17 Março 2020
"Um cuidado desse livro é educar as pessoas para pensar a fé de forma ecumênica e em uma dimensão inter-religiosa da espiritualidade. Essa ecumenicidade ampla e laical é dimensão fundamental das novas teologias da libertação", escreve Eliseu Wisniewski, presbítero da Congregação da Missão Província do Sul (padres vicentinos), mestre em Teologia pela Pontifícia Universidade Católica do Paraná (PUCPR) e professor na Faculdade Vicentina (FAVIC), ao comentar o livro de Marcelo Barros, Teologias da Libertação para os nossos dias. Petrópolis: Vozes, 2020.
A Teologia da Libertação como “reflexão crítica da práxis à luz da fé” (G. Gutiérrez) é a teologia que continua se propondo a enfrentar uma das maiores questões colocadas à fé na atualidade: a “questão social”. Partiu sempre da realidade e, concretamente, da realidade de pobreza que nos rodeia. Essa teologia que nasceu em território latino-americano- optou fundamentalmente pelos pobres: a presença de Deus no pobre e em sua luta pela libertação. Sua trajetória mostra que ela não navegou em águas calmas. Há muitos interessados em sua morte... Felizmente ela goza de boa saúde e continua a sua jornada. Diante disso, nenhuma outra teologia em tão pouco tempo se submeteu a tantas avaliações e balanços críticos como esta teologia.
Marcelo Barros – monge beneditino, teólogo, escritor, assessor das Comunidades Eclesiais de Base e de movimentos sociais. Foi coordenador latino-americano da Associação Ecumênica de Teólogos do Terceiro Mundo (ASETT) – na obra: Teologias da Libertação para os nossos dias - busca responder às perguntas: como está a Teologia da Libertação e quais são suas perspectivas atuais. Não se trata de uma obra acadêmica. São páginas testemunhais de quem completou 50 anos de ministério presbiteral, vivido exatamente a partir do tempo de recepção da II Conferência dos Bispos Latino-americanos em Medellín e o surgimento da caminhada eclesial que se compreendia como serviço de libertação à humanidade e a cada pessoa por inteiro.
O autor tem consciência de que falar em uma proposta de teologias da libertação para nossos dias é muito ambicioso e arriscado. Esclarece que: “devemos falar no plural de teologias da libertação (elaboradas sempre a partir de experiências comunitárias e coletivas populares, mesmo se condensadas e expressas por um único autor ou autora) e teologias sobre a libertação, produzidas de forma mais sistemática e acadêmica, com orientação aberta e na perspectiva transformadora e a partir da opção pelos pobres” (p. 14).
A obra é prefaciada por Leonardo Boff. Destaca a competência do autor e a relevância desta reflexão. Ela é compreensível e completa por: “abordar os principais temas e desafios desse tipo de teologia” (p. 9), as “principais expressões” (p. 10) e por revelar uma “maneira nova de fazer Teologia da Libertação nos dias de hoje” (p. 11).
Seguindo o conhecido método ver-julgar-agir (com seus passos característicos, ensina-nos a Conferência de Aparecida, esse método tem impulsionado ao compromisso evangélico diante de muitas situações, em especial as mais sofridas (DAp n.19)) o livro, contendo 12 capítulos, está dividido em três partes: “Ver os sinais dos tempos” na primeira parte (p. 21-112), “O que o Espírito diz, hoje, às Igrejas” na segunda parte (p. 113-226), “Vai e faze o mesmo” (Lc 10,37) na terceira parte (p. 267-320).
A primeira parte abrange os capítulos I ao IV. Tem como ponto de partida as muitas opressões que pesam sobre nós: o extermínio dos povos indígenas (p. 24-25); o tráfico e a escravidão dos negros sequestrados da África (p. 25-26); o capitalismo como o reprodutor do colonialismo (p. 26-30); a conquista e a devastação da Mãe Terra (p. 30-32). Em seguida chama-se a atenção para a vocação interior de todo ser humano à libertação (p. 38-52); e para os processos de libertação (p. 53-75). Mostra nestas páginas que “o desafio da libertação integral (tanto social e politica como humana, cultural e espiritual) e de todo ser humano, de um modo ou de outro, se tornou central na história das diversas tradições espirituais e, especialmente das Igrejas cristãs na América Latina” (p. 110). Assim sendo, no último capítulo desta parte destaca-se o importante papel da Igreja dos pobres nos processos sociais e políticos transformadores (p. 76-112).
A segunda parte abrange os capítulos V ao X. Estes buscam aprofundar teologicamente a tradição libertadora. Primeiramente se olha para a Sagrada Escritura e busca-se entender a partir dela o projeto libertador de Deus (p. 115-122) merecendo aí destaque: o Êxodo (p. 122-128); a tradição libertadora nos profetas (p. 128-130); a libertação e a sabedoria bíblica (p. 130-134); os salmos (p. 135-139); as revelações divinas na natureza e na história (p. 139-142). Explora-se a revolução judaica do cristianismo (p. 147-173). Tecem-se considerações sobre outro jeito de ser Igreja: uma Igreja servidora do reinado divino (p. 175-176); a missão evangelizadora da Igreja (p. 176-178), o papel da Igreja local na comunhão universal (p. 178-184), uma Igreja moldada pela Eucaristia (p. 184-188). Em seguida, destacam-se as experiências do Espírito na caminhada da América Latina e Caribe: a voz do Espírito nos movimentos de libertação (p. 192-193), as vozes do Espírito na resistência indígena e das comunidades afrodescendentes (p. 193-195), o Espirito Santo como fonte de subversão social e política (p. 196-198), as moções do Espírito nas comunidades da caminhada: a) experiência de comunidade (p. 199-200); b) a luta pela vida como chão das comunidades e movimentos (p. 200-201); c) o protagonismo das mulheres na caminhada (p. 201), d) a mística do cuidado com a vida (p. 202); e) a forma de ler a Bíblia a partir da vida (p. 202-203); f) a oração que brota da vida e leva à vida (p. 203); g) a ação social e política pela transformação do mundo (p. 203-204); h) práxis do martírio na América Latina (p. 204-205); i) a prática do macroecumenismo de base (p. 206-207); j) atenção ao que o Espírito diz às Igrejas (p. 207-210). Justifica-se o porquê de uma espiritualidade sociopolítica libertadora quais seriam as características (p. 211- 248).
A segunda parte, conclui-se, com o delineamento de algumas pistas para uma Teologia da Libertação que parta da realidade atual. Isso porque “desde os anos de 1980, a Teologia que antes falava do pobre apenas na sua concepção social e política de oprimidos passou a conviver com os conceitos de gênero (masculino e feminino), de raça, de identidade sexual, etc. E assim, surgiram teologias da libertação feministas, negras e indígenas, gays, queers e outras como a Ecoteologia, a teologia do cosmos, teologia animal e assim por diante” (p. 250). Levando tudo isso em consideração - a nova agenda teológica olha com atenção: a pluralidade das teologias da libertação (p. 250-253), a corporeidade (p. 253-259), as teologias ecofeministas e descolonizadoras (p. 259-264), os novos paradigmas civilizatórios (p. 264-266).
A terceira parte abrange os capítulos XI e XII. Tocam em questões que dão sentido à obra como um todo: uma teologia da libertação para os nossos dias. Os dois capítulos que compõem esta terceira parte - buscam discernir os desafios, as tarefas e os passos a seguir hoje por uma teologia que continue a vocação das teologias da libertação na América Latina e especificamente no Brasil.
Para melhor tratar das perspectivas e caminhos possíveis para as teologias da libertação na realidade atual, o autor, resume alguns capítulos e escolhe alguns trechos do livro póstumo de José Comblin - intitulado: O Espírito Santo e a Tradição de Jesus (Nhanduti Editora, 2012). Estas páginas apresentam um resumo da história da teologia e a partir daí lança as questões que precisamos ter em mente para formulá-las hoje (p. 269-282). Destaca a relevância do pensamento de J. Comblin (*1923/+2011). Sua vida acadêmica e pastoral, suas observações contribuem para levantar alguns questionamentos: a) são poucos os teólogos e teólogas que cuidam de manter o vínculo com as bases e as organizações sociais. É necessária a relação entre Teologia e movimentos sociais que é preciso hoje retomar e fortalecer (cf. p. 279); b) a inserção não pode ser apenas algo profissional e sim como mística de vida. É desafio que a nossa teologia vá além do círculo vicioso no qual se escreve uns para os outros companheiros/teólogos lerem. Muitas vezes nem diálogo estes escritos suscitam (p. 279); c) J. Comblin insiste na teologia como instrumento de evangelização, entendida como: testemunho do Reino de Deus e não apenas o anúncio de uma doutrina religiosa (p. 280).
No plano mais interno das próprias teologias libertação, estas seriam as tarefas a cumprir:
a) Teologia da Libertação: libertação da Teologia: a Teologia da Libertação, assim como as pastorais sociais em uma linha libertadora não conseguem se desenvolver e tomar um rumo dentro de um sistema de cristandade (p. 285-292);
b) o desafio da Teologia Libertação e os novos pentecostalismos: diante dos pentecostalismos conservadores e reacionários, o desafio para as teologias libertação é refazer a união entre as duas dimensões da fé: o caráter pentecostal profético e o caráter transformador do mundo (p. 292-298);
c) Novas teologias da libertação na era da globalização: a tradição bíblica sempre criticou a exigência de sacrifícios humanos em nome de instituições humanas divinizadas como idolatria (p. 298-300);
d) o desafio da política: a democracia funciona quando existe e onde há o respeito pelos Direitos Humanos (p. 300);
e) os meios de comunicação e as guerras híbridas: nas chamadas guerras híbridas prefere-se usar os meios de comunicação para a propagação de notícias falsas como estratégia contra os inimigos do que atacar o país militarmente (p. 301);
f) Teologia da Libertação e os processos latino-americanos: é preciso pensar em uma globalização a partir dos pobres (p. 301-305);
g) o desafio do pluralismo: o sustento de uma vida social diferente pautando-se no projeto de vida oferecido pela diversidade das tradições espirituais e não mais por uma única Tradição religiosa, a cristã (p. 305);
h) o desafio do risco nuclear: é urgente que a Teologia da Libertação se posicione contra o armamentismo nuclear que ameaça a vida no planeta (p. 305-306);
i) o desafio do paradigma ecológico: incentivar o resgate do caráter sagrado da Terra, resgate das tradições espirituais das culturas oprimidas e dos pobres que, geralmente, tem veneração e respeito pela Terra como a grande Mãe (p. 306-307);
j) o desafio do especifismo e o cuidado com os animais: pesquisas têm revelado como há provas de sensibilidade e de sofrimento sentido por pare de várias espécies animais. Cada vez mais no mundo se desenvolve a denúncia de especifismo, ou seja, o antropocentrismo traduzido no privilégio da espécie humana como única detentora de direitos e a qual se dá total domínio de todas as outras espécies. A nossa responsabilidade com os animais é um terma que tem provocado discussões e permanece um desafio para as novas teologias da libertação (p. 307-309);
k) Teologias da Libertação e o paradigma do bem-viver: o bem viver é um conceito utópico e amplo. Exige passarmos do individualismo ao sentido de comunidade, da civilização da riqueza à cultura da partilha e, portanto da sobriedade, de uma espiritualidade desencarnada e alienada a uma forma de viver a fé comprometida com a libertação de toda a humanidade, de cada ser humano por inteiro e com a defesa de todo ser vivo e da natureza (p. 309-313);
l) Teologias da Libertação e o desafio de uma aliança da humanidade pela vida: uma proposta de aliança da humanidade pela vida e contra a comercialização da natureza, das pessoas e até das próprias pesquisas sobre a vida humana e de todos os seres humanos (p. 313-316).
Aí está a proposta deste livro de natureza testemunhal: “posso dizer diante de Deus que meu caminho de monge, de presbítero, servidor dos irmãos e irmãs mais empobrecidos e de estudante encantado pela Palavra de Deus na Bíblia, desde aquela época foi sempre marcada pela espiritualidade e pela pastoral desencadeada pela inserção eclesial no meio dos mais pobres, pela emergência sempre maior dos movimentos sociais organizados a partir dos oprimidos e da Teologia da Libertação, surgida desse processo” (p. 14-15).
O autor por sua trajetória de vida mostra familiaridade com o assunto abordado. Estamos diante de um excelente livro que trata desta forma de fazer teologia “como ato segundo” (C. Boff) com seriedade, objetividade e atenção crítica. Mostra que a Teologia da Libertação, com tudo que viveu e sofreu (conflitos, tensões, acusações, perseguições, condenações, controle doutrinal) continua viva, sobretudo com o papa Francisco (Igreja pobre para os pobres / Igreja em saída para as periferias do mundo), por isso, sua tarefa consiste em expandir seus horizontes diante das pobrezas antropológicas/existenciais/afetivas, socioeconômicas, políticas, das questões ecológicas, as injustiças de gênero e etnia, a superação de preconceitos inter-religiosos. A Teologia da Libertação continua bem presente na vida da Igreja. Por causa dela os pobres não estão esquecidos da atenção teológica que merecem. A opção pelos pobres não é uma escolha sociológica e política, mas reconhecida como algo essencial e constitutivo da Igreja. Cabe à teologia da América Latina avançar em sua caminhada construindo novos paradigmas de libertação.
Um cuidado desse livro é educar as pessoas para pensar a fé de forma ecumênica e em uma dimensão inter-religiosa da espiritualidade. Essa ecumenicidade ampla e laical é dimensão fundamental das novas teologias da libertação. Vale ver neste livro a abordagem dos principais temas, desafios e expressões desse tipo de teologia – tratados com seriedade através de uma linguagem viva, acessível ao leitor e de fácil compreensão.
O título do arquivo foi extraído de: BARROS, Marcelo. Teologias da Libertação para os nossos dias. Petrópolis: Vozes, 2020, 336 p., 135 x 21mm – ISBN 9788532662644
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Teologias da Libertação para os nossos dias - Instituto Humanitas Unisinos - IHU