02 Junho 2020
Alguns anos atrás, eu estava bebendo uma cerveja com um colega jornalista que tinha coberto o Vaticano por um longo tempo, discutindo um novo escândalo em que um cardeal que dirigia um importante dicastério vaticano tinha sido acusado de facilitar negócios para que os políticos italianos alugassem apartamentos em troca de seus votos sobre o financiamento da reforma de suas propriedades sob a lei dos “bens culturais” da Itália.
A reportagem é de John L. Allen Jr., publicada em Crux, 01-06-2020. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
“Você sabe, o que ele fez é obviamente corrupção”, disse o meu amigo, “mas eu duvido que isso atenda à clássica definição católica de pecado.”
O que ele quis dizer é que, para que algo seja subjetivamente pecaminoso, o pecador deve saber que está fazendo algo errado. No entanto, uma espécie de contrato “você coça as minhas costas, e eu coço as suas” tradicionalmente tem feito parte da prática empresarial italiana aceita, e é inteiramente possível que esse prelado não ache que havia algo errado nisso – o que talvez explique a cara de surpresa que ele mostrava sempre que você perguntava isso a ele.
Esse pequeno pano de fundo é útil para pensar sobre uma nova lei abrangente a respeito das compras e contratos decretada pelo papa Francisco nessa segunda-feira, porque ela equivale a um ataque frontal direto a dois aspectos fundamentais da Itália e, por extensão, aos negócios e à cultura política vaticanos: o nepotismo e o feudalismo.
Pode-se afirmar, na verdade, que nada do que o papa Francisco fez antes dessa segunda-feira tem maior potencial para verdadeiramente refazer os meios e métodos convencionais do Vaticano.
Em resumo, o novo sistema de compras visa a realizar duas coisas:
Primeiro, centraliza o controle sobre a concessão de contratos de bens e serviços para a Administração do Patrimônio da Sé Apostólica (APSA) na Cúria Romana, ou seja, os escritórios que administram os assuntos da Igreja global, e no Governo da Cidade do Vaticano para os territórios físicos do papa e o pessoal que os administra.
Segundo, cria um processo de licitação imparcial com uma comissão de funcionários com poderes para revisar as ofertas sem qualquer relação direta com os agentes da licitação.
Ambas as coisas podem parecer evidentes em termos das práticas empresariais ou governamentais normais em pelo menos algumas partes do mundo, incluindo os EUA, mas elas raramente tem sido praticadas na Itália, e certamente menos ainda no Vaticano.
No que diz respeito ao nepotismo, ele historicamente isso tem sido visto mais como uma virtude do que como um vício no Vaticano. Manter as coisas “nella famiglia”, “na família”, tem sido visto há muito tempo como mera prudência aqui, onde há um prêmio por trabalhar com pessoas de confiança. A ideia é que o Vaticano é um lugar único, com sua própria lógica e valores, e você deseja negociar com pessoas que entendam tudo isso.
Às vezes, esse instinto “nella famiglia” é expressado literalmente, como no fato de dar um tratamento favorável aos parentes de sangue do pessoal vaticano. Outras vezes, é metafórico, buscando relacionamentos com pessoas que são conhecidas e percebidas como leais.
De qualquer forma, tentar subverter isso, como esse novo sistema de compras propõe, é nada menos do que revolucionário. Talvez seja por isso que Giuseppe Pignatone, presidente do tribunal vaticano encarregado de lidar com os processos decorrentes de supostas violações do novo sistema, disse nessa segunda-feira que poderá ser um trabalho “muito exigente”.
No que diz respeito ao feudalismo, esse também é um aspecto consagrado pela cultura vaticana, segundo o qual as várias congregações, conselhos, comissões, escritórios e secretariados atuam todos como pequenos reinos independentes, com suas próprias regras, jargões e culturas informais.
Assim como no período feudal real, quando as pessoas nos vilarejos a apenas alguns quilômetros de distância podiam passar a vida inteira sem se encontrar, a menos que entrassem em guerra, há muitos empregados vaticanos que têm trabalhado do outro lado do corredor de outro departamento por 20 ou 30 anos, mas realmente nunca falou com alguém que trabalha lá, a não ser para dizer “Buongiorno”.
Parte da razão disso é histórica. Uma reforma levada a cabo pelo papa Pio X em 1908 insistia que cada departamento fosse supremo e autônomo em sua própria área, com o objetivo de resolver o problema das “compras por jurisdição”. Com efeito, as pessoas que queriam algo do Vaticano e não conseguiam conseguir em um lugar simplesmente iam de um lugar para outro até que conseguissem a resposta que desejavam, o que era uma receita para a corrupção e a incoerência.
Outra razão é estrutural, pois supostamente um empregado de um departamento não deve poder ligar para outro colega em outro departamento e obter informações que não haviam sido autorizadas pelos canais oficiais. Sabendo que geralmente é assim que as empresas italianas funcionam, o Vaticano construiu algo como aquilo que a tradição judaica chamaria de “cerca ao redor da Torá”, erguendo barreiras tão altas a esse tipo de troca informal que são praticamente impenetráveis.
De qualquer forma, centralizando o controle sobre os contratos e exigindo que várias entidades agrupem recursos, Francisco também está desafiando diretamente essa tradição.
Até aqui, teria sido possível argumentar que o papa Francisco talvez não estivesse verdadeiramente levando a sério a reforma financeira, ou talvez simplesmente desistiu dela, porque a tendência parecia ser favorável à consolidação do status quo em vez de abalá-lo.
Depois de hoje, essa não é mais uma postura sustentável, porque essa nova lei ataca a cultura interna do Vaticano em seu núcleo. Resta saber se ela vai funcionar, é claro, mas o pontífice e seus conselheiros precisam ao menos ser elogiados pela audácia.
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Papa lança ataque frontal ao nepotismo e ao feudalismo no Vaticano - Instituto Humanitas Unisinos - IHU