24 Abril 2021
"Cattorini chega a dizer, parafraseando Warren T. Reich, que existe um filme no coração dos sistemas teológicos. O filme é o corte provisório impresso em um filme infinito, que em última análise fala do próprio cinema como 'discurso autorizado para representar a narrabilidade visível do ser'. Procedendo por analogias e interpolações, o autor avança a tese de que a teologia do cinema é uma variante na forma de imagens, movimentos, sons, da teologia narrativa", escreve Gianluca Arnone, em artigo publicado por Settimana News, 22-04-2021. A tradução é de Luisa Rabolini.
Antes de estourar a pandemia e nos rendermos definitivamente às plataformas vod, um tema mais do que qualquer outro chamava a atenção dos especialistas da mídia: o avanço imparável da inteligência artificial nos processos criativos da indústria audiovisual. Antes da Covid, havia o algoritmo. Não se pode descartar que, passada a ameaça sanitária, o bicho-papão alfanumérico volte a se revelar no debate crítico.
Come in uno specchio
Nesse ínterim, não devemos esquecer algumas pequenas sobrevivências na área editorial que, se soubermos apreendê-las, são sinais significativos de resiliência. A referência é ao avanço pequeno, mas vigoroso, de uma teologia do cinema. Após o lançamento em novembro passado de uma densa obra assinada pelo cardeal Gianfranco Ravasi (Come in uno specchio), chega a publicação de uma Teologia do Cinema "não cardinalícia" publicada pela Dehoniane de Bolonha (p. 130, € 15).
Ambas obras seminais, portadoras de um desejo de encanto mítico pelas imagens, à descoberta de uma tridimensionalidade espiritual. O autor desta segunda surtida editorial é Paolo Cattorini. Ao contrário de Ravasi, ele não é um teólogo e isso fica evidente. Onde o ensaio de Ravasi possui a clareza, a organicidade e o rigor veritativo próprios do hábito especulativo, a "teologia" de Cattorini pressiona os limiares, procura brechas, persegue as convergências nem sempre de forma cristalina, aceitando os desafios de uma matéria refratária a ser enjaulada dentro de um sistema.
Professor de bioética clínica, o autor prefere uma abordagem interdisciplinar que contamina saberes e métodos. A premissa deixa isso claro: “Teologia dos sacramentos, teologia da libertação, teologia da práxis ... O complemento de especificação preserva a ambiguidade perene. O genitivo pode ser objetivo ou subjetivo. É o caso também da teologia do cinema”.
Paolo Cattorini, Teologia del cinema.
Immagini rivelate, narrazioni incarnate, etica della visione,
EDB, Bologna 2020, p. 136, € 15,00.
Resenha publicada em Rivista del cinematografo,
janeiro-fevereiro de 2021, p. 78-79.
A obra tende para o lado subjetivo, assumindo o cinema “como figura para nomear Deus”. Mais do que circunscrever, o esclarecimento serve para dar origem a uma quantidade de hipóteses, discursos, intuições. Consequentemente, a constelação de fontes é variada, de Platão a Ricoeur, de Barthes a Freud, de De Martino a Merleau-Ponty. Um caminho pouco convencional, que por um lado corre o risco de confundir os novatos, por outro poderia sugerir novas rotas interpretativas aos amantes do assunto. Sem por isso se reduzir a um livro para especialistas.
No máximo, a gama de interesses imbricadas - religião, ética, filosofia, medicina, psicologia, mito, narratologia - sugere um público potencialmente ampliado de interessados e implica um tratamento introdutório do problema (ou dos problemas). De acordo com vários níveis de proximidade. Passa-se de semelhanças rituais entre prática cinematográfica e liturgia religiosa (entrada na sala, silêncio, escuro, paralisia motora que o espectador se impõe, estranhamento da vida real), até a circulação dos mesmos arquétipos entre texto bíblico e fílmico; da questão da teodiceia no cinema ao estilo transcendental dos filmes, uma citação obrigatória da tese de Schrader.
O caminho que leva ao valor taumatúrgico do texto é mais difícil, quando Cattorini propõe seu próprio ponto de vista peculiar como especialista em ética biomédica para reler as profundas dimensões do narrar por imagens e o propósito de suas implicações teofânicas. Partindo da consideração de que na ética e na medicina a promoção do bem, moral por um lado, clínico por outro, reabilitou a narração como um veículo discursivo necessário (“A medicina narrativa não é outra medicina, talvez mais humana [...]. É a mesma medicina"), o autor propõe um paralelismo com aquele entrelaçamento de relações entre "saúde" e "salvação" que caracterizam tanto o pensamento como o filme teológico.
Cattorini propõe a superação de uma abordagem lógico-científica em vista de uma plena reabilitação do mito, ou seja, daquelas "histórias que moldam a estrutura de valores de indivíduos e povos e imprimem uma variação das gramáticas e dos vocabulários morais. Mito e logos desde sempre interagiram entre si”. O poder mitopoiético da narrativa explode no conto bíblico, em relação ao qual o filme é um fragmento que “expande, conecta, entrelaça entre si os símbolos, enquadramentos, imagens, memórias, que nos impressionam pelo seu potencial revelador”.
Cattorini chega a dizer, parafraseando Warren T. Reich, que existe um filme no coração dos sistemas teológicos. O filme é o corte provisório impresso em um filme infinito, que em última análise fala do próprio cinema como “discurso autorizado para representar a narrabilidade visível do ser”. Procedendo por analogias e interpolações, o autor avança a tese de que a teologia do cinema é uma variante na forma de imagens, movimentos, sons, da teologia narrativa.
Se por esta última Deus se revela no drama da história, confirmando o pacto que o vê como guardião da própria alteridade e, ao mesmo tempo, fiador do papel sinérgico de ambos os personagens, o humano e o divino, analogamente “aquele que vai ao cinema deixa-se envolver-se numa teofania interna da história, agindo a dádiva de quem ‘faz cinema’ de tal forma que o que é realmente ‘visto’ sempre se projeta para além do que havia sido intencionalmente ‘dado para ver’ pelo diretor”.
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Teologia do cinema - Instituto Humanitas Unisinos - IHU