31 Março 2020
"Não se trata de confiar em rápidas soluções milagrosas, devemos nos converter de mentalidade e de estilo de vida, devemos discernir entre o que é necessário e o que não é, deixar de confiar em nossas seguranças e rotinas, deixar de nos sentirmos fortes e capazes de tudo, não sermos gananciosos por lucro, nem seguir anestesiados frente a injustiças e guerras, enquanto a terra está gravemente doente. Restabelecermos o rumo para o Senhor e para os demais, nos abraçarmos à cruz de Jesus como leme, abraçar as contrariedades da vida, reencontrar na cruz a vida que nos espera, sabendo que o Senhor ressuscitou e vive ao nosso lado, deixar espaço para que o Espírito atue com a sua criatividade", escreve Victor Codina, jesuíta boliviano, em artigo publicado por Religión Digital, 29-03-2020. A tradução é de Wagner Fernandes de Azevedo.
A impactante figura branca de Francisco, avançando só e em silêncio, em uma tarde romana escura e chuvosa, desde a basílica de São Pedro à Praça totalmente vazia, para se dirigir desde ali a todo o mundo, não poderemos esquecer facilmente. Recorda aquela outra imagem de Francisco avançando só e a pé pelo campo de concentração de Auschwitz.
Os jornais reproduziram a imagem do Papa diante da Praça São Pedro vazia, porém silenciaram seu conteúdo. Os meios de comunicação que nos anunciam aterrorizantes mensagens de que o pior está ainda por chegar, que aumentam os infectados e os mortos, que os hospitais e unidades de cuidado intensivo estão à beira do colapso, que faltam respiradores, máscaras e instrumentos para o teste, falta pessoal, que a crise econômica será muito grave, em uma palavra, nos produz pânico e medo. Pelo contrário, Francisco nos recorda as palavras de Jesus a seus discípulos temorizados na barca agitada pelas ondas do mar da Galileia: “Por que estás com tanto medo?” (Mc 4, 40).
Quando nós, como os discípulos, pensamos que ao Senhor não importa que sucumbamos, Francisco nos diz que somos importantes para Deus, que devemos remar unidos, que todos sejamos um, que a tempestade desmascarou nossa vulnerabilidade e deixa desveladas nossas falsas seguranças, o problema afeta a nós todos, temos um pertencimento comum de irmãos, formamos um só mundo. No fundo o dilema é entre nos acreditarmos autossuficientes ou reconhecer que somente nos fundimos e necessitamos convidar Jesus a nossa barca e ter fé, uma fé que não consiste somente em crer que Deus existe, mas sim em ir rumo ao Senhor e confiar nele, que nos dá serenidade em nossas tormentas.
Não se trata de confiar em rápidas soluções milagrosas, devemos nos converter de mentalidade e de estilo de vida, devemos discernir entre o que é necessário e o que não é, deixar de confiar em nossas seguranças e rotinas, deixar de nos sentirmos fortes e capazes de tudo, não sermos gananciosos por lucro, nem seguir anestesiados frente a injustiças e guerras, enquanto a terra está gravemente doente. Restabelecermos o rumo para o Senhor e para os demais, nos abraçarmos à cruz de Jesus como leme, abraçar as contrariedades da vida, reencontrar na cruz a vida que nos espera, sabendo que o Senhor ressuscitou e vive ao nosso lado, deixar espaço para que o Espírito atue com a sua criatividade.
É preciso ler devagar essa homilia que acaba com uma oração confiando a saúde do mundo ao Senhor, pela intercessão de Maria: “Senhor, abençoa o mundo, dá saúde aos corpos e conforto aos corações! Pedes-nos para não ter medo; a nossa fé, porém, é fraca e sentimo-nos temerosos. Mas Tu, Senhor, não nos deixes à mercê da tempestade. Continua a repetir-nos: ‘Não tenhais medo!’ (Mt 14, 27). E nós, juntamente com Pedro, ‘confiamos-Te todas as nossas preocupações, porque Tu tens cuidado de nós’ (cf. 1 Pd 5, 7) ”.
Papa Francisco beija os pés do Cristo "que salvou Roma da Grande Peste", no momento da oração desta sexta-feira. Foto: Religión Digital
Ao final, Francisco com a custódia deu a benção Urbi et orbi, a Roma e ao mundo. E se retirou em silêncio, enquanto ainda chovia e anoitecia em Roma, com as ruas vazias.
Joseph Ratzinger, Bento XVI, sendo Papa, escreveu três volumes sobre Jesus de Nazaré e ao final do segundo volume também cita a tempestade dos discípulos no lago, enquanto Jesus dorme; ao ser acordado por eles, os repreende pela pouca fé. A tempestade à qual Bento XVI aludia era uma tempestade eclesial: abusos sexuais e escândalos nas finanças e cúria vaticana.
Agora Francisco não se refere simplesmente a uma tempestade da Igreja, mas sim a uma tempestade que afeta toda a humanidade, que se vê em perigo, por isso sua mensagem e sua benção são para Roma e para o mundo inteiro, Urbi et Orbi, porque o problema não é somente eclesial, mas sim existencial, profundamente humano. Os milhões de telespectadores de todo o mundo que seguiram essa cerimônia, seguramente se sentiram confortados e esperançados, com menos medo e mais esperança. Porque a questão fundamental é escolher entre o medo e a fé.
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“Francisco nos diz que somos importantes para Deus, que devemos remar unidos”. Artigo de Victor Codina, s.j - Instituto Humanitas Unisinos - IHU