16 Setembro 2020
"A Laudato Si’ enfatiza a comunicação pelo viés do diálogo como proposta de orientação e ação para se colocar em prática o cuidado com a Casa Comum", escreve Josi Mara Nolli, mestra em Educação pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) e formada em Comunicação Social - Jornalismo, pela Pontifícia Universidade Católica de Campinas (PUCC).
A comunicação é uma das estruturas do que o filósofo francês, Emmanuel Mounier, chama de universo pessoal – o universo da pessoa. À luz da Carta Encíclica Laudato Si’ (LS), a comunicação comparece sob múltiplos sentidos. Sentidos esses que, formando uma rede de significados, trazem à tona possibilidades que permitem ao homem ser e viver como pessoa . Tais possibilidades se dão, principalmente, porque as relações que o homem pode estabelecer com o outro e com a Casa Comum o descentralizam, colocando-o em amplas perspectivas abertas pela pessoa - aquela considerada em sua capacidade de ser comunhão e cuja dignidade é eminente.
Um dos sentidos de comunicação que comparece na Laudato Si’ é o de comunhão. A Carta traz reflexões sobre a comunhão fraterna, social e universal. Comunhão querendo dizer de uma experiência fundamental para a pessoa. Trata-se da experiência da comunicação que se contrapõe à afirmação solitária (como a exclusão do outro), à autossuficiência e à separação.
A comunicação implica o outro. O homem “é”, porque “é” também com o outro. Relação que encontra o seu sentido no “nós”. O “nós”, por sua vez, envolve as relações que se dão entre os homens na sociedade e na Casa Comum. Tudo na Casa Comum está interligado (LS, 91), está, portanto, em comunicação. “Tudo” significando o ser humano, os animais, as plantas, os mares, o ar, os recursos naturais etc. O homem que “é” com o outro, é também parte de um organismo, de um corpo que só pode ser compreendido no todo e com o "tudo". A vida e a existência estão em comunicação com esse organismo. Romper com essa comunicação é comprometer a vida e a existência do homem.
Os caminhos da amizade e do amor, profundas formas de comunhão, parecem estar perdidos nos revezes da fraternidade humana. É o homem que parece romper com a comunhão fraterna em um movimento de empobrecimento da humanidade. Sabemos que o “mundo” do outro, ou seja, suas vivências, experiências, situações, realidades, não é, como diria Mounier, um jardim de delícias (como não é, certamente, o nosso “mundo”). “É permanente provocação à luta, à adaptação, incita-nos a ir mais além. Constantemente reintroduz o risco e o sofrimento, exatamente quando nos parecia conduzir à paz”.
Contudo, a proposta da Laudato Si’ sinaliza uma comunicação preocupada em compreender o outro e, sobretudo, acolher o outro. Daí a experiência de uma comunhão fraterna, que não anula a singularidade da pessoa, nem sua identidade, antes afirma-a em uma relação em que é possível “ser todo para todos sem deixar de ser eu” . O homem que se compreende comunhão com o outro, sabe fazer-se comunhão com a Casa Comum. Quando o coração está verdadeiramente aberto à comunhão, nada e ninguém fica excluído desta fraternidade (LS, 92).
A Carta do Papa Francisco destaca também sinais evidentes de rupturas com os vínculos de integração e comunhão social. Em um movimento de comunhão não pode haver descartados, excluídos, privilegiados. Essa fragmentação tende a transformar-se em formas de agressividade social em que a comunicação fica comprometida, à medida que a sociedade trata de forma diferente um e outro, rompendo com as relações que se dão entre o “nós”.
Os reflexos das dificuldades de se estabelecer comunhão social são sentidos também no modo de o homem compreender a comunhão universal. Uns acham que podem explorar a Casa Comum em nome do crescimento econômico, que não significa “em todos os seus aspectos um verdadeiro progresso integral e uma melhoria da qualidade de vida” (LS, 46). A outros restam as consequências dessa exploração – o esgotamento de recursos e meios de subsistência, a destruição da identidade cultural, a imposição de um estilo de vida hegemônico e, por consequência, o aumento da miséria.
A comunhão universal, na perspectiva da Carta do Papa Francisco, diz de uma consciência amorosa de não estar separado dos outros seres do universo, antes cultivar uma relação de cuidado e de respeito. A casa é comum, aqui significando um espaço de comunicação contínua de tudo o que faz parte do planeta, das partes que formam o todo. E se uma das partes for desconsiderada ou excluída, cedo ou tarde o organismo adoece, tendo em vista serem partes vitais (essenciais e vivificadoras).
O homem que despreza o homem, que ignora os problemas da sociedade e deprecia o meio ambiente está se omitindo de ser parte integrante do organismo, atitude típica do individualismo. Ser parte é ter participação. Participação, por sua vez, pode significar atuação, presença, colaboração com o “tudo” e o todo de que se é parte. Por outro lado, pode querer dizer de um tornar o homem ciente de suas responsabilidades para com a Casa Comum e participá-lo dos processos de decisões que o afetam direta ou indiretamente.
Outra perspectiva sobre a comunicação que comparece na Laudato Si’ é a de um caminho, uma travessia, necessários para o movimento de personalização do homem. Essa comunicação leva o homem a sair de si e ir ao encontro do outro e da Casa Comum. Sair é movimento que o coloca a caminho. Esse caminho se faz, entre outros, na generosidade e no ato gratuito, “ou seja, numa palavra, na dádiva sem medida e sem esperança de recompensa. A economia da pessoa é uma economia de dádiva, não de compensação ou de cálculo” . Se faz das práticas conscientes que visam ao respeito com o outro e ao cuidado com o meio ambiente.
A Laudato Si’ propõe esse caminho como travessia fundamental do homem – do homem consumista ao homem consciente, do homem egoísta ao homem generoso, do homem egocentrista ao homem solidário que, à medida que avança nessa travessia, vai se tornando pessoa. Pessoa enredada nos fios da consciência amorosa e generosa de uma comunhão universal, social e fraterna. A generosidade e outras práticas que envolvem o cuidado com o outro e com a Casa Comum podem anular a solidão e o individualismo.
A Carta tece ainda uma rede de diálogos que envolve todos os habitantes do planeta, ou seja, ninguém fica de fora dessa comunicação. Há a preocupação de promover uma comunicação que atinja a vida, o coração e a consciência do homem. Aclara o diálogo que o homem deve estabelecer com o outro, em um movimento de partilha de alegrias, tarefas, responsabilidades. Esse diálogo torna inválido o trato ausente ou o acesso ao outro apenas porque o considera um repertório de informações úteis ou ainda como instrumento à disposição.
A Laudato Si’ enfatiza a comunicação pelo viés do diálogo como proposta de orientação e ação para se colocar em prática o cuidado com a Casa Comum. Trata-se de um diálogo consciente, interdisciplinar que chama à comunhão em seus diferentes aspectos.
Dialoga, entre outros, com os âmbitos político, social, econômico e educacional da sociedade, chamando-os ao exercício de suas responsabilidades, enfatizando a comunhão social que implica inclusão de todos, sem preferências. Destaca o diálogo entre o homem e a Casa Comum, querendo dizer da comunicação que existe entre os seres que nela habita. Diálogo esse que pode invalidar o autoritarismo e a dominação.
Comunicação diz ainda de um tornar comum uma ação. Toda a atividade, boa ou má, praticada no planeta Terra é sentida por todos e pelo “tudo” que está em comunicação. As ações, portanto, são comuns, no sentido de todos as receberem, mesmo que de diferentes formas ou intensidades. Essa comunicação “obriga-nos a pensar num único mundo, num projeto comum” (LS, 164). Daí o apelo da Laudato Si’ em práticas e ações pensadas não de forma isoladas beneficiando apenas os países mais ricos, mas tornar comum boas ações voltadas para o bem de todos, especialmente, dos menos favorecidos.
O exercício dessa comunicação – tornar comum uma ação que favoreça o homem e a Casa Comum, pode extinguir a autorreferencialidade e o isolamento do homem na própria consciência. Nesse movimento, o homem tende a ser menos individualista, pois pensar num único mundo e num único projeto é sentir-se parte e estar participado. Esse tornar uma ação comum faz-se via de personalização. O homem, que já não se sente solitário (porque é parte), nem se sente alienado (porque está participado) tende a consumir menos, abrindo possibilidades de trazer para a sua vida valores que não sejam tão somente os materiais.
Ao tratar da questão do bem comum, a Laudato Si’ reflete que quanto mais vazio está o coração, tanto mais o homem necessita de objetos para comprar, possuir e consumir e que “em tal contexto, parece não ser possível aceitar que a realidade lhe assinale limites; neste horizonte, não existe sequer um verdadeiro bem comum” (LS, 204) e completamos – nem sequer uma comum ação. Mas, conforme o homem compreende o movimento, os reflexos e as consequências da comum ação que envolve o organismo como um todo, o vazio pode dar lugar ao sentimento de comunhão.
A comunicação compreendida sob esses múltiplos aspectos dá ao homem a possibilidade de romper com o que o centraliza em si mesmo. Voltado para o outro e para a Casa Comum em uma atitude de comunhão, diálogo, comum ação, participação, o homem coloca-se em movimento de ser e viver como pessoa, tendo em vista que tais atitudes fazem parte do universo da pessoa.
Contudo, “a comunicação é mais rara que a felicidade e mais frágil que a beleza. Um nada pode a suspender ou quebrar entre duas pessoas, como podemos, pois, esperá-la entre um grande número?”. À luz da Laudato Si’ encontramos possível resposta, primeiro, no fato de a Carta propor a comunicação partindo da consciência de algo que é “comum”, pressupondo também o sentido de uma unidade.
Nessa unidade, possivelmente, está manifestado o desejo de um “mundo de pessoas”. Ao tratar de aspectos da comunicação que caracterizam a pessoa, a Lautado Si’, certamente, acredita na capacidade do homem de ser e viver como pessoa, portanto, em sua capacidade de promover comunicação sob esses diferentes aspectos.
A comunicação, em todos esses sentidos mencionados, é um movimento contínuo e seus obstáculos podem ser vencidos à medida que o homem traz novamente à roda o descentrar-se para tornar-se disponível aos outros, a compreensão, o acolhimento, a dádiva. Nesse movimento, à luz da Laudato Si’, estão envolvidos o homem e suas relações com o outro e com a Casa Comum.
[1] MOUNIER, Emmanuel. O personalismo. Trad. João Bénard da Costa. 3ª ed. Santos, SP: Martins Fontes, 1974.
[2] PP, Francisco. Laudato Si': sobre o cuidado da casa comum. São Paulo: Paulus, 2015. São Paulo: Edições Loyola, 2015.
[3] “Pessoa” aqui compreendida no sentido mounieriano.
[4] Mounier, 1974, p. 60.
[5] Mounier, 1974, p. 66.
[6] Ibid.
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Laudato Si’ e Comunicação: breves reflexões sobre as possibilidades da Pessoa - Instituto Humanitas Unisinos - IHU