06 Mai 2021
O “dispositivo de bloqueio” bloqueia toda mudança e faz prevalecer, afetivamente antes que conceitualmente, um primado do antigo sobre o moderno. E paralisa afetivamente, “por apego”, todo projeto de reforma.
O comentário é de Andrea Grillo, teólogo italiano e professor do Pontifício Ateneu Santo Anselmo. O artigo foi publicado por Come Se Non, 05-05-2021. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Também nos últimos tempos, continua havendo uma manifestação consistente de uma tendência do magistério eclesial de “bloquear tudo”, embora conhecendo também exceções de autoridade, sobretudo no nível do magistério papal.
O que deve surpreender é que essa “afirmação do poder” ocorre por meio da reiterada afirmação de “não ter o poder”. O fato de a afirmação do poder ocorrer por meio de uma negação do poder é um modo de argumentar que, a partir dos anos 1970, se difundiu no discurso eclesial católico e assegurou progressivamente uma verdadeira “paralisia” daquela orientação à reforma e aos processos de atualização que o Concílio Vaticano II tinha providencialmente reintroduzido na vida da Igreja.
Em outro lugar, já abordei o fenômeno, identificando uma espécie de “estilo magisterial”, que se baseia em uma estratégia paradoxal: ao negar a sua própria autoridade, ele conserva toda a sua autoridade.
Retomo brevemente o sentido desse primeiro raciocínio, para tentar compreender também os seus desenvolvimentos mais recentes.
No debate eclesial que surgiu a partir das palavras proféticas do Papa Francisco sobre a “Igreja em saída” e sobre a “superação da autorreferencialidade”, ainda não se compreendeu claramente o quanto essa prioridade, que justamente o papa enunciou desde os primeiros dias do seu ministério – e que já estava claramente presente no seu texto apresentado à Congregação dos Cardeais no conclave –, exigia uma profunda revisão do estilo com que a Igreja pensa e age a respeito do tema do “poder” e da “autoridade”.
Para poder “sair da autorreferencialidade” e se tornar verdadeiramente “heterorreferencial” – ou seja, para não colocar a si mesma no centro, mas o “Outro”, Deus, e o “outro”, próximo – a Igreja deve reconhecer acima de tudo que está investida de uma autoridade real e eficaz. Em outras palavras, ela deve poder confiar na possibilidade de intervir com autoridade na sua própria doutrina e disciplina – sobre o que ela pensa de si mesma e sobre o que ela faz de si mesma – sem ceder à tentação de “impedir-se uma reavaliação”, talvez em nome da fidelidade à tradição.
Por um lado, a Igreja é instituída por uma mensagem que não pode controlar e sobre a qual não tem poder. Mas isso diz respeito à “substância da antiga doutrina do depositum fidei”, não à “formulação do seu revestimento”, para usar a famosa distinção com a qual João XXIII, no grande discurso Gaudet mater ecclesia, inaugurou o período conciliar, definindo assim a “índole pastoral” do Concílio Vaticano II.
Se a Igreja pensasse que o único modo de ser fiel ao Evangelho é continuar em tudo e para tudo como antes – tanto doutrinal quanto disciplinarmente – ela se convenceria imediatamente de que deve permanecer absolutamente imóvel para ser plenamente ela mesma. Ela faria do imobilismo a sua obsessão. O Concílio Vaticano II, ontem, e Francisco, hoje, quiseram responder a essa tentação com o exercício de uma palavra profética, que, acima de tudo, quer persuadir a Igreja e o mundo de duas coisas:
- que a fidelidade é mediada pelo movimento, pela conversão, pela saída às ruas, não pela estase, pelo medo e pelo fechamento entre os muros;
- que, para se mover, é preciso reconhecer a autoridade para estar na história da Igreja e da salvação de modo partícipe e ativo, não como espectadores mudos e passivos ou como simples “notários”.
Essa consideração, no entanto, encontra mais de uma resistência não apenas na inevitável inércia do modelo a ser superado, mas também em alguns “lugares comuns”, dos quais eu gostaria de considerar aquele que podemos expressar como a redução da autoridade à “renúncia da autoridade”.
Trata-se de um lugar comum muito fascinante, que às vezes assume uma notável relevância na experiência eclesial e que o magistério pode e deve utilizar em passagens complexas. Ele se traduz formalmente em uma declaração de “non possumus”. Esse é um dos pontos-chave do “magistério negativo”, que a tradição antiga, medieval e moderna cultivou com atenção e com cuidado.
Em última análise, trata-se de uma “autolimitação do magistério”. Mas tal autolimitação, que por si só é a garantia de “outra coisa”, e que, portanto, deveria conter e impedir as formas da autorreferência eclesial, entrou com grande força na experiência eclesial das últimas décadas, particularmente a partir do fim dos anos 1970. Embora vindo de longe, esse modo de argumentação magisterial conheceu, precisamente depois do Concílio Vaticano II, um novo e inesperado destino.
Agora gostaria de identificar com maior clareza o coração de tal argumentação em um raciocínio artificial – que de certa forma aparece como uma espécie de “sofisma” – e que não é difícil de atribuir a um desenvolvimento integral do magistério, em uma parábola temporal de pelo menos 50 anos, que vai dos anos 1970 até os nossos dias.
Trata-se de um “dispositivo teórico” que realiza, mediante um indiscutível refinamento retórico, um resultado pré-estabelecido: bloqueia toda mudança e faz prevalecer, afetivamente antes que conceitualmente, um primado do antigo sobre o moderno. É um “dispositivo de bloqueio” que paralisa afetivamente, “por apego”, todo projeto de reforma.
Antes de analisar as etapas principais desse interessante fenômeno, que, por brevidade, chamarei de “dispositivo de bloqueio”, gostaria de esclarecer melhor a peculiaridade da minha abordagem:
a) A contribuição desse “modelo de pensamento” é muito significativa e foi desenvolvida especificamente pela elaboração teórica de J. Ratzinger: diz respeito primeiro ao Ratzinger arcebispo, depois ao Ratzinger prefeito e, enfim, ao Ratzinger papa: isto é, o fruto não do “primeiro Ratzinger”, livre de compromissos pastorais, mas do “segundo e último Ratzinger”, comprometido com responsabilidades crescentes no nível da Igreja diocesana e depois, bem rapidamente, da Igreja universal.
b) O coração da argumentação é o fruto não apenas de uma indiscutível competência teológica, mas também da abdicação da razão, de uma forma bastante marcada, para dar espaço a um “afeto” ou, melhor ainda, para um “attachement/apego” irrenunciável, que é assumido como auctoritas indiscutível: a ratio cede a uma auctoritas afetivamente sobredeterminada e, por isso, incontrolável.
c) Por esse motivo, é possível atribuir ao raciocínio a qualificação de “dispositivo”: ele não explica racionalmente, mas valoriza retoricamente e impõe juridicamente uma solução que não tem bases sólidas, senão em um afeto. Isso determina o efeito de fazer “evaporar” toda reivindicação legítima de mudança, que transforma imediatamente, e eu diria quase violentamente, em uma contradição com os afetos e, por isso, em uma negação e em uma ameaça à tradição.
d) Funciona, enfim ou talvez sobretudo, como suporte teórico perfeito, quase como um axioma indiscutível, para afirmar uma estruturação resistente e imóvel da Igreja, diante de um mundo ameaçador e traiçoeiro, ao qual a Igreja não deve se curvar. Recuperando temas e motivos do antimodernismo de um século antes, o “dispositivo” funciona perfeitamente como um “bloqueio” acima de tudo contra o espírito de um Concílio Vaticano II percebido cada vez menos como recurso e cada vez mais como “desvio”.
Esse “dispositivo de bloqueio” se apresenta em inúmeros exemplos historicamente progressivos, quase como uma “regulagem” cada vez mais refinada e afiada dele.
A apresentação dirá respeito, em ordem, a quatro documentos eclesiais totalmente característicos dessa abordagem: a “Carta sobre a primeira confissão”, do arcebispo de Munique, de 1977; a carta apostólica Ordinatio sacerdotalis, de 1994; a instrução Liturgiam autenticam, de 2001; o motu proprio Summorum pontificum, de 2007, ao qual deve se acrescentar a “Carta aos Bispos Alemães” sobre a questão do “pro multis”, de 2012.
No cerne de cada um desses documentos, ao longo de nada menos do que 35 anos, encontra-se o mesmo mecanismo argumentativo, claramente reconhecível, fascinante e distrativo, límpido e, ao mesmo tempo, obscuro, em que apego e razão se fundem e se confundem.
Uma breve investigação será capaz de trazer à luz o seu ponto cego, mas também a dívida que todos temos em relação a esse modo de raciocinar e de abordar a reflexão sobre a tradição eclesial e da qual, se quisermos reler significativamente o Concílio Vaticano II, deveremos nos libertar, mais cedo ou mais tarde.
Apresento aqui apenas quatro exemplos de um modo de argumentar que hoje pode ser repetido quase em todos os níveis: em um texto de uma Congregação, em uma lição universitária ou em uma entrevista nos jornais, e pode ter, como objeto, qualquer “doutrina ou disciplina eclesial”, sobre a qual se afirma que “não se têm poder”.
3.1 A carta sobre a primeira confissão (1977)
O primeiro “lugar doutrinal” em que o “dispositivo de bloqueio” é posto em ação é a relação entre primeira confissão e primeira comunhão, que J. Ratzinger, então arcebispo de Munique, ressitua “contra” a virada impressa pelo seu antecessor, o cardeal J. Doepfner, que havia deslocado a primeira confissão para depois da primeira comunhão. A pretensão é de combater um “uso pedagógico” da tradição, mas a teologia que deveria guiar o novo aviso se identifica, simplesmente, com a “evidência afetiva” do princípio de autoridade.
No texto da carta pastoral “Primeira confissão e primeira comunhão das crianças” (1977), Ratzinger chega a inverter o sentido da tradição, a fim de garantir a sobrevivência da prática (para ele) mais tradicional, afirmando um primado de um sacramento de cura em relação a um sacramento de iniciação, em grave tensão até com o Concílio de Trento e com a diferença “de dignidade” que ele exige que seja reconhecida entre os sacramentos.
De fato, ele afirma: “Só com a confissão pessoal se tornam verdadeiras as invocações de perdão da liturgia eucarística, e essa liturgia eucarística da Igreja conserva a sua grande profundidade pessoal que, aliás, é o pressuposto da verdadeira comunhão”. Ele chega, assim, a subordinar a comunhão eucarística à confissão pessoal, como regra de abordagem original ao sentido da própria comunhão, com uma evidente e grave forçação da tradição.
Tudo isso, aliás, argumentado com uma motivação realmente surpreendente: o novo arcebispo pede que os agentes de pastoral “abandonem as suas próprias ideias mais caras pelo bem da comunidade”, mas de fato, com essa carta, ele impõe as suas próprias ideias mais caras – aquelas afetivamente mais urgentes para ele – em detrimento do caminho de amadurecimento da comunidade.
Usar a Didaquê como texto-chave para afirmar o primado da confissão individual sobre a comunhão eucarística é uma argumentação doutrinalmente audaciosa, que manifesta um uso da “auctoritas” totalmente anacrônico e desprovido de confirmação. Mas aqui, pela primeira vez, aparece o “dispositivo de bloqueio”: argumentando de modo vago, puramente afetivo, ele obtém apenas uma “conformação autoritária” do comportamento, sem uma motivação tecnológica consistente.
3.2 A argumentação da Ordinatio sacerdotalis (1994)
Muitos anos depois, em 1994, com a Ordinatio sacerdotalis, da qual Ratzinger, então prefeito da Congregação para a Doutrina da Fé, foi o grande inspirador, sobre o tema da “ordenação das mulheres ao sacerdócio”, ele retoma com força esse estilo, declarando que “a Igreja não tem absolutamente a faculdade de conferir a ordenação sacerdotal às mulheres”.
Com uma declaração de “não autoridade”, e da qual ele mesmo esclarece mais tarde a natureza “não infalível”, quer-se encerrar a questão, embora não excluindo que “outras ordenações” sejam viáveis. A negação da autoridade determina a confirmação da forma clássica do poder eclesial e até pretende reconhecer, não infalivelmente, uma tradição infalível. Desloca a infalibilidade do documento para a tradição, com um salto mortal argumentativo muito arriscado. Sem assumir nenhuma nova autoridade, reconhece-se autoridade apenas ao passado, sem qualquer tematização das novidades culturais, antropológicas e eclesiais que o último século trouxera, como se a história não existisse.
No cerne do documento e da sua explicação posterior, aparece com clareza, de novo, o “dispositivo de bloqueio”: afeto, apego e autoridade substituem a razão teológica. Sentimento e poder no lugar da razão. Ou, melhor, a razão deveria, a posteriori, limitar-se a justificar o sentimento de apego e o princípio de autoridade.
3.3 Liturgiam authenticam (2001) e a carta sobre o “pro multis” (2012)
Alguns anos depois, em 2001, J. Ratzinger foi novamente o inspirador da V Instrução sobre a Reforma Litúrgica Liturgiam authenticam, da qual surgia uma nova versão do “dispositivo de bloqueio”, com a afirmação absoluta do “primado do latim” sobre as “línguas vernáculas”. O efeito dessa teoria sem nenhum fundamento histórico – na qual se chegava a estabelecer a irrelevância da língua dos destinatários e a pretensão de “transliterar as figuras retóricas latinas” – era duplo: a paralisia da relação entre periferia e centro na gestão das traduções litúrgicas e o esquecimento de que a “vida eclesial” não pulsava mais nas veias do latim, mas nas das línguas nacionais, que não eram mais, há já 50 anos, línguas de tradução, mas línguas de experiência e de criação.
Uma retomada posterior, na Páscoa de 2012, por parte do Papa Bento XVI, de uma carta aos bispos alemães sobre a questão do “pro multis” destacava, mais uma vez, a força do “dispositivo de bloqueio”: a tradução literal “fuer viele” devia se impor “afetivamente e com autoridade”, pois, no plano conceitual, devia ser desmentida por uma catequese acurada, que explicasse como “por muitos” significa “por todos”. Uma imagem de singular evidência da contradição interna do “dispositivo de bloqueio”, com o qual, neste caso, se afirma a “falta de poder” da Igreja para falar outras línguas diferentes do latim.
3.4 Paralelismo ritual com efeito anárquico: Summorum pontificum (2007)
A última etapa deste percurso eficaz do “dispositivo” encontra-se em 2007, com o motu proprio Summorum pontificum, mediante o qual, enquanto se criava um paralelismo de formas rituais do mesmo “rito romano”, abria-se mão da autoridade para orientar a liturgia eclesial ao longo das linhas da Reforma Litúrgica e se colocavam novamente em pleno vigor os ritos que a própria Reforma quisera superar, denunciando os seus limites e as suas distorções.
Também neste caso, o Magistério “se autolimita”, pois não teria a autoridade para orientar a tradição e as escolhas dos ministros ordenados individualmente, mas, desse modo, restitui autoridade a formas de experiência pré-conciliar. O “dispositivo de bloqueio” aqui argumenta novamente de modo a-histórico: “Aquilo que foi santo uma vez deve poder sê-lo sempre”. Portanto, a Igreja não se reconhece nenhum poder de Reforma. Aquilo que foi por si só se perpetua sem nenhuma possibilidade de orientação ou conversão.
E um princípio argumentativo, por si só negativo e puramente a-histórico, causa efeitos históricos bastante graves: perda de controle dos bispos diocesanos, centralização do controle em um órgão “afetivamente condicionado” – a Comissão Ecclesia Dei –, a difusão de uma relevância “política” – em sentido eclesial e em sentido mundano – da “forma extraordinária” como “forma reacionária”. O dispositivo de bloqueio não freou as coisas: certamente bloqueou o desenvolvimento da Reforma e gerou um verdadeiro “monstrum”, com consequências dilacerantes que já eram facilmente previsíveis naquela época.
Como é evidente, todos esses empregos do “dispositivo”, embora na sua diversidade de contextos e de efeitos, recorrem a um “lugar comum” secular do magistério. Todos têm em comum uma sutil dialética entre “perda de poder” e “assunção de poder”: no momento em que o magistério diz que “não tem autoridade”, ele deixa com autoridade o “status quo” que tende a identificar com o “revelatum”. Assim, tende a sobrepor aquilo que é com aquilo que deve ser. E, portanto, opera um bloqueio no debate sobre a relação entre iniciação e cura, sobre o papel ministerial das mulheres, sobre as formas da inculturação litúrgica e sobre o caminho orgânico da reforma litúrgica.
Não é difícil notar como esse “não reconhecimento de autoridade” se identifica com uma conservação do poder adquirido, tornando-se muitas vezes princípio e alimento de uma arriscada inclinação à autorreferencialidade. E, como vimos, no “dispositivo de bloqueio”, esse resultado é obtido por meio de uma síntese original entre “apego afetivo” e “razão teológica reduzida ao princípio de autoridade”.
Em comparação com isso, o “retorno ao Concílio” do Papa Francisco aparece marcado pela exigência de “dar novamente autoridade” à ação eclesial. Só assim ela poderá escapar da “tentação da autorreferencialidade”. Mas, para fazer isso, deve assumir uma abordagem diferente da tradição. A Igreja não se reconhece como uma “história fechada”, como um “museu de verdades a serem conservadas”, mas como um “jardim a ser cultivado”. Por isso, seria muito útil reler o pontificado de Francisco, a oito anos do seu início, não como uma forma certa e “soft” de pastoral, mas como uma reavaliação da forma com que a Igreja não renuncia a exercer a autoridade e supera o “dispositivo de bloqueio” que J. Ratzinger havia desenvolvido com tanto refinamento durante 40 anos.
Francisco assume a exigência de exercício da autoridade que os seus antecessores tinham como suspenso, determinando sempre resultados caracterizados pela “paralisia”. Francisco desconectou o dispositivo, mudando tanto o papel do apego afetivo quanto o papel da razão teológica. Aqui, parece-me, situa-se um elemento de profunda continuidade com o Concílio Vaticano II e de inevitável descontinuidade em relação ao “dispositivo de bloqueio”, cuja incidência, no entanto, ainda não desapareceu.
Engana-se quem pensa em um “destino irreformável” ligado à própria estrutura da Igreja Católica. Identificar o “dispositivo de bloqueio” significa distinguir, precisamente, um modo de argumentar que se difundiu progressivamente a partir dos anos 1970, de elementos que continuam agindo de modo vital no corpo da Igreja. Nestes oito anos de pontificado de Francisco, seria suficiente citar três documentos, que desmentem explicitamente o dispositivo de bloqueio:
- exortação apostólica pós-sinodal Amoris laetitia (2016), que supera o primado insuperável da “lei objetiva” em matéria matrimonial, sobre a qual, até a Familiaris consortio, se repetia que “a Igreja não tinha poder”.
- Motu proprio Magnum principium (2017), que supera o primado da língua latina sobre as línguas faladas e restitui uma autoridade original às línguas vivas e às Conferências Episcopais que as falam.
- Motu proprio Spiritus Domini (2021), que supera a reserva masculina sobre a ministerialidade eclesial e, pela primeira vez de modo explícito torna possível a atribuição formal de “ministérios eclesiais” a mulheres.
Em três âmbitos nos quais a tradição havia tentado se identificar com formas históricas de autoridade, mas contingentes, a Igreja, com a autoridade do Sínodo e de atos papais, reconheceu-se o poder de modificar e de atualizar a disciplina e, em certa medida, a própria doutrina. A tentação de estender a substância imutável a toda a doutrina e a toda a disciplina sempre foi forte na história da Igreja moderna e contemporânea. Os antigos e os medievais eram, desse ponto de vista, muito mais livres.
Hoje, o desafio consiste em reencontrar a liberdade dos antigos e dos medievais e superar a rigidez que a história moderna e tardo-moderna impôs à tradição. O forte impulso do Concílio Vaticano II continua sendo uma herança insuperável. Apesar desta grande contribuição oferecida pelo magistério de Francisco, vemos nos últimos tempos que o dispositivo de bloqueio continua sendo um “recurso barato”, facilmente utilizável para bloquear todo caminho de reforma, indiferentemente aplicável aos ministérios ou à sexualidade, aos projetos sinodais ou às formas de celebração. O dispositivo hoje aparece às vezes “suspenso com autoridade”, mas não “eclesialmente desativado”. A 60 anos daquele Concílio, hoje temos a urgência de ir além, com serenidade e clarividência, de toda tentação de ceder novamente ao “dispositivo bloqueio”.
É verdade: a Igreja não tem poder sobre aquilo que a institui e a cujo serviço presta toda a sua obra. Mas identificar, muito imediatamente, aspectos contingentes da tradição com essa “substância intocável” não é um sinal de fidelidade, mas de medo. A Igreja, para conservar aquilo sobre o qual não tem poder e que só pode justificar, deve reconhecer abertamente a si mesma o poder de mudar e de adaptar todo o restante, se quiser permanecer capaz de “sair de si” e de encontrar, no mundo, a revelação do seu Senhor. Uma Igreja que, em vez disso, estivesse “bloqueada sobre tudo” e que mostrasse que só sabe mudar as “invocações a São José” ofereceria de si mesma um rosto ao mesmo tempo assustado e autocentrado.
FECHAR
Comunique à redação erros de português, de informação ou técnicos encontrados nesta página:
Negar todo poder para conservar todo o poder. Afetos e efeitos do dispositivo de bloqueio. Artigo de Andrea Grillo - Instituto Humanitas Unisinos - IHU