04 Mai 2020
“Consagrar” um país ou região a Maria (ou ao “Imaculado Coração de Maria”) é teologicamente problemático e controverso. O Vaticano tentou corrigir essa abordagem equivocada há duas décadas.
A opinião é do teólogo Hendro Munsterman, pesquisador na Tilburg University e autor de textos sobre fé e religião para o jornal holandês Nederlands Dagblad. O artigo foi publicado em La Croix International, 30-04-2020. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
As Conferências dos Bispos da Itália, Estados Unidos e Canadá “consagraram” seus países à Virgem Maria no dia 1º de maio, o mês tradicionalmente dedicado a homenagear a mãe de Jesus.
As lideranças da Igreja italiana dizem que seu povo pediu que eles fizessem isso “para que ela possa proteger e salvar (o país) da atual pandemia”. A “consagração” ocorreu na noite de sexta-feira em um santuário mariano do século XV, perto de Bergamo, capital de uma das províncias mais atingidas pela Covid-19.
O arcebispo de Los Angeles, José Gomez, presidente da Conferência dos Bispos dos EUA (USCCB), diz que a consagração dos Estados Unidos a Maria é “a ocasião para rezar pela proteção contínua de Nossa Senhora aos vulneráveis, pela cura dos doentes e pela sabedoria para quem trabalha para curar desse terrível vírus”.
Nas últimas semanas, dezenas de bispos individuais e outras Conferências Episcopais fizeram o mesmo, incluindo prelados da América Latina, Portugal, Espanha, Estônia e Irlanda.
Mas “consagrar” um país ou região a Maria (ou ao “Imaculado Coração de Maria”) é teologicamente problemático e controverso.
A Congregação para o Culto Divino do Vaticano publicou um “Diretório sobre Piedade Popular e Liturgia” em 2001 [disponível aqui, em espanhol], no qual estabeleceu princípios e diretrizes para as devoções.
Ele afirma que o termo latino consecratio é mais reservado “para a oferta de si mesmo que tem Deus como término, a totalidade e a perpetuidade como características, a intervenção da Igreja como garantia, os sacramentos do Batismo e da Confirmação como fundamento”.
Em outras palavras, não podemos nos consagrar a Maria, e certamente não fora dos sacramentos da iniciação. Essa é uma mudança de visão do Vaticano, baseada nos avanços da “teologia litúrgica e no consequente uso rigoroso da terminologia”.
E, de fato, pelo menos desde o Concílio Vaticano II (1962-1965), a Igreja Católica Romana fez uma distinção explícita entre “adoração”, cujo objeto é apenas Deus, e “veneração”, que pode se voltar a Maria e a outros santos reconhecidos.
O Concílio disse que a veneração a Maria “difere essencialmente do culto de adoração, que se presta por igual” às três Pessoas da Trindade “e favorece-o poderosamente” (Lumen gentium, n. 66).
Dentro da teologia católica e das práticas devocionais, isso é nada mais, nada menos do que “louvar” a mãe de Cristo “pelas grandes obras” que Deus lhe fez, como Maria exclama em seu cântico no Evangelho (Lc 1,46-55).
Assim, sempre que uma devoção mariana usa termos que ameaçam diluir a distinção essencial entre Maria como criatura e Deus como Criador, essas tradições devem ser ajustadas e reorientadas.
É por isso que o Papa João Paulo II substituiu cada vez mais o termo consagração por “entrega”, o que ele fez, por exemplo, após o atentado contra sua vida no dia 13 de maio de 1981, festa de Nossa Senhora de Fátima. E a Pontifícia Academia Mariana Internacional apontou para essa importante mudança em 2005.
A devoção a Maria originou-se na Idade Média em uma cultura feudal e em uma sociedade hierarquicamente estruturada, na qual a tradição cavalheiresca ressoava com a rendição de Maria a Deus.
Consagrar-se a Maria é algo tão culturalmente definido que, quando descolado dessa cultura e repetido – de modo inalterado – em uma cultura mais moderna e democrática, não é mais entendido da mesma forma, nem significa a mesma coisa.
Isso também se aplica, por exemplo, à ideia de um santo padroeiro. O modo como o sistema feudal medieval entendia isso é incompreensível hoje.
Os fiéis têm se dedicado à Virgem Maria desde a Idade Média. São Luís Maria Grignion de Montfort (1673-1716) “propôs aos fiéis a a consagração a Jesus por meio de Maria como uma forma eficaz de viver seu compromisso batismal”.
Infelizmente, o caráter cristocêntrico dessa consagração foi frequentemente ignorado. Isso ocorre ainda mais no nosso contexto moderno, quando Maria ainda é apresentada como uma rainha a quem nos rendemos como soldados escravos. O risco é que ela se torne mais uma deusa mãe pagã que pode existir fora do vínculo com o Deus Triúno.
No curso da história, no entanto, outras pessoas também foram “dedicadas” a Maria, começando pelos recém-batizados. E, no século XX, países, dioceses e indivíduos foram dedicados a Maria ou ao seu “Imaculado Coração”. O Papa Pio XII, por exemplo, consagrou o mundo inteiro ao Imaculado Coração de Maria em 1942.
A consagração a Maria, de culto medieval pessoal de piedade, tornou-se uma devoção que muitas vezes tem conotações apocalípticas, também inspiradas em uma interpretação maximalista das aparições de Fátima.
Mas, com João Paulo II, essa prática mudou. E o Papa Francisco, durante a sua visita a Fátima em 2017, também confirmou essa mudança durante a sua oração diante da estátua da Virgem Maria, quando disse: “A Ti me entrego. Unido aos meus irmãos, por Ti, a Deus me consagro”.
A partir de uma sólida teologia católica, os fiéis podem entregar a si mesmos ou a outros à oração de Maria.
“A oração de um fiel justo é poderosa e eficaz”, diz a Epístola de São Tiago, e a tradição católica vê Maria como o ser humano justo e redimido por excelência.
Mas Maria não possui seu próprio “poder de ação” em nível sobrenatural. Naturalmente, ele pertence exclusivamente a Deus.
Assim, é possível se consagrar (não outros indivíduos ou países) a Deus; mas somente a Deus, e não a Maria ou a qualquer outro santo.
Mas, além dessa verdade teológica, há outro ponto importante que merece atenção.
Em um tempo da história da Igreja em que a teologia ocidental está redescobrindo o papel do Espírito Santo, seria bom enfatizar mais claramente o “poder de agir” da Terceira Pessoa da Santíssima Trindade – também na forma da crença popular.
Afinal, a antiga ladainha “Veni Sancte Spiritus” implora ao Espírito Santo: “curai o que está enfermo” e “conduzi o que está errante”.
Por que toda devoção popular deve girar em torno de Maria e de outros santos? Muitos teólogos católicos apontaram, com razão, nas últimas décadas, que Maria frequentemente substitui o Espírito Santo, por exemplo, como “Advogada” e “Consoladora”.
Para onde foi a nossa criatividade? Por que os católicos dos nossos tempos se apegam com tanta frequência e com muita avidez a práticas devocionais que foram superadas pela própria teologia católica? A questão é se esses tipos de práticas antigas mantêm a fé viva ou, pelo contrário, a invalidam e a transformam em uma peça de museu.
Por que não deveríamos seguir novos caminhos – mas, na verdade, completamente tradicionais –, pedindo aos bispos que invoquem o Espírito Santo nesta crise do coronavírus? Individual ou coletivamente.
Às vezes, eu até sonho com um gigantesco encontro via Zoom em tempos de quarentena, em que um bispo, como principal pastor das comunidades de fé que lhe foram confiadas, reza ao Espírito Santo.
Os fiéis poderiam rezar a boa e velha “Novena ao Espírito Santo” – juntos ou individualmente. E poderiam acender uma vela todos os dias em todo lar cristão.
Por favor, tentemos algo novo!
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Por que os bispos continuam “consagrando” seus países a Maria? Artigo de Hendro Munsterman - Instituto Humanitas Unisinos - IHU