01 Outubro 2019
Setembro de 1989 foi um mês ruim. Na Cidade da Guatemala, cadáveres de estudantes assassinados permaneciam onde foram jogados contra o cercado no entorno da Universidade de San Carlos. Segundo alguns rumores, as coisas estiveram ruins também no Departamento de San Marcos, na fronteira com o México. Com outras duas repórteres, fiz o trajeto de seis horas para descobrir o que fosse possível sobre o bispo recentemente nomeado, Dom Álvaro Ramazzini. Sim, pessoas eram raptadas – 12 naquele mês – e desapareciam, disse ele, sentando à nossa frente em uma modesta escrivaninha em um pequeno escritório. O religioso aparentava mais jovem dos que os seus 42 anos na época, mas terrivelmente angustiado, como alguém pessoalmente responsável pelo seu rebanho, que estava sob ataque. Ele me fez lembrar de um padre que visitei poucos anos antes em um município serrano, que tirava do fundo da gaveta de sua mesa uma planilha onde anotava o nome das pessoas de sua paróquia quando morriam ou desapareciam em meio à violência, para que houvesse um registro em caso de a paz retornar.
O relato é de Mary Jo McConahay, autor de The Tango War, The Struggle for the Hearts, Minds and Riches of Latin America during World War II (St. Martin’s Press), publicado por National Catholic Reporter, 30-09-2019. A tradução é de Isaque Gomes Correa.
Acabou que certa de 200 mil pessoas, a maioria civis desarmados, morreriam ou desapareceriam em uma guerra civil na Guatemala, a maior parte nas mãos das forças do governo. Era tarde demais já para dirigir com segurança de volta à capital em San Marcos, então nós, as três repórteres, alugamos um quarto de solteiro em uma pousada de condições precárias, trancamos a porta com toda força e eu, para ajudar, passei a noite meio que em claro. Perguntava-me como deveria ser para um bispo ter que lidar continuamente com a violência na própria diocese.
Um dia na Cidade da Guatemala, uma delegação que representava milhares de civis fugidos da luta e que se esconderam na floresta conseguiu chegar (embora não sem correr riscos, pois o exército os considerava simpatizantes das guerrilhas) até o nosso Clube para a Imprensa Estrangeira na capital. (O clube não era um lugar seguro: o seu presidente fora encontrado morto no próprio apartamento, o presidente seguinte fugiu do país após sofrer ameaças e um pequeno dispositivo explosivo foi certa vez encontrado à porta do clube; mesmo assim, eles vieram.) Logo depois do encontro que tivemos, ouvimos relatos de que Ramazzini estava visitando um povo esquecido na remota região de Ixcan, apesar de toda a batalha que ocorria ao redor. A delegação também tinha vindo contar suas histórias à conferência episcopal, e foi Ramazzini quem se pôs a ir até aquela terra de ninguém para visitar a comunidade. Todos estavam com muito medo de ser mortos. Um ano e meio depois, graças ao trabalho do bispo e de outros, o governo reconheceu os exilados internos como “civis não combatentes” e então estas pessoas saíram das sombras para viver em zonas mais seguras.
Quando terminou a guerra, os pobres do interior do país lutaram com vigor contra as empresas mineradoras que invadiam suas terras e usavam substâncias tóxicas para a extração de metais. Ramazzini apoiou os que se opunham às empresas – moradores locais diziam que ninguém havia lhes pedido permissão. “Não é a intenção das companhias dividir as comunidades”, me contou ele em 2013. “Mas quando obtêm as licenças do governo, elas acham que têm a permissão e isso é tudo o que precisam. Elas não trabalham com um diálogo prévio [com os moradores]”.
Em 2018, como bispo de Huehuetenango, Ramazzini intermediou as negociações envolvendo um projeto hidroelétrico e as comunidades afetadas; apesar da violência que se levantou nos primeiros anos da disputa, ele ajudou na intermediação de um acordo que incluiu representantes de comunidades mayas. Alguns indígenas se mantiveram na oposição, mas o acordo trouxe paz à região.
Em 2013, me hospedei em um mosteiro da Nossa Senhora da Sabedoria da Virgem de Guadalupe dos Pobres Clares em Huehuetenango, para traçar o perfil de sua fundadora, uma mulher maravilhosa chamada Irmã Mary Peter Rowland. Descobri o quanto as irmãs amavam “o nosso bispo” pela maneira como ele se colocava junto aos pobres, por suas visitas a elas e pela clareza e plenitude de sua mensagem, incluindo as missas. As suas homilias carregavam um conteúdo, diziam elas, um verdadeiro ensino e iluminação.
“Nem todo mundo que é ordenado consegue pregar, mas como ele consegue!”, disse a Irmã Agnes Stretz. Rowland o chamava de “um verdadeiro homem de Deus”. Nesta semana em Huehuetenango não me surpreendi ao ouvir que, quando a Irmã Mary Peter adoeceu em uma viagem a Memphis, Ramazzini voou duas vezes para estar ao seu lado, enquanto jazia enferma. Um bom homem, penso eu, foi feito cardeal.
Mapa de Huehuetenango. | Reprodução: Google Maps
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Guatemala. Notas de uma repórter: acompanhando Dom Álvaro Ramazzini ao longo dos anos - Instituto Humanitas Unisinos - IHU