20 Outubro 2020
"Hoje, num mundo marcado por tantas tragédias e desconfortos, a humanidade, para atingir uma fé adulta, deverá aprender a passar pela porta dos feridos, pois lá está um Deus que assume a nossa causa, que sente a nossa dor e, só por isso, sabe o remédio certo para nos libertar", escreve Ademir Guedes Azevedo, padre, missionário passionista e mestre em teologia fundamental pela Pontifícia Universidade Gregoriana, Roma.
A pregação sobre Deus nunca perdeu seus aspectos de grandeza. Parece que sempre buscou-se garantir a transcendência, mas divorciada da imanência. A história tem nos mostrado as consequências deste tipo de teologia: guerras, preconceitos, intolerância, autoritarismo, medo e, atualmente, a polarização religiosa que gera os nacionalismos inférteis. Privatizar o discurso religioso, a partir de suas categorias de grandeza, é negar o que tem de mais precioso na revelação cristã: aquela história de um Deus que se fez homem para nos ensinar a viver em plenitude.
Entretanto, se consideramos a encarnação em perspectiva de kenosis, podemos refazer a nossa experiência com o Deus encarnado, pois a kenosis retira de Deus a armadura dura e pesada que a religião colocou sobre Ele. Só o Deus encarnado pode nos indicar outro caminho alternativo que nos faz mais semelhantes a Ele. Eu considero que tal caminho é aquele percorrido pelos feridos. Estes representam toda a humanidade, em seu aspecto mais genuíno.
Os feridos abrem uma nova porta que nos põe em sintonia com o Deus da revelação. Eles nos ensinam que o próprio Deus entra na história sem que dela saia ileso. É isso que vemos em Jesus. Já no ventre de uma mulher, ali já está ferido pela pobreza humana. Em seu nascimento, depara-se com outra ferida: aquela da perseguição dos poderosos. Em seu ministério não foi diferente, pois teve que assumir, como consequência de tudo o que disse e fez, a cruz mais cruel preparada por aqueles que controlavam o sistema religioso e político. Jesus, sempre ferido, toca as nossas feridas para nos indicar o caminho mais feliz, a meta mais alta que compendia todo o desejo de Deus para cada um de nós: a ressurreição. Ele só realiza o projeto do Reino, em obediência ao Pai, porque uma vez ferido, sabe curar as nossas feridas: Ele cai, mas para nos levantar; Ele chora, mas para nos consolar; Ele sente sede e fome, mas para nos saciar. Não é possível crê em Deus sem antes reivindicar suas feridas. Só podemos segui-lo se Ele estiver ferido. Esta é a prova de que não seremos jamais enganados. Fora desta condição, corremos o risco de esvaziar o sentido maior da Cruz de Cristo.
Tomás Halík em sua obra Toque as feridas (p. 13), insiste: “Para mim não existe outro caminho, não existe outra porta senão aquela que é aberta por uma mão ferida e um coração traspassado. Não posso clamar “meu Senhor e meu Deus” sem ver a ferida que alcança o coração. Se credere (crer) provier de cor dare (dar o coração), então preciso confessar que meu coração e a minha fé só podem pertencer ao Deus capaz de mostrar as suas feridas.” Hoje, num mundo marcado por tantas tragédias e desconfortos, a humanidade, para atingir uma fé adulta, deverá aprender a passar pela porta dos feridos, pois lá está um Deus que assume a nossa causa, que sente a nossa dor e, só por isso, sabe o remédio certo para nos libertar.
No século 18, em pleno iluminismo, onde a razão pretendia humilhar toda e qualquer experiência de fé, surge na Igreja Paulo da Cruz propondo a ciência da cruz como única sabedoria capaz de dar um sentido maior a vida: “Na Paixão de Cristo não há engano, quem se aconselha com o Crucificado jamais erra”, dizia ele. Paulo não se cansava de pregar: “A Paixão de Cristo é o remédio mais eficaz para todos os males”. Mais do que nunca continua sendo válido seu convite de olharmos sempre para o Crucificado, o Deus ferido que nos abre aquela porta pela qual somos convidados a atravessar para aprendermos a amar e a preencher os nossos vazios.
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A porta dos feridos - Instituto Humanitas Unisinos - IHU