"Postulamos um poder a serviço da vida e das mudanças necessárias e exigidas pela vida. Por que não fazer uma moratória de investigação e de invenção em favor da democratização do saber e das invenções já acumuladas pela civilização para beneficiar a todos os seres humanos, começando pelos milhões e milhões destituídos da humanidade?", questiona Leonardo Boff, teólogo, filósofo e escritor.
Na compreensão dos grandes cosmólogos que estudam o processo da cosmogênese e da biogênese, a culminância desse processo não se realiza no ser humano. A grande emergência é a vida em sua imensa diversidade e àquilo que lhe pertence essencialmente que é o cuidado. Sem o cuidado necessário nenhuma forma de vida subsistirá (cf. Boff, L., O cuidado necessário, Vozes, Petrópolis 2012).
É imperioso enfatizar: a culminância do processo cosmogênico não se dá no antropocentrismo, como se o ser humano fosse o centro de tudo e os demais seres só ganhariam significado quando ordenados a ele e ao seu uso e desfrute. O maior evento da evolução é a irrupção da vida em todas as suas formas, também na forma humana consciente e livre.
O conhecido cosmólogo da Califórnia Brian Swimme junto com o antropólogo das culturas e teólogo Thomas Berry afirma em seu livro The Universe Story (1999): “Somos incapazes de nos libertar da convicção de que, como humanos, nós somos a glória e a coroa da comunidade terrestre e perceber que somos, isso sim, o componente mais destrutivo e perigoso dessa comunidade”. Esta constatação aponta para a atual crise ecológica generalizada afetando o inteiro planeta, a Terra.
Biólogos (Maturana, Wilson, de Duve, Capra, Prigogine) descrevem as condições dentro das quais a vida surgiu, a partir de um alto grau de complexidade e quando esta complexidade se encontrava fora de seu equilíbrio, em situação de caos. Mas o caos não é apenas caótico. É também generativo. Esconde dentro de si novas ordens em gestação e várias outras complexidades, entre elas a vida humana.
Os cientistas evitam definir o que seja a vida. Constatam que representa a emergência mais surpreendente e misteriosa de todo o processo cosmogênico. Tentar definir a vida, reconhecia Max Plank, é tentar definir a nós mesmos, realidade que, em último termo, não sabemos definitivamente o que e quem somos.
O que podemos afirmar seguramente é que a vida humana é um subcapítulo do capítulo da vida. Vale enfatizar: a centralidade cabe à vida. A ela se ordena a infraestrutura físico-química e ecológica da evolução que permitiu a imensa diversidade de vidas e dentro delas, a vida humana, consciente, falante e cuidante.
De mais a mais, somente 5% da vida é visível, os restantes 95% são invisíveis, compondo o universo dos micro-organismos (bactérias, fungos e vírus) que operam no solo e no subsolo, garantindo as condições de emergência e manutenção da fertilidade e vitalidade da Mãe Terra.
Tenta-se entender a vida como auto-organização da matéria em altíssimo grau de interação com o universo, com a teia incomensurável de relações de todos com todos e com tudo o mais que está emergindo em todas as partes do universo.
Cosmólogos e biólogos sustentam: a vida comparece como a suprema expressão da “Fonte Originária de todo o ser” ou “Daquele Ser que faz ser todos os seres”, o que para a teologia representa a metáfora, talvez a mais adequada, para Deus. Deus é tudo isso e mundo mais. É Mistério em sua essência e também é mistério para nós. A vida não vem de fora mas emerge do bojo do processo cosmogênico ao atingir um altíssimo grau de complexidade.
O prêmo Nobel de biologia, Christian de Duve, chega a afirmar que em qualquer lugar do universo quando ocorre tal nível de complexidade, a vida emerge como imperativo cósmico (Poiera vital: a vida como imperativo cósmico, Rio de Janeiro 1997). Nesse sentido o universo estaria repleto de vida não somente na Terra.
A vida mostra uma unidade sagrada na diversidade de suas manifestações pois todos os seres vivos carregam o mesmo código genético de base que são os 20 aminoácidos e as quatro bases nitrogenadas, o que nos torna a todos parentes e irmãos e irmãs uns dos outros como o afirma a Carta da Terra e a Laudato Sì' do Papa Francisco. Cada ser possui um valor em si mesmo.
Cuidar da vida, fazer expandir a vida, entrar em comunhão e sinergia com toda a cadeia de vida, celebrar a vida e acolher, agradecidos, a Fonte originária de toda a vida: eis a missão singular e específica e o sentido do viver dos seres humanos sobre a Terra. Não é o chimpanzé, nosso primata mais próximo, nem o cavalo ou o colibri que cumprem esta missão consciente, mas é o ser humano. Isso não o faz o centro de tudo. Ele é a expressão da vida, dotada de consciência, capaz de captar o todo, sem deixar de sentir-se parte dele. Ele continua a ser Terra (Laudato Si, n.2), não fora e acima dos outros mas no meio dos outros e junto com os outros como irmão e irmã dentro da grande comunidade de vida. Assim prefere chamar o “meio ambiente” a Carta da Terra.
Esta, a Terra, vem entendida como Gaia, super-organismo vivo que sistemicamente organiza todos os elementos e fatores para continuar e se reproduzir como viva e gerar a imensa diversidade de vidas. Nós humanos emergimos como a porção de Gaia que no momento mais avançado de sua evolução/complexificação começou a sentir, a pensar, a amar, a falar e a venerar. Então irrompeu no processo evolucionário quando 99,99% estava tudo pronto, o ser humano, homem e mulher. Em outras palavras, a Terra não precisou do ser humano para gestar a imensa biodiversidade. Ao contrário, foi ela que o gerou como expressão maior de si mesma.
A centralidade da vida implica uma biocivilização que, por sua vez, comporta concretamente assegurar os meios de vida para todos os organismos vivos e, no caso dos seres humanos: alimentação, saúde, trabalho, moradia, segurança, educação e lazer. Se estandardizássemos para toda a humanidade os avanços da tecnociência já alcançados, teríamos os meios para todos gozarem dos serviços com qualidade a que hoje somente setores privilegiados e opulentos têm acesso.
Na modernidade, o saber foi entendido como poder (Francis Bacon) a serviço da dominação de todos os demais seres, inclusive dos humanos e da acumulação de bens materiais de indivíduos ou de grupos com a exclusão de seus semelhantes, gestando assim um mundo de desigualdades, injusto e desumano.
Postulamos um poder a serviço da vida e das mudanças necessárias e exigidas pela vida. Por que não fazer uma moratória de investigação e de invenção em favor da democratização do saber e das invenções já acumuladas pela civilização para beneficiar a todos os seres humanos, começando pelos milhões e milhões destituídos da humanidade? São muitos que sugerem esta medida, a ser assumida por todos e, entre nós, proposta pelo economista-ecologista Ladislau Dowbor da PUC-SP.
Enquanto isso não ocorrer, viveremos tempos de grande barbárie e de sacrificação do sistema-vida, seja na natureza seja na sociedade humana mundial.
Este constitui o grande desafio para o século XXI, construir uma civilização cujo centro seja a vida. A economia e a política a serviço da vida em toda a sua diversidade. Ou optamos por esta via ou podemos nos autodestruir, pois construímos já os meios para isso ou podemos também começar, finalmente, a criar uma sociedade verdadeiramente justa e fraternal junto com toda a comunidade de vida, conscientes de nosso lugar no meio dos demais seres e da missão singular de cuidar e de guardar a herança sagrada recebida do universo ou de Deus (Gn 2,15).
Tentemos imaginar que os 13.7 bilhões de anos, idade do universo, sejam um único ano (apud Carl Sagan). Veremos como ao longo dos meses desse ano imaginário foram surgindo todos os seres até os últimos segundos do último minuto do último dia do ano. Qual é o lugar que nós ocupamos?
Somos quase nada. Mas por ínfimos que sejamos é através de nós, de nossos olhos, ouvidos, inteligência a Terra contempla a grandeur do universo, seus irmãos e irmãs cósmicos. Para isso todos os elementos durante todo o processo da evolução se articularam de tal forma que a vida pudesse surgir e nós pudéssemos estar aqui e falar disso tudo. Se tivesse havido alguma pequena modificação as estrelas ou não se teriam formado ou, formadas, não teriam explodido e assim não teria havido o Sol, a Terra nem os 20 aminoácidos e as quatro bases nitrogenadas e nós não estaríamos aqui escrevendo sobre estas coisas.
Por esta razão testemunha o conhecido físico da Grã-Bretanha Freeman Dyson: "Quanto mais examino o universo e estudo os detalhes de sua arquitetura, tanto mais evidências encontro de que o universo, de alguma maneira, devia ter sabido que estávamos a caminho” (1979).