Igreja, armas e bancos: o caso da Conferência Episcopal Italiana

Imagem: Sede da Conferência Episcopal Italiana | Foto: ChiesaCattolica.it

13 Mai 2021

 

O bispo de Altamura-Gravina-Acquaviva delle Fonti, na Itália, não é mais a única voz crítica na Igreja sobre o comércio bélico italiano. “Somos uma gota de ‘água mole’ que fura a ‘pedra dura’. O papa foi claro: as empresas bélicas devem ser reconvertidas.” Nesta longa entrevista com o herdeiro do Pe. Tonino Bello, ele também relata o seu encontro “particular” com o ministro da Defesa italiano, Lorenzo Guerini.

A reportagem é de Gianni Ballarini, publicada em Nigrizia, 08-05-2021. A tradução é de Moisés Sbardelotto.

Em um certo ponto da conversa, ele toma uma direção inesperada. E conta: “No dia 4 de agosto de 2020, com Renato (Sacco, coordenador nacional da Pax Christi), fomos recebidos, em Roma, pelo ministro da Defesa, Lorenzo Guerini. Ele se orgulhou de ser um verdadeiro católico, que cresceu na paróquia e nas associações católicas. Depois, nos disse que estava muito orgulhoso por ter sido militar com as tropas alpinas. Eu lhe respondi que, quando era pároco, a grande maioria dos meus jovens, depois, decidiu tornar-se objetor de consciência”.

Dom Giovanni Ricchiuti – 72 anos, arcebispo de Altamura-Gravina-Acquaviva delle Fonti e presidente da Pax Christi – conhece o remédio da ternura. Mas as suas palavras nunca são tímidas. Principalmente quando a sua Igreja se mostra fascinada pelos uniformes.

Imagem: Dom Giovanni Ricchiuti | Foto: Acquavivalive

“Não compartilho em absoluto a escolha do então secretário geral da Conferência Episcopal Italiana (CEI), Nunzio Galantino, de propor João XXIII como patrono do Exército [italiano]. Ele respondeu: ‘Eu iria, pouco a pouco, criminalizar o Exército’. Mas o que isso tem a ver? Eu não criminalizo ninguém, respondi. Mas não entendo ainda hoje como é possível ligar a figura do ‘papa bom’ aos militares.”

Tendo sido criado com pão e Tonino Bello, para Dom Ricchiuti, o uniforme provoca incômodo. Em particular quando vê na TV ou nos jornais a grande quantidade de medalhas de Francesco Paolo Figliuolo, o comissário extraordinário para a emergência da Covid-19. “Todos os dias, temos que admirar o seu chapéu e a sua pluma. É um contínuo desfile militar para tarefas claramente civis. Se os militares substituem a proteção civil, que as armas lhes sejam tiradas.”

E quando ele é provocado, ao lhe dizermos que na sua Igreja, para ouvirmos palavras duras contra o comércio bélico, ou entrevistamos ele ou diretamente o papa, ele primeiro responde que a Igreja não pode se calar (“Me ensinaram que você deve ‘profetizar’, quer te ouçam ou não”); depois, lembra que algo também está mudando entre os bispos: “Eu não mais tão sozinho ao dizer estas coisas”.

 

Eis a entrevista.

 

Vamos começar com uma notícia positiva. De acordo com uma pesquisa encomendada pelo Greenpeace, parece que a sociedade civil de quatro países europeus quer pôr um freio na venda de armas, especialmente para os países totalitários ou em guerra. É surpreendente que precisamente os italianos são os mais contrários à exportação de armas. Na sua opinião, essa pesquisa realmente reflete o sentimento profundo da sociedade italiana?

Eu sou da Apúlia. Terra de rochas. De terra agreste. Acho muito verdadeiro o provérbio de que “água mole fura a pedra dura”. Essa pesquisa é realmente uma boa notícia. Tenho certeza, e não de hoje, que existe um povo da paz, que quer a paz. Lembro-me da minha juventude, recém-padre, admirado com a figura do Pe. Tonino Bello, que cresceu a poucos quilômetros da minha casa. Já então, havia entre as pessoas um forte sentimento que considerava que a guerra era uma loucura.

Você se lembra do Alienum est a ratione, de João XXIII? “É pura loucura pensar que, na era atômica, a guerra pode ser utilizada como instrumento de justiça.” É uma coisa de louco, e a maioria de nós se recusa a ser louco. Então, sim, eu acredito que essa pesquisa corresponde à verdade. Sinto isso quando convivo com as pessoas, nas ruas, nos bares, na igreja. Também há uma grande agitação nos movimentos católicos sobre esse tema, talvez porque seja um assunto no qual o papa toca muitas vezes.

Além disso, as pessoas estão cansadas. Só precisam de informações sinceras. Verídicas. Antigamente, se diria que precisam de “contrainformação”. Enquanto isso, aquilo que se lê ou se ouve hoje muitas vezes vai em uma única direção. A grande mídia mal toca nessas temáticas. Ao invés disso, é preciso ter mais coragem. Como é possível gastar 90 milhões de euros [quase 580 milhões de reais] com um avião F-35, quando a saúde ao nosso redor está em ruínas?

Uma notícia menos positiva. Perdoe o atrevimento: por que, para ouvir uma voz muito crítica na Igreja sobre o comércio bélico, muitas vezes amoral, devemos sempre entrevistar o senhor ou, se fosse possível, o papa? Por que na Igreja, dos bispos aos párocos, não se sente a exigência e a urgência de abordar publicamente esse tema?

Também aqui vou lhe dar boas notícias. Mas vamos começar pela premissa. É verdade: muitos bispos e párocos, infelizmente, não estão muito bem informados. Alguns se aproximam de mim para me dizer que os meus discursos (e os do papa neste momento) são utópicos. Que não podem mudar o estado das coisas. Que há uma lógica por trás do comércio que não vai se romper. Mas, na assembleia da CEI, eu fiz claramente esta pergunta ao papa: “Santidade, o que devemos fazer com as armas? Com as empresas que produzem armamentos?”. E a sua resposta foi clara: “Reconvertê-las ao civil”. Ele não gaguejou. Disse que, exceto aquelas que produzem armas como dissuasão e para a pura defesa, as outras devem ser reconvertidas. “E os capelães militares?”, repliquei. “Na Argentina, nós os reconvertemos também”, foi a sua resposta.

Imagem: Assembleia Geral do CEI, abril de 2021 | Foto: Conselho Espírita Internacional (CEI)

Isso significa que a Igreja italiana deve dar mais alguns passos. Mas a notícia positiva é que eu absolutamente não estou sozinho no episcopado ao trazer à tona estes temas. O novo arcebispo de Nápoles, Domenico Battaglia, está nessa linha. A Conferência Episcopal Piemontesa também. Acho que há uma maior sensibilidade. Outros bispos estão se movendo.

É claro, somos cerca de 200 pessoas. E o trabalho é muito. Mas se trata de passos significativos. E os frutos já poderiam ser vistos na próxima Assembleia Geral, que será realizada no Hotel Ergife, em Roma, de 24 a 27 de maio próximos. Nessa ocasião, pedirei explicitamente que se pressione o governo italiano para que assine e ratifique o tratado sobre a proibição das armas nucleares.

O relatório governamental recentemente publicado sobre a importação e a exportação de armas mostra que, em 2020, não só vendemos navios de guerra ao Egito por mais de 900 milhões de euros [quase 6 bilhões de reais], mas também armamentos para a Líbia por 6 milhões [38 milhões de reais]. Provavelmente, usados para aprimorar os barcos de patrulha da guarda costeira. Foi de um deles que partiram os tiros contra os três navios pesqueiros italianos. Não lhe parece um curto-circuito? Um paradoxo?

Estamos na presença de uma surdez e de uma cegueira escandalosas. Não é mais tolerável continuar assim. É possível que os campos de detenção da Líbia sejam fantasmas? É possível que não se dê crédito aos relatos desumanizantes dos migrantes que chegam da Líbia? Com cerca de 15 bispos, apoiamos a iniciativa da Mediterranea e do Pe. Matteo Ferrari, que está dedicando a sua missão nos navios das ONGs.

Mas onde os governos escondem os seus rostos? Já escrevi nos editoriais do Verba Volant que países como Malta, Itália, França e até a própria Europa poderiam um dia responder pelas atrocidades que estão sendo cometidas no “Mare Monstrum”.

Além disso, como você diz, chegamos ao paradoxo de vendermos armas para a Líbia que provavelmente depois são utilizadas contra os nossos navios pesqueiros e os nossos pescadores.

Um tema sobre o qual se fala muito pouco e está presente no relatório são os chamados bancos armados, ou seja, instituições de crédito que apoiam as indústrias bélicas. Também em 2020, pelo menos 8 bilhões de euros [51 bilhões de reais] passaram pelas contas-correntes de bancos italianos, ou com sede na Itália, em apoio a esse comércio. Nunca, como neste caso, a vontade do cidadão individual poderia afetar as políticas da própria instituição de crédito. Na sua opinião, por que é difícil aprovar essa ideia, essa política, essa campanha? Mesmo nos próprios conselhos pastorais e nos economatos das dioceses, isso é um tabu.

Você toca em um assunto que realmente me interessa. Para mim, é intolerável, por exemplo, que a CEI se apoie no Unicredit, no topo da lista dos chamados bancos armados. Vou lhe contar um detalhe: todos os anos, nós, bispos, pagamos 160 euros [1.025 reais] por um fundo de pensão suplementar. E temos que fazer a transferência para o Unicredit. Já manifestei toda a minha contrariedade com isso.

Alguns sinais positivos estão chegando. O documento da Comissão Episcopal para os Problemas Sociais e o Trabalho, a Justiça e a Paz da CEI, por ocasião da festa do dia 1º de maio, afirma que não podem ser feitos investimentos em contraposição aos valores éticos da Igreja.

Quanto aos fiéis e aos conselhos pastorais, acho que, quando as pessoas estão verdadeiramente informadas, elas fazem escolhas válidas. É preciso ter paciência. A palavra começa a sacudir. Além disso, se também contássemos com a ajuda dos serviços jornalísticos de maior alcance, como o programa Report, da Rai3, talvez a sensibilização seria mais fácil.

No entanto, é verdade que raramente se fala dessas coisas pastoralmente. Precisamos de um trabalho de formação e de informação. Também na certeza de sermos incômodos. No entanto, eu também achei o economato geral da CEI sensível a essa questão. Precisamos de uma gradualidade nas coisas. Mas o caminho é esse.

A quem diz que não se faz a política externa de um país com boas intenções, o que o senhor responde?

Que a política é serviço. As más e as boas intenções não têm nada a ver. E a quem levanta a questão do realismo seria preciso lembrar que, se continuarmos com esse pragmatismo, o nosso fim chegará com bastante antecedência. A política, ao invés disso, também precisa de visões novas.

 

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