22 Outubro 2019
Quando James Joyce usou a expressão “lá vem todo mundo” para descrever a Igreja Católica, ele não estava brincando. A coisa gloriosa e também enlouquecedora do catolicismo é que ele contém tudo e o contrário de tudo.
O comentário é de John L. Allen Jr., publicado em Crux, 21-10-2019. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Nesse domingo, duas manchetes do Crux ressaltam essa questão: “Bispos da Amazônia prometem pobreza” ao lado de “Documentos vazados detalham negócio vaticano de 200 milhões de dólares por imóvel luxuoso em Londres”.
Na manhã de domingo, cerca de 40 bispos participantes do Sínodo dos Bispos sobre a Amazônia, entre os dias 6 e 27 de outubro, foram até as catacumbas de Santa Domitila, em Roma, para renovar um pacto originalmente assinado no Concílio Vaticano II, em 1965, prometendo, entre outras coisas, um “estilo de vida alegremente sóbrio”, em contraste com aquilo que eles chamaram de “avalanche do consumismo”, prometendo viver de um modo “simples e solidário com os que pouco ou nada têm”.
A caminho dessa assinatura, no entanto, eles podem ter visto um artigo publicado na revista italiana L’Espresso baseada em documentos vaticanos vazados que detalham o modo pelo qual a Secretaria de Estado, possivelmente violando as próprias normas do Vaticano sobre transações financeiras, acabou tornando-se a proprietária de um antigo depósito da loja de departamento Harrods no luxuoso bairro londrino de Chelsea, destinado a ser convertido em apartamentos de luxo.
Até agora, cinco funcionários vaticanos foram suspensos em uma investigação sobre o caso, enquanto o comandante dos gendarmes vaticanos, o leigo italiano Domenico Giani, foi obrigado a renunciar devido a vazamentos dos detalhes dessa mesma investigação.
O que a justaposição irônica das duas histórias no mesmo dia ilustra é uma confusão crônica dentro da Igreja sobre o que realmente significa uma “opção pelos pobres”.
Um modo de interpretar isso é que a Igreja deve evitar inteiramente a riqueza mundana; nesse caso, o tipo de movimentação e negociação capturado no artigo da L’Espresso pelo jornalista italiano Emiliano Fittipaldi estaria completamente fora de lugar.
De acordo com essa teoria, o dinheiro é a raiz de todos os males, e o papel da Igreja é de renunciar a ele, adotando, ao contrário, uma simplicidade de vida que lhe permita falar com credibilidade como uma tribuna dos pobres do mundo, porque suas lideranças vivem a mesma vida que os oprimidos, em nome dos quais elas afirmam falar. Esse foi o sentido do “Pacto das Catacumbas” renovado no domingo pelos bispos participantes do Sínodo Amazônico.
Em sua homilia em uma missa nas catacumbas que antecedeu a assinatura do pacto, o cardeal brasileiro Claudio Hummes definiu o dinheiro como a força motriz de “tudo que é mau hoje”, incluindo, segundo ele, a guerra e a violência.
Outro modo de interpretar a “opção pelos pobres”, porém, seria que a Igreja deve maximizar seu retorno sobre o investimento, de modo a dispor dos maiores recursos possíveis para se dedicar a seus objetivos caritativos e espirituais.
Essa concepção do significado de uma “Igreja pobre para os pobres” pode ser vista como o modelo “Paul Marcinkus”, o arcebispo estadunidense que atuou como presidente do banco vaticano de 1971 a 1989 e que apocrifamente teria dito: “Você não pode administrar a Igreja apenas com Ave-Marias”.
Se esse for o padrão, com toda a honestidade, as manobras financeiras detalhadas no artigo de Fittipaldi do domingo talvez não sejam nada escandalosas, exceto no sentido processual de que os relatórios confidenciais de uma investigação vaticana acabaram em um jornal italiano.
Para quem conhece os caminhos do mundo, 200 milhões de dólares provavelmente não são uma quantia ultrajante para adquirir um pedaço substancial de propriedade em um dos mercados imobiliários mais caros do mundo. Supondo que as reformas pretendidas realmente ocorram e os 50 apartamentos de luxo projetados nesse local em Chelsea se materializem, não é irrazoável projetar que o Vaticano poderá dobrar ou triplicar o seu investimento ao longo do tempo, apesar do impacto de curto prazo do Brexit sobre as avaliações de imóveis.
Nesse caso, isso representaria entre 400 milhões e 600 milhões de dólares adicionais que o Vaticano teoricamente poderia usar para fins caritativos. Dado que o custo estimado para acabar com a fome na África é de 5 bilhões de dólares, isso poderia ser um adiantamento de 10% para acabar com um dos flagelos humanitários mais persistentes do mundo – assumindo, é claro, que esse seja o fim para o qual as receitas provenientes desse tipo de transações serão alocadas.
Quando o cardeal australiano George Pell, que agora está diante do apelo final de uma condenação por abuso sexual em seu país natal, era o czar financeiro do Vaticano, essa era a sua visão de “reforma”. Ele queria transparência, certamente, mas também queria que os portfólios de investimento do Vaticano atuassem no nível dos melhores modelos internacionais existentes, obtendo recursos adicionais de entidades católicas em todo o mundo que seriam atraídas pelos retornos a serem entregues.
O que a colisão das duas manchetes desse domingo suscita, portanto, é a questão do que significa, exatamente, ser uma “Igreja pobre”.
Significa bispos que desprezam o luxo, rejeitam o uso de plásticos e se locomovem no transporte público, como sugere o novo “Pacto das Catacumbas”? Ou significa que o Vaticano faz um uso inteligente dos consideráveis recursos à sua disposição, gerando fundos adicionais para seu escopo humanitário? Pode, talvez, significar ambas as coisas?
Essas são as contradições do catolicismo – uma religião tão vasta, nas palavras imortais de Walt Whitman, que contém multidões.
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Duas histórias põem em xeque o significado da expressão ''Igreja pobre'' - Instituto Humanitas Unisinos - IHU