulo VI, na entrada em vigor no novus ordo, reitera o que o seu antecessor e o Concílio haviam dito: o novo texto substitui o anterior, pelos limites rituais, teológicos, pastorais e espirituais do texto anterior.
d) Em 2007, com o motu proprio Summorum Pontificum, Bento XVI tenta favorecer a "reconciliação" na Igreja e concede um uso mais amplo do "Missal de 1962", construindo uma hipótese sistematicamente bastante questionável e argumentada com o sofisma da "covigência" de um rito ordinário e de um rito extraordinário. Como disse o cardeal Camillo Ruini na publicação do Summorum Pontificum: “Esperamos que um gesto de reconciliação não se torne um princípio de divisão”[1].
e) Nos últimos catorze anos, a presença oficial de uma "forma extraordinária", com a sua equívoca oficialidade, deu força a todas as formas de Igreja "anticonciliar". Certamente essa não era a intenção de Bento XVI, mas foi um de seus principais efeitos. Esse rito "antigo" aglutinou em torno de si, ao lado de apegos convictos e intenções sinceras de custódia da tradição, interesses da reação eclesial e civil, pessoas com tendência a permanecer vinculadas ao passado de várias matizes, aristocratas decaídos, junto com alguns sujeitos pouco equilibrados. Enquanto isso, a Comissão Ecclesia Dei conduzia negociações de acordo com os lefebvrianos, nas quais nunca ficava muito claro de que lado da mesa estavam os inimigos do Concílio Vaticano II. Amigos do Concílio, efetivamente, bem poucos apareciam.
f) Por último, a Comissão, tendo em muitos casos ultrapassado gravemente os limites das suas competências, foi extinta. No entanto, suas competências foram transferidas para uma seção da Congregação para a Doutrina da Fé.
Quero me deter brevemente neste último ponto. Por que a Comissão Ecclesia Dei muitas vezes foi além do previsto pelo SP? Porque aplicou zelosamente não só o ditado, mas o princípio radical: isto é, a "autoridade intocável" de toda forma histórica do rito romano. Em particular, isso aconteceu a respeito do "Tríduo pascal", que é um âmbito em que a reforma litúrgica se pôs ao trabalho antes de 1962. Isso gerou uma situação paradoxal. De fato, se no que diz respeito ao Missal em sua generalidade, o texto de 1962 resulta "antigo" em relação ao texto de 1969, no que se refere ao Tríduo, o texto de 1962 já incorpora as reformas realizadas por Pio XII em 1951 e em 1958 sobre a Vigília Pascal e a Semana Santa. Se vale o princípio “o que era sagrado para as gerações anteriores ...” se mantém, então se torna possível, senão necessário, conceder a faculdade de celebrar o Tríduo com as formas “anteriores” às reformas de Pio XII.
Mas isso, como é evidente, pode nunca ter fim. Porque sempre se encontra uma “forma anterior”, que foi “considerada sagrada” e que como tal se impõe como alternativa à forma seguinte. Desta forma, toda a tradição católica se torna o repositório de um incontrolável "self-service litúrgico". É pois evidente que o princípio que justifica a "dupla forma" na realidade introduz uma "multiplicação infinita das formas possíveis" e, portanto, uma "deformação", porque tudo o que era historicamente antes se impõe sobre o que é vigente e o passado exerce uma paternalismo ilimitado sobre o presente e o futuro.
No nível da teologia sistemática, essa abordagem da "reconciliação litúrgica" introduz algumas abstrações perigosas, que de fato ampliam mais do que reduzem o conflito. Dizer que duas formas do mesmo rito estão em vigor ao mesmo tempo, das quais a segunda nasceu para corrigir, emendar e renovar a primeira, é uma argumentação fraca e falaciosa, que desde o início alterou gravemente as competências litúrgicas na Igreja Católica. Tanto é que, desde 2007, não só os bispos das dioceses não podiam supervisionar a liturgia na sua diocese, mas também a Congregação para o Culto Divino não podia exercer o próprio discernimento em matéria litúrgica, porque uma "forma extraordinária" era controlada e modificado primeiro pela Comissão Ecclesia Dei e depois pela Congregação para a Doutrina da Fé. Esse "estado de exceção" não constituía causa de reconciliação, mas de laceração.
A "invenção da dupla forma" introduzida pelo motu proprio Summorum Pontificum era orientada para uma reconciliação: uma reconciliação com o "tradicionalismo", tanto externo à Igreja Católica como interno à comunhão católica. Mas o nobre fim de uma Igreja liturgicamente reconciliada foi perseguido por meio de um instrumento muito frágil, muito abstrato e bastante insidioso: isto é, por meio de um “paralelismo ritual generalizado”. Havia a convicção, em 2007, que a presença paralela de uma "forma extraordinária" ao lado da "forma ordinária" traria paz à Igreja.
No entanto, o resultado da experiência desses quatorze anos mostrou amplamente que o meio da "dupla forma do único rito romano" não é apenas uma construção teologicamente abstrata sem nenhum fundamento teórico sólido, mas é também um remédio institucionalmente incontrolável, eclesialmente bastante dilacerante e espiritualmente insidioso. Não alimenta a reconciliação, mas a divisão e a sedição, de ambos os lados: torna o rito antigo cada vez mais obscurantista e o rito reformado cada vez mais intelectualista. E é curioso que, no plano estritamente teológico, não poucos teólogos se tenham simplesmente "adaptado" - com pouca responsabilidade - a apoiar acriticamente uma tese tão débil no plano teológico, quanto perigosa no plano prático[2].
Ao identificar a impossível coexistência de duas formas diferentes do mesmo rito romano, o caminho da reconciliação - esse tipo de "ecumenismo intracatólico" - não deve mais ser pensado no nível de "formas paralelas", mas como uma evolução da única forma celebrativa, a assumir precisamente na seriedade da sua natureza de "forma ritual". A necessidade de uma reconciliação litúrgica, fortemente introduzida pelo Concílio Vaticano II na consciência e no corpo eclesial, deve abandonar a estratégia do "estado de exceção", que tem caracterizado a Igreja desde 2007 até hoje, e deve trilhar e retomar o percurso de uma única forma ritual, que assume plenamente todas as linguagens da celebração. Precisamente este caminho resulta claramente descortinado pelo MP Traditionis custodes, bem como pelas palavras claras com que a Carta aos Bispos do Papa Francisco especifica as suas intenções e motivações, para superar toda tentação de "anarquia de cima" e restaurar a experiência litúrgica para a riqueza de sua tradição, comum e popular, como desejado pelo Concílio Vaticano II.
[1] Conforme Avvenire, 8 de julho de 2007, p. 1.
[2] Cf. H. Hoping, Il mio corpo dato per voi. Storia e teologia dell’eucaristia, Queriniana, Brescia 2015 (ed. orig. 2011). Também na Itália não faltaram avaliações imprudentes sobre a qualidade do "estilo católico" da disposição.
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“Anarquia de cima”: o motivo sistemático para a revogação do Summorum Pontificum. Artigo de Andrea Grillo - Instituto Humanitas Unisinos - IHU