21 Janeiro 2020
"Cidade deixou de investir em abastecimento há décadas – e, como todo o país, vomita esgotos nas represas. Tudo piorou com corte de verbas de Bolsonaro e plano de sucatear a Cedae. Que venha a rebeldia civilizatória de nova Revolta da Vacina!", escreve Tainá de Paula, arquiteta e urbanista, integrante da equipe de assessoria técnica do MTST e membro da Rede BrCidades, em artigo publicado por OutrasPalavras, 17-01-2020.
Tingido de verde pelo esgoto, o rio Guandu deságua num reservatório da Cedae. Fonte: OutrasPalavras
O título do texto é provocador. O Rio de Janeiro entra em 2020 como a capital mundial da arquitetura, signatária de tratados internacionais, incluindo a agenda 2030 da ONU que pontua uma série de objetivos de desenvolvimento sustentável para as cidades, ou seja, temos uma década para acertar o passo com nossas pactuações mundiais.
Nas últimas semanas a população do município do Rio, e de alguns municípios da Região Metropolitana, vive um verdadeiro terror de desinformação por conta das várias notícias desencontradas em relação à qualidade da água que chega em suas torneiras. São várias informações sobre mau cheiro, água turva, substâncias suspensas e mudança no gosto da água. A Companhia Estadual de Águas e Esgoto (CEDAE), responsável pelo abastecimento da região, demorou uma semana e meia para definir o protocolo de informação e controle da situação, assumindo assim que há problemas em relação à qualidade da água fluminense. A empresa chegou a emitir nota afirmando que estaria tudo sob controle, inclusive contradizendo a secretaria de Saúde do Estado, que registrou aumento de casos de doenças de veiculação hídrica no sistema.
A verdade é que o sistema de tratamento do Rio de Janeiro faliu. Não há melhor definição que esta para um sistema que não vê alteração de grande dimensão desde 1951, data da sua implantação. O rio Paraíba do Sul e as estações do sistema Guandu e do Sistema Imunana Laranjal (que abastece Niterói, São Gonçalo e região) são hoje incapazes de garantir a qualidade e a distribuição de água para cidades da Região Metropolitana do Rio, a terceira maior da América Latina.
Há setenta anos estamos lidando com a falta de ampliação do uso dos nossos recursos hídricos de forma indiscriminada, sem que haja nenhuma gestão responsável desse conjunto hídrico. A receita é simples: se não conseguirmos reduzir a poluição dos rios, não conseguiremos garantir a potabilidade de nossa água. Nesse sentido, é importante sustentar a tese de que os recursos do Rio e do país são finitos, uma vez que isto depende única e exclusivamente de gestão responsável dos mesmos.
Também é importante destacar que estamos na contramão do entendimento mundial no que se refere à utilização e ao planejamento das águas. O fato é que a expansão indiscriminada das cidades ajudou a disseminar a agenda da contaminação e do adoecimento da população periférica e favelada que há tempos sofre com um péssimo serviço – ou inexistência – de acesso ao sistema de saneamento básico.
Vale destacar que, no Brasil, apenas 37% do esgoto domiciliar é tratado. Na cidade do Rio de Janeiro a situação pode ser ainda pior, uma vez que não há dados confiáveis disponíveis para consulta. Portanto, não se trata de uma situação que envolve apenas as favelas, estamos falando da cidade formal. Os planos municipais de saneamento previam cobrir a totalidade das cidades num período entre 15 e 25 anos, mas na larga maioria dos municípios – inclusive no Rio, cujo plano data de 2015 – nada foi feito nesse sentido até o presente momento.
O casamento da agenda de saneamento básico com o abastecimento de água se faz urgente. A presença de coliformes fecais, cianobactérias e outras substâncias na água – em tese já tratadas – são sintomas de contaminação dos corpos hídricos. É necessário investir urgentemente em saneamento básico. Não é admissível outro modelo de cidade, a não ser aquele que enfrente o problema da falta de urbanização de favelas e coloque como prioridade a implantação do controle de condomínios nobres do Rio. Muitos deles jogam seu esgoto in natura na rede de drenagem ou diretamente nas lagoas e rios, como é o caso de vários edifícios da Barra da Tijuca e Baixada de Jacarepaguá.
Também se faz necessário ampliar o debate sobre melhoria habitacional, onde as instalações hidrossanitárias e banheiros precisam ser urgentemente pensados. O Brasil está entre os 10 países do mundo com o maior número de domicílios sem banheiro.
Numa cidade tropical com um índice pluviométrico como o do Rio de Janeiro, não pensar em reutilização de águas pluviais é criminoso. Como também é criminoso não pensar no fato de que Bolsonaro reduziu em 21% o orçamento para o saneamento básico do Brasil em 2020 e extinguiu o ministério das Cidades. Outro ponto bastante questionável e pouco debatido é a utilização do fundo da CEDAE, no valor de 150 milhões de reais, para qualquer outra coisa que não seja a distribuição justa dessa verba para o saneamento de toda a cidade. O Rio de Janeiro tem apenas 35% do seu esgoto tratado, uma média menor que a nacional.
É visível que estão sucateando a CEDAE para depois privatizá-la integralmente. O sistema de qualidade de água, assim como o controle de vazamentos, é altamente deficitário se comparável a outros países onde robôs e drones fazem o acompanhamento da rede, sistema de temperatura e kits de qualidade caseiros. Alguém já parou para pensar por que não há um sensor de controle e tipificação de substâncias nas nossas caixas d’água? O Brasil é um dos países com maior índice de doenças de veiculação hídrica.
É fato que a CEDAE precisa melhorar, mas o seu sucateamento parece ser proposital, visto que a empresa é o carro chefe do pacote de desestatização do atual governador. Agora, importante questionarmos: a privatização trará melhorias para todos, ou apenas acirrará o racismo ambiental presente nas cidades? Sem dúvidas, a “livre concorrência” costuma trazer melhorias, principalmente num sistema previamente sucateado. Porém, o que acontecerá com aqueles que não puderem pagar por essas melhorias?
Recentemente, o ministro da Economia, Paulo Guedes, disse que com a água acontecerá o mesmo que ocorreu com o setor de telefonia celular. Porém, é preciso lembrar que o setor opera muito mal em diversas cidades do País. A qualidade do serviço varia de lugar para lugar de acordo com a existência de demanda satisfatória à empresa, assim como o pacote integral de serviços. Então, é importante perguntar: vai ter água e esgoto pra todo mundo, independente do valor da taxa? Importante refletir que vive-se sem celular, mas não se vive sem água.
A disputa está dada: seremos nós, moradores das cidades, que denunciaremos a agenda de retrocesso e garantiremos as revoltas cotidianas. Ouso dizer que está aberta a Revolta da Água na cidade do Rio de Janeiro contra um prefeito adormecido e um governador em férias. Façamos a nova Revolta da Vacina.
E será pouco. Acumulemos forças para a Revolta das Cidades que urge.
FECHAR
Comunique à redação erros de português, de informação ou técnicos encontrados nesta página:
A catástrofe da água como síntese do Rio - Instituto Humanitas Unisinos - IHU