23 Outubro 2019
“Antes do julgamento, Raposa estava completamente invadida. Os povos indígenas não tinham liberdade. Raposa foi uma experiência de vida”, diz Edinho Macuxi.
A reportagem é de Renato Santana, publicada por Cimi, 22-10-2019.
Os povos Wapichana, Patamona, Makuxi, Taurepang e Ingarikó iniciaram neste ano a última fase do chamado Regimento da Raposa Serra do Sol, Terra Indígena localizada ao norte de Roraima entre os municípios de Pacaraima, Normandia e Uiramutã. Se trata de um conjunto de normas baseadas nos costumes, crenças e tradições destes povos que dividem 1.747.464 hectares. Uma década atrás, a realidade era distinta para os 25.635 indígenas (DSEI-Leste/2018) de Raposa.
Em 19 de março de 2009, o Supremo Tribunal Federal (STF) encerrou o julgamento da Petição 3388 que questionava, em ação popular ajuizada pelo senador Augusto Affonso Botelho Neto, a demarcação da Terra Indígena Raposa Serra do Sol. A ação pedia a declaração de nulidade da Portaria nº 534 do Ministério da Justiça, homologada pela Presidência da República em 15 de abril de 2005.
Os ministros da Corte bateram o martelo pela demarcação contínua da Terra Indígena e imediata retirada dos ocupantes não indígenas. Os avanços de lá para cá foram listados em um dossiê divulgado no início deste mês e entregue às autoridades públicas de Brasília. A partir da consolidação da organização política dos povos de Raposa Serra do Sol, a Terra Indígena se tornou um projeto de vida para os indígenas.
“Nós tivemos vários avanços nos aspectos cultural, social, ambiental, político e econômico. Trazemos uma visão diferente e os povos indígenas se organizaram para a produção e comercialização na Raposa. Destacamos o Plano de Gestão Territorial e Ambiental das Terras Indígenas (PGTA). Outro ponto é que os povos têm autonomia de decisão, produzindo de forma consciente e sustentável”, explica o vice-coordenador do Conselho Indígena de Roraima (CIR), Edinho Macuxi.
Conforme o dossiê, “foi somente após a confirmação do STF que se criou um ambiente mais favorável para a elaboração dos planos comunitários de manejo ambiental e territorial, conforme os costumes, crenças e tradições de cada povo, mas buscando parcerias com órgãos públicos, instituições e entidades da sociedade civil”. A organização social de Raposa abrange todo o território.
Desde 2015 acontece a instalação dos Escritórios Regionais divididos em “Maturuca (região das Serras), que atende 81 comunidades; Centro Regional Amoko Pêê Depê (região Baixo Cotingo), que atende 25 comunidades; Centro Regional 15 de Abril (região de Surumu), que atende 18 comunidades, e o Centro Regional Severino Arnaldo Constantino (região Raposa) que atende 45 comunidades indígenas”.
Por iniciativa do Tribunal de Justiça do Estado de Roraima, e com o apoio direto do então presidente do STF, o ministro Ricardo Lewandowski, foi inaugurado o primeiro pólo indígena do Centro Judiciário de Solução de Conflitos e Cidadania (Cejusc), na comunidade do Maturuca, considerado o coração da Raposa Serra do Sol. Lewandowski esteve em Raposa para conhecer os conciliadores e instalar o pólo.
O Projeto Gado, uma das principais estratégias de autossustentação de raposa nas últimas décadas, e crucial durante o processo de retomadas indígenas, chegou em 2018, segundo dados da Agência de Defesa Agropecuária de Roraima (ADERR), somavam 50.437 cabeças de bovinos. Em 2013, o total foi de 41.243 animais. De acordo com os indígenas, a criação de gado não é a única forma de sustento.
“Uma iniciativa para fortalecer a agricultura familiar indígena é através de um mercado solidário com trocas e vendas de produtos e a realização de feiras regionais e comunitárias ao longo do ano”, diz trecho do dossiê. A produção é orgânica, em algumas regiões de Raposa fazendo uso das técnicas de agrofloresta, e diversificada para garantir a soberania alimentar dos povos.
“As feiras se reúnem também com o objetivo do fortalecimento dos conhecimentos e saberes próprios dos povos indígenas, a riqueza da biodiversidade que os povos preservaram e o potencial que isso tem para continuar construindo um futuro sustentável com uma produção diversificada de alimentos e uma reposição e preservação da própria diversidade natural que existe em nosso território”.
Na saúde indígena, Raposa Serra do Sol conta com “214 agentes indígenas de saúde e 143 agentes indígenas de saneamento, além de técnico microscopista, técnico em enfermagem, parteiras e pajés. Iniciativas importantes, como o fortalecimento da medicina tradicional, tem fortalecido as comunidades indígenas”, destaca o dossiê que aponta ainda avanços na área da educação e na produção de energia.
O quadro revela que a posse do território de Raposa levou paz aos povos indígenas. “A homologação da T. I. Raposa Serra do Sol resultou na diminuição visível dos conflitos diretos e indiretos sobre a terra, em Roraima. A tranquilidade que os povos indígenas sentem de não serem atacados em suas próprias casa e roças tem um valor e um efeito incalculável para as crianças, jovens de mulheres”, relatam no dossiê.
Apesar de todo o quadro, parte do governo os ataques mais descontextualizados sobre Raposa. “Não temos muito tempo a perder com as declarações do presidente (Bolsonaro). Não é a função dele rever (a demarcação) nada. A Constituição o obriga a proteger e garantir as demarcações. Então vamos zelar pela Constituição. Antes do julgamento, Raposa estava completamente invadida e os povos vinham sendo dizimados. Os povos indígenas não tinham liberdade. Raposa foi uma experiência de vida, de fortalecimento. Definida pelo Supremo. Isso tudo é muito maior do que um discurso de um presidente que não tem compromisso e preparo pra governar o país”, destaca Edinho Macuxi.
Paulo Machado Guimarães, então assessor jurídico do Conselho Indigenista Missionário (Cimi), fez a defesa dos povos indígenas de Raposa no julgamento da Petição 3388. “Sob o aspecto constitucional, considerando as provas documentais, o caso era simples. Mas assumiu uma grande dimensão política em razão da disputa que envolveu inúmeros setores políticos e econômicos interessados em obter do STF uma interpretação restritiva aos direitos constitucionais dos povos indígenas”, explica o advogado e presidente da Comissão Especial de Defesa dos Direitos dos Povos Indígenas da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB).
Ele explica que o julgamento da ação popular contra a demarcação da Terra Indígena Raposa Serra do Sol “foi importante em razão das teses sustentadas pelo autor da ação popular, as quais foram acrescidas outras, de interesse do Estado de Roraima, dos militares, do meio ambiente e dos invasores (arrozeiros e fazendeiros)”. Essas teses foram levadas ao debate jurídico, discutidas e, em alguns pontos, superadas.
O advogado destaca que “a interpretação sobre o que vem a ser terra tradicionalmente ocupada, previsto na Constituição, representou o esforço, decorrente da disputa política sobre o caso, envolvendo a superação do instituto do indigenato, concebido por João Mendes Júnior, pelo “fato indígena”, na elaboração do ministro Menezes Direito, ou “marco temporal”, formulado pelo ministro Carlos Ayres Britto. Estas novas elaborações ainda estão submetidas a apreciação, em especial tendo presente a mudança significativa na composição do STF”.
No âmbito das discussões envolvendo o processo havia a defesa de uma demarcação picotada, não contínua; áreas urbanas e de fronteiras, além de regiões do território com interesse minerário ficariam de fora. “As demarcações das terras indígenas”, conforme destaca o advogado como um dos pontos da decisão dos ministros mais importante do processo, “não podem ser feitas de forma a restringir a posse permanente e o usufruto exclusivo das riquezas naturais existentes no solo, nos rios e nos lagos. A concepção de demarcação em “ilhas” é inconstitucional”.
Diante da posição do presidente Jair Bolsonaro tentar levar adiante uma promessa de campanha, de rever a demarcação da Terra Indígena Raposa Serra do Sol, Paulo Machado diz que “não há possibilidade jurídica da demarcação ser revista, em razão da força da coisa julgada. Ou seja, há uma sentença (denominada como Acórdão) do STF transitada em julgado”. O ex-ministro Carlos Ayres Britto, por exemplo, foi taxativo quanto ao despautério do presidente. “A decisão transitou em julgado. Foi uma decisão histórica. Para os índios, é direito adquirido”, disse o ex-ministro ao colunista Bernardo Mello Franco, de O Globo.
Sobre os objetivos dos impetrantes da ação, no que se refere à demarcação: não lograram êxito. “Mas no esforço de mediação dos conflitos interinstitucionais que se projetaram, notadamente em razão da Faixa de Fronteira, do Parque Nacional Monte Roraima e da produção, geração e transmissão de energia elétrica e atividades econômicas, conceberam-se as 19 condicionantes, que apesar de muitas delas implicarem conflito com o art. 231 da CF, referem-se apenas a Terra Indígena Raposa Serra do Sol”, explica Machado. “Com o devido respeito à força decisória da decisão adotada pelo STF, guardo reservas em relação a esta técnica de superação de conflitos futuros”, conclui.
A decisão do STF de uma década atrás estabeleceu ainda 19 condicionantes mantidas durante julgamento posterior, em 23 de outubro de 2013, mas sem efeito vinculante a outras Terras Indígenas. Raposa Serra do Sol então encerrou um capítulo na luta dos povos indígenas pela terra iniciando outro. Cumpriu-se o ditado: o armistício de uma guerra é o início da seguinte.
Conforme o relator do processo, ministro Luís Roberto Barroso, “a opção para (a) demarcação da Raposa Serra do Sol não traduz em ato normativo geral e abstrato em outros eventuais processos”. A Advocacia-Geral da União (AGU), no entanto, se antecipou ao julgamento e em 16 de julho de 2012 o então ministro-chefe Luís Inácio Adams fez publicar a Portaria 303.
A portaria era toda voltada a estender às demais terras indígenas do país as condicionantes. Sob forte pressão do movimento indígena, organizações indigenistas, juristas e opinião pública, Adams suspendeu a portaria semanas antes do Supremo Tribunal Federal (STF) votar oito embargos de declaração apresentados à decisão da Corte que considerou constitucional a demarcação de Raposa Serra do Sol.
O ex-ministro afirmou que ela voltaria a valer assim que o STF julgasse os embargos, sendo três deles envolvendo questionamentos às 19 condicionantes – uma delas abordando a tese do marco temporal. Depois do Congresso Nacional solapar o mandato da presidente Dilma Rousseff, a AGU decidiu derrubar a desgastada Portaria 303 e renovar seu conteúdo durante o curto e desastroso mandato de Michel Temer.
Em um ardil, a ministra-chefe Grace Mendonça concluiu que a Portaria 303 causava controvérsia institucional, ainda mais depois de suspensa, em 11 de maio de 2016, até que estudos solicitados em 2014 à Consultoria-Geral da União (CGU) fossem conclusivos quanto a sua adequação. A ministra Grace decidiu então elaborar o Parecer 001/2017, estendendo – mais uma vez – as condicionantes impostas para todos procedimentos de demarcação do país.
Uma enxurrada de pedidos de suspensão de portarias declaratórias, pedidos de reintegração de posse e toda sorte de tentativas de embargos às demarcações passaram a tramitar na primeira instância. Em comum, a utilização da tese do marco temporal como interpretação restritiva dos artigos 231 e 232 da Constituição Federal.
Se em 5 de outubro de 1988, data da promulgação da Carta Máxima, a Terra Indígena reivindicada não estiver comprovadamente ocupada pelo povo que a reivindica, ou em disputa judicial, a tese afirma que a ela não há direito originário vinculado. O marco temporal é a principal tentativa dos opositores ao direito indígena à terra de transformar o que consideram uma derrota no caso Raposa em uma vitória contra as demarcações.
“A tese do Marco Temporal tem sido identificada como uma tábua de salvação para os setores políticos e econômicos contrários à correta demarcação e proteção das terras tradicionalmente ocupadas pelos povos indígenas. Esta linha interpretativa deverá ainda ser melhor apreciada, já que não se pode ignorar as normas constitucionais de 1967/69, de 1946, de 1937, de 1934 e muito menos o ordenamento normativo vigente no contexto dos textos constitucionais de 1891 e de 1824”, afirma o advogado Paulo Machado.
De tal maneira que chegamos ao reconhecimento pelo STF como caso de Repercussão Geral o Recurso Extraordinário (RE) 1.017.365, que discute uma reintegração de posse movida contra o povo Xokleng (SC). A Fundação do Meio Ambiente do Estado de Santa Catarina (Farma) moveu uma ação de reintegração de posse contra a Fundação Nacional do Índio (Funai) e indígenas do povo Xokleng, que ocupam uma área reivindicada – e já identificada – como parte de seu território tradicional. A terra em disputa é parte do território Ibirama-Laklanõ, que foi reduzido ao longo do século XX.
Isso significa que o que for julgado nesse caso servirá para fixar uma tese que servirá de referência a todos os casos envolvendo terras indígenas, em todas as instâncias do Poder Judiciário. Como na ação da Repercussão Geral o marco temporal é um dos argumentos estabelecidos, o efeito da decisão do STF poderá ser de cascata nos incontáveis processos de Terras Indígenas judicializadas e até mesmo demarcadas.
Sobre se o julgamento das 19 condicionantes pode interferir na apreciação da Suprema Corte do caso de repercussão geral, Machado entende que “será apenas um precedente. Os ministros e as ministras deverão apreciar a questão na sua dimensão integral, sem quaisquer limitações interpretativas adotadas em precedentes do próprio STF”.
FECHAR
Comunique à redação erros de português, de informação ou técnicos encontrados nesta página:
Raposa Serra do Sol: como está a Terra Indígena após uma década da histórica decisão do STF - Instituto Humanitas Unisinos - IHU