10 Janeiro 2020
Não há muito tempo tive a oportunidade de reler o debate que mantiveram o então cardeal e prefeito da Congregação para a Doutrina da Fé, Joseph Ratzinger, poucos meses antes que fosse eleito Papa (Bento XVI, 2008-2013), e Paolo Flores d’Arcais (1944), conhecido por sua crítica contundente do pontificado de João Paulo II.
Para o filósofo italiano, aos crentes e, concretamente, aos católicos atuais, não os enfraquecia nem os dividia as críticas que lhes eram feitas – como foi comum até algumas décadas atrás – por sua falta de compromisso, por sua falta de entrega generosa ou por descuidar da transformação solidária deste mundo. No que tocava ao “apoio aos marginalizados, aos últimos, em respeito ao dever da solidariedade”, os crentes – sustenta – tiravam muitos pontos de vantagem aos não-crentes. E provavelmente carecer de fé tornava “muito mais difícil a capacidade de renunciar ao egoísmo, de se sacrificar pelos demais”. Isso não queria dizer, matizou, que fosse impossível.
Evidentemente, prosseguiu, também havia entrega e generosidade entre os ateus e descrentes, sobretudo nos momentos mais trágicos da história da humanidade. Porém, era uma entrega que, sem saber muito bem o porquê, se mostrava intermitente quando tinha que afrontar o compromisso (discreto e paciente) do dia-a-dia: “não há o que dizer, indicou, que tanto um leigo como um ateu pode sacrificar sua vida. Não obstante, balbuciou, tenha a impressão de que resulta mais fácil..., ou seja, mais fácil..., menos difícil sacrificá-la em momentos excepcionais que fazer sacrifícios menores, porém cotidianos (para quem não crê, que para quem crê ou, pelo menos, que para alguns não creiam)”. Em síntese, concluiu este primeiro ponto: “a pedra onde tropeçar é para o ateu a incapacidade de caridade”.
No entanto, poucas páginas antes, defendia que as chamadas “provas da existência de Deus” haviam sido refutadas graças às objeções abordadas com notável êxito pela tradição ateia. Em consequência, diagnosticava, os cristãos e os teístas vivem em “uma espécie de desencanto interiorizado” já que o que diziam quando diziam Deus era percebido no fundo como falso ou inconsistente. Como também eram as religiões.
Surpreendentemente, prosseguia em vez de se dedicar a expor as supostas provas ou evidências racionais da existência de Deus, limitavam-se a praticar o “esporte filosófico-teológico de massas de tiro ao alvo” contra ”a verdade na acepção empírico-científica do termo”. Não percebiam que, ao proceder desta maneira, estavam reconhecendo que o deles era “consolar”, “resgatar”, “salvar” e satisfazer as necessidades de consumir sentido. Nada a ver com uma explicação racional do cosmos, da natureza, da vida e da existência.
Mais ainda, muitos deles tinham dificuldades para se dar conta de que tampouco os ateus poderiam viver sem fé. Acontece que lhes bastava ter na razão empírico-racional e na liberdade. Essa “fé”, concluiu, nada tem a ver com um Deus transcendente, manifestamente inverificável; ao contrário do mar, das estrelas ou das pessoas com as que vivemos e convivemos.
A data de hoje, considero essa observação de Paolo Flores d’Arcais mais digna de ser levada em conta que quando a li pela primeira vez. Cada dia que passa, compartilho ele que, ao longo do século XX, foi se incrementando de maneira notável a força testemunhal dos crentes graças à associação, recuperada depois de um século e meio de esquecimento, entre Deus e a bondade ou a justiça. Isso me parece inquestionável ou, ao menos, dificilmente questionável.
Mas também é que um tipo de descrédito racional (em nome do conhecimento científico-empírico) se espalhou pelo conteúdo associado ou referenciado ao que dizemos quando dizemos Deus. E, consequentemente, o número de pessoas aumentou – pelo menos em uma parte significativa da Europa Ocidental – para quem a associação entre divindade, bondade e justiça é vista como algo admirável e até sedutor, mas, ao mesmo tempo, obsoleto e ilusório; incapaz de lidar adequadamente com a força vertical do discurso ocupado em denunciar a falta de consistência racional e a credibilidade nula do que Deus entende.
Não há escolha a não ser levar esse assunto a sério, a menos que você procure reter o fundamento e o propósito do que é dito quando Deus é dito no campo do privado, meramente subjetivo ou no plácido (e cada vez mais insignificante) apenas discurso bíblico e exegético ou, na melhor das hipóteses, em comportamento solidário, admiravelmente moral e interpelante, mas, como o filósofo italiano mantém, racional, coerente com os avanços científico-empíricos, com a antropologia ou reflexão filosófica da qualidade.
Esta é, portanto, uma tarefa inevitável também para aqueles de nós que se movem e se sentem mais confortáveis no imaginário de um Deus de amor, articulação, ao mesmo tempo, de misericórdia e justiça, e associado preferencialmente aos pobres; e que, diferentemente dos chamados “novos ateus”, assumimos (e controlamos) a força unificadora, a luz compreensiva e a racionalidade fraterna que lança o princípio teocognitivo segundo o qual “quem ama conhece a Deus e está em Deus” (1 Jo. 4, 8).
Penso que chegou a hora de conversar com essas pessoas que, como Paolo Flores d'Arcais, questionam a solidez argumentativa e a verdade do que dizemos quando dizemos Deus à luz de evidências científico-empíricas; aparentemente, o reduto que lhe resta.
Podemos fazer isso acompanhado pelo que ouso chamar de “novos crentes”, ou seja, pessoas que, depois de serem ateus, descobriram que as explicações deístas ou teístas são muito mais racionalmente válidas do que o incremental da mesma evidência científico-empírica. Entendo que aqueles que entram nesse caminho – como a hipótese de trabalho – não terão dificuldade em continuar abraçando um imaginário de Deus que, racionalmente mais sólido que a explicação ateísta, é, ao mesmo tempo, uma articulação de misericórdia e justiça.
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“As explicações deísta ou teísta são muito mais sólidas racionalmente que a descrente”. Artigo de Jesús Martínez Gordo - Instituto Humanitas Unisinos - IHU